Manaus, 21 de novembro de 2024

As Náiades e mãe d’água (VII)

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A poesia moderna

s poetas amazonenses ainda eram assinalados, nas primeiras décadas do século XX, pela estética simbolista e parnasiana. Raros se insurgiam contra esse statu quo estético, tal como fez Violeta Branca, uma das figuras de maior destaque na prática da poesia moderna que já se anunciara no país, oficialmente, no movimento paulista de 1922. Antes disso, no entanto, já se registravam em Manaus manifestações na linha de uma nova expressão poéticas, na inquietação testemunhada no seio da então recém-fundada Academia Amazonense de Letras, contrariando a ideia de serem as academias os redutos mais radicais do conservadorismo.

Na primeira edição da sua revista, circulada em 1920, publicavam-se os poemas “Laranjeira”, de Genésio Cavalcante, e “A França”, de TH. Vaz, pseudônimo de Thaumaturgo Sotero Vaz, dois anos após a fundação do Silogeu amazonense e dois anos antes de realização da famosa Semana de Arte Moderna de São Paulo. A despeito do vocabulário e do tom solene ainda marcado pelo modo de ser do parnasiano-simbolismo, o anseio das novas formas se manifesta nos autores desses poemas, na prática do verso livre característico das correntes da nova estética, visadas por aquele movimento.

Por essas e outras razões, observadas no ambiente intelectual de outros centros culturais do país, é que se pode compreender a Semana de 22 paulista como um momento de tomada de posição coletiva, oficial e solene, por novas formas de expressão artística, inclusive na poesia, sem constituir, no entanto, num ponto de partida de mudanças na literatura nacional.

Nos primeiros passos de “Laranjeira” observa-se o culto ao verso livre, mas ainda numa postura vocabular solene e preciosista bem ao gosta da velha estética, da laranjeira coberta de frutos:

No ouro novo do sol os refloridos galhos,
Entre zumbir de rúmuras abelhas
E alada cavatina,
(-)

e por aí vai ao longo de seis largas estrofes, distribuídas em quatro páginas da revista 41. Olhemos bem para esses versos. O primeiro é um perfeito alexandrino, com cesura na sexta sílaba e tudo; no segundo vem um decassílabo e, no terceiro, uma redondilha, num andamento irregular. mas não alcançando ainda a fluidez intimista e coloquial do verso livre, ritmo livre, metro livre. Outra curiosidade é que não se encontra o adjetivo “rúmura” no dicionário de Houaiss; encontra-se o verbo rumorar, de que se deve ter derivado a palavra no uso do poeta. É uma questão a ser contabilizada no direito de liberdade que em regra comanda a linguagem dos poetas.

Mas a mudança na construção do verso entre os poetas do Amazonas, de modo mais acentuado, sucedeu nos anos 50, com o surgimento dos modernistas madruga dores, que traziam em sua bagagem uma poesia nova do ponto de vista formal, ainda que marcada pela atmosfera simbolista e parnasiana observada na expressão de seus representantes mais notáveis. O modo de ser da sociedade manauense estava demais comprometido com a cadência parnasiano-simbolista na arte e nos hábitos de vida. Esses poetas ainda refletiam em seus versos as raízes simbolistas e parnasianas, arraigadas no modo de ser da sociedade amazonense de então. Uma sociedade escravizada pelo formalismo em tudo o que demonstrava.

Diz Jefferson Péres42, examinando o comportamento excessivamente formal dos manauenses desse tempo:

O conservadorismo da sociedade se revelava, também, na
maneira de trajar, que tinha suas normas até dentro de casa.
Jefferson conta que possuía um vizinho que não recebia visitas sem paletó.

A poesia, portanto, precisava tirar o paletó de uma vez por todas, não só do verso medido e rimado, mas também das atitudes formais que faziam exercer a precedência ritual sobre o conteúdo da vida, com seus conflitos e alegrias, do gesto solene e quadrado, do comportamento for mal próprio das atitudes mentais do parnasianismo-simbolista, ainda dominantes naquela sociedade.

Ocorre que os jovens poetas surgidos nos anos 50 do século passado, organizaram-se no Clube da Madrugada, que, em verdade, não era, simplesmente, uma agremiação literária, nem brigava por uma determinada ideologia. Estava mais para um movimento literário e artístico, o Movimento Madrugada, plantando na poesia novas formas de expressão, a prática do verso livre, concentrando as várias tendências de um novo pensamento na estética e no comportamento. Do ponto de vista político e religioso, o Movimento Madrugada abrigava todas as correntes de pensamento e crença, nos extremos entre socialistas e monarquistas.

Três extremos nos exemplos de interesses filosóficos e políticos estão na posição de três expoentes do movimento: Teodoro Botinelly de Assunção, L. Ruas e João Bosco Araújo.

Teodoro Botinelly de Assunção

Botinelly, um dos fundadores do Clube, era dedicado aos estudos do marxismo, com estágio na Universidade Russa da Amizade dos Povos, mais tarde denominada de Patrice Lumumba, criada em Moscou em 1960, em plena Guerra Fria, por Nikita Khrushchev e voltada para a for mação de jovens do terceiro mundo e da América Latina. O homenageado Patrice Lumumba (1925-1961) foi um líder guerrilheiro africano, depois primeiro-ministro do Congo.

Eram correntes também entre os filósofos do movi mento, com destaque para L. Ruas, sacerdote católico, de bates sobre a obra de Jacques Maritain (1882-1973), filósofo francês de orientação católica, divulgador do tomismo e, pela importância do seu pensamento, batizado de neotomismo. Exerceu efetiva influência no pensamento político da democracia cristã na América Latina.

João Bosco Araújo

Outro fundador do Clube, o jornalista e filósofo João Bosco Araújo, foi o primeiro a divulgar no Movimento a obra de Rainer Maria Rilke (1875-1926), poeta de língua alemã e francesa, nascido em Praga, Império Austro-Húngaro, hoje República Tcheca. Rilke foi um poeta inicialmente religioso e depois transcendental, com uma vinculação carnal entre a realidade e o divino, com muita influência entre as novas correntes do pensamento estético.

Informação necessária sobre o comportamento mental de João Bosco é a característica de sua origem familiar. É considerado o herdeiro intelectual de seu pai, o magistrado e sociólogo André Araújo (1899-1975). Mestre André, como era tratado entre os clubistas, era membro e chegou a presidir a Academia Amazonense de Letras, e revelava intensa fascinação pelo novo. É dele o longo ensaio de introdução ao poema Aparição de Clown, de L. Ruas, um dos livros mais expressivos de autores do Movimento Madrugada. Mestre André foi um dos líderes católicos mais combativos em Manaus. Portava na algibeira um largo crucifixo que ele exibia como exemplo da vida do Cristo, que venceu a todos os sofrimentos. Aí recebia o carinhoso tratamento de Frei André.

Está claro que do ponto de vista estético é visível no Movimento Madrugada a influência de correntes ecléticas de pensamento, mas não se observavam concepções e ten dências antagônicas do ponto de vista da linguagem poé tica, tal como sucedeu na Semana de Arte Moderna de São Paulo- quando eclodiu, entre outras divergências, a ten dência conservadora e nacionalista do verde-amarelismo e a poesia Pau Brasil, mas ainda voltada para a realização do verso livre. Na opinião de Paulo Prado (1869-1943), esse posicionamento do grupo Pau Brasil foi

(…) o primeiro esforço organizado para a libertação do verso brasileiro.

Nos poetas aglutinados no Movimento Madrugada, notam-se, em plena harmonia, a prática de traços influentes residuais do simbolismo e do parnasianismo, com as várias correntes do modernismo e das mais avançadas convergências literárias de vanguarda como o concretismo.

Alencar e Silva

Alencar e Silva, por exemplo, é o mais significativo nome da corrente espiritualista do Movimento, no uso de uma linguagem marcada pelo simbolismo em mais de sete livros de poemas em verso e em prosa. Desde Lunamarga ao Noturno após o mar, o último livro reunido em dois largos volumes, sua poética traz esse tom.

Parte de sua infância passada às margens do rio Solimões onde nasceu, na cidade de Fonte Boa, em que seu pai exerceu funções administrativas jurisdicionais, não o raptaram os motivos da Amazônia na poesia. Era tocado por verdadeira fascinação pelas águas, não as a águas dos rios, mas as águas do mar. Tanto que na maturidade da vida mudou-se de Manaus para o Rio de Janeiro e lá viveu os seus últimos dias. Dizia ele que não podia passar muito tempo sem ver o mar, e fazia para isso uma frequente caminhada pela orla de Botafogo e Copacabana, na contemplação do mar.

Na abertura de Lunamarga o poeta revela a sua poética em três sonetos, com o terceiro concluído pelos seguintes tercetos:

Quero o verso-veículo-e-mensagem
verso-barco-de-pássaros-e-peixes
verso-mar verso-azul verso cidade.
Verso-verso que Lhe abra a porta e diga
vendo-A pura ou coberta de pecados
-entra, amor, te esperava, a casa é tua.

Assinala, no entanto, o Movimento Madrugada, em todas as suas correntes estéticas, a aspiração pelo novo, na expressão de todas as formas e gêneros de arte além da literatura, na música, nas artes plásticas e no cinema. Cuidou de temas de ciências sociais, a inovação nos estudos da sociologia, da antropologia e da política. Dedicou-se ao jornalismo cultural, contribuindo com o surgimento de um visual novo dos suplementos literários de Manaus. E, na literatura, por reunir, em suas fileiras, um maior número de escritores e poetas, dominou o lado formal da prática do verso livre que, em geração imediatamente anterior, já fora levantado, conquanto de forma isolada, por Genésio Cavalcante e TH: Vaz, e de maneira mais expressiva e ampla por Violeta Branca.

Sebastião Norões

Logo após Violeta Branca veio Sebastião Norões (1915-1972), um dos raros poetas do seu tempo a praticar a poesia nova na concepção e na expressão do verso livre. Ele foi como que um anunciador da primeira hora do fenôme no Madrugada e pode ser considerado um precursor desse movimento. Mesmo ao publicar, em seus 57 anos de vida, apenas um magro livro de poemas, Poesia frequentemente, era poeta em tempo integral por suas atitudes em relação à vida, dado a viagens pelo Brasil afora e por vários países do mundo, apreciador da boa música e de tudo o que se originasse do processo de criação estética, atividade jamais relegada, ainda levando em conta os seus afazeres profis sionais de membro do Ministério Público.

Os seus versos possuem marcas do rio Madeira, onde nasceu. Em “Águas puras… águas barrentas”, o poema vai diluvial e amparado em palavras escolhidas, outras aparentemente inventadas, mas bem fundadas no vernáculo, como “jangadeando” ou “amarasmado”, num conjunto de sons e significados postos para retratar o barulho das águas e o gênio transformador do velho Madeira.

Sebastião Norões produziu poemas com linguagem coloquial e aberta, livre dos padrões solenes da poesia parnasiano-simbolista dominante no seu tempo. Era um poeta silencioso. Jamais vi Norões doutrinando ou debatendo temas de qualquer que fosse a teoria estética da moda. Era um homem de ação. Sua biblioteca, formada de raridades em várias línguas, estava sempre aberta a quem o procurasse.

*Continua na próxima semana.

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41 Revista da Academia Amazonense de Letras, edição histórica e fac-similada da revista no. 1, Manaus 2017

42 PERES, (José) Jefferson (Carpinteiro). (Manaus 1932-2008), economista. Sociólogo e político. Vereador de Manaus e Senador da República. Citado em seu livro Evocação de Manaus, como eu a vi ou sonhei. 2. ed. revista e ampliada, Valer, 2002

(Sétimo Capítulo do livro: As Náiades e a mãe-d’água, do autor).

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