A poesia moderna – continuação
Thiago de Mello
No interregno entre a eclosão do Movimento Madrugada e a implantação da poesia moderna, Thiago de Mello (1926) é reconhecido desde a estreia em 1951, como um dos maiores poetas do período. Cedo saiu do Amazonas para estudar no Rio. Virou mundo em missões oficiais de estado e nos movimentos de redenção pela liberdade. Mas nunca esqueceu o seu torrão natal e, na maturidade da vida e da poesia, voltou a residir no Amazonas. Ainda quando residia longe do Amazonas e de vez em quando vinha visitar sua família que morava em Manaus, sempre estava com os poetas do Clube. Construiu uma ponte de afeto entre Barreirinha, sua cidade de berço, e Manaus. Em todas as andanças levou no sangue as belezas de sua terra, tema presente como um moto perpétuo em seu trabalho de poeta e escritor.
Conquanto em seus poemas ele se dedique a celebrar o amor, a fraternidade e a beleza do convívio entre as pessoas, o poeta revela em tudo o que faz a nostalgia dos rios e da floresta do Amazonas. Há também a presença do me nino que ele foi e que o acompanha em todos os lugares por onde vai. Os desígnios da infância o estimulam na sua ação de transformador da sociedade.
Em “A vida verdadeira” o poeta oferece uma síntese do comportamento em relação à sua terra e à infância. Aí ele se dedica a
(…) vida
Pronta para ser usada.
Confessa que não teme nem se esquiva ante os emba tes que pode enfrentar
sempre a serviço
da vida.
Oferece o gesto das mãos e avança, porque sabe que
ali ele vai
levando um ramo de sol.
Não teme nada, nem a noite mais fria, porque a vida que ele leva é fogo,
está sempre acesa.
Revela aos espelhos da emoção o motivo do seu canto, com uma palma de protesto, conduta também recorrente em sua obra.
A posição explícita, assumida pelo poeta amazonense, aparece também em “Cantiga de caboclo”. Lá pelo décimo primeiro verso dessa canção, enquanto avisa que este é um
…canto de despedido
aos seus irmãos ribeirinhos que
… não vão ler nunca
estas palavras de amor,
celebra o poeta a boa convivência entre os homens.
Assim, as vozes isoladas de Violeta Branca e Sebastião Norões, na abertura da nova poesia aos poetas amazonenses, receberam o adjutório significativo de Thiago de Mello.
A eclosão do Movimento Madrugada, em 1950, consolidou a retomada do processo criador da produção poética amazonense, numa nova concepção e um novo proceder na técnica de construção do poema. Os motivos da Amazônia, no entanto, foram relegados. Os primeiros livros publicados pelos jovens poetas do movimento trazem traços lacônicos desses motivos, sem a frequência e a intensidade encontrada na poética de Tenreiro Aranha e Álvaro Mala. Há momentos em que é necessário muito esforço crítico para percebê-los em sua leitura. Mais tarde, com a politização conquistada na maturidade de cada um, os motivos da Amazônia passaram a ter maior influência nos versos dos madrugadores.
Os primeiros poetas do movimento lançados em livro, foram Jorge Tufic, com Varanda de pássaros, Antisthenes Pinto, com Sombru e asfalto, e Farias de Carvalho, com Pássaro de cinza. Os motivos temáticos da poética dos jo vens madrugadores reveladas nessas coletâncas compro metiam-se com os chamados elementos universais da in quietação com os fenômenos do amor, da morte, do destino, da infância, da condição social, enfim.
Antisthenes Pinto
No primeiro poema do seu livro, por sinal um soneto, Antisthenes Pinto (1929-2000) revela:
Antecipo minhas rugas no espelho.
Páginas a frente, num poema intitulado “Noturno”, ainda a olhar-se em suas mutações de muitas faces, diz o poeta:
A outra metade de mim vive no espelho.
Pelo visto o poeta andava encantado com a sua própria imagem.
Antisthenes Pinto é, no entanto, o mais experimentalista dos poetas do Movimento Madrugada. Lançou-se ao exercício das diversas fases da poesia experimental de vanguarda, tendo adotado os princípios consagrados pelo neoconcretismo, por sua vez, uma reação ao grafismo radical adotado pelo poema concreto, em que também se aventurou. Sua poética possui aspereza de ritmos e anseio pelo visual. Mesmo em seu livro de estreia, no entanto, o poeta anuncia a sua preocupação com os motivos da Amazônia, a se ver, ainda obnubilado pela própria aparência, semelhante a um peixe.
Ainda que se tenha visto como peixe e espuma, na mesma linha da análise do próprio rosto ante o espelho, o poeta politiza-se e passa a assumir na maturidade a consciência da realidade dos motivos da Amazônia, Liberta se de si mesmo e passa a ver Manaus desde suas origens históricas e seus compromissos com o rio. Manaus dos tempos do Movimento Madrugada, que era uma cidade por volta de 140.000 habitantes, onde todos se conheciam. Os poetas eram apontados na rua ou olhados com reservas. Eram sinônimos de boemia.
No dia a dia a cidade se faz da vivência e da memória dos seus moradores. No Amazonas
A várzea decifra
o canto primevo
do rio-usina:
Não passa despercebido da visão do poeta o destino dos moradores de Manaus. Sua população é formada por um expressivo contingente de pessoas assimiladas de outras regiões do país e outras partes do mundo que a ela se adaptaram e com ela contribuíram para o crescimento e a beleza.
Jorge Tufic
Antisthenes Pinto é um poeta da primeira hora do Movimento Madrugada, como também foi Jorge Tufic (1930-2018) em Varanda de pássaros, aberto com um sone to intitulado “Homem”, numa visão descomprometida com os motivos da Amazônia. Constitui um exemplo, digamos assim, da chamada poesia metafísica. O homem é uma
Trajetória de sombra dispersada
Das mãos lhe escorre o tempo que sonhou.
Quantas almas possui na alma pisada?
Qual dentre todas a que mais amou?
A partir da quadra de seu amadurecimento o poeta foi deixando de lado essa visão de homem, e assumindo uma postura mais voltada para as figuras de corpo e alma que o cercam no mundo maravilhoso dos rios e da floresta. Afinal, conforme o tom blasé de Alberto Caeiro, um dos heterônimos de Fernando Pessoa (1888-1835),
há metafísica bastante em não pensar em nada.
Autor de uma obra vasta e diversa na temática e nos motivos de canto, na maturidade Jorge Tufic reserva par cela de tempo especial para se dedicar às emoções da paisagem e dos costumes amazonenses. Cultiva as formas do metro medido em belos sonetos, pratica o verso livre e a inquietação da poesia experimental, como se deu no caso da poesia de muro. Numa das vertentes de sua lírica o poeta foi envolvido pela atmosfera vivencial do Amazonas, onde se radicou desde menino quando veio do Acre, onde nasceu.
Contempla a paisagem da praia da Ponta Negra, em Manaus, e cada vez mais é cativado pela cidade. O rio Ama zonas merece do poeta um longo poema distribuído em 4 páginas em que disseca o rio e interpreta os seus mitos. Na conversa com o rio Negro, o poeta fala das primeiras ações na construção da cidade de Manaus.
Foi tocado Jorge Tufic pela herança mitológica dos povos do Amazonas, a poesia primitiva de que nos ocupamos a páginas tantas deste trabalho, e escreveu um livro inteiro, de 241 páginas, movido pelas emoções da etnia Dessa. na-Tucano, povo fixado no rio Uaupés, um dos afluentes do Rio Negro. O poeta assume a visão de mundo Dessana.43
Farias de Carvalho
Farias de Carvalho (1930-1997) permaneceu em sua caminhada de poeta raptado pelas questões sociais e a nostalgia do mundo da infância, bem representativo em “Baú velho” e “Meu canto novo”. Uma particularidade do poeta era trazer seus poemas todos de cor e interpretá-los muito bem, um autêntico ator dotado de voz impostada e surpreendente expressão facial. Um acidente inusitado causou a perda dos originais com que organizava a sua primeira coletânea de poemas. Não foi maior a perda porque o poeta sabia todos eles de cor e os recuperou e editou no livro intitulado Pássaro de cinza, uma referência à escória a que se reduziram os seus poemas no fogo, ou alusão à Fênix, o pássaro da mitologia greco-romana que sempre renasce das cinzas do seu corpo incendiado.
Astrid Cabral
Aí vem a estreia de Astrid Cabral (1936) em 1963. É um livro de contos, Alameda. Manaus ainda era aquela sociedade dominada pela educação, vitoriana em seus hábitos, identificada por Jefferson Péres. Considerada uma das mais altas expressões da geração madrugada, nada se registra da presença física de Astrid nas mesas de bar e nos encontros até alta madrugada para discutir, ou em praça pública, temas de cultura, literatura e arte, costume do ofício desse grupo de jovens poetas, artistas e cientistas sociais de Manaus no período.
Os avós de Astrid não permitiam. “Moça boa-família” não participa de tertúlias boêmias. Nem por isso os jovens madrugadores deixaram de considerá-la uma de suas mais legítimas representantes, como em verdade é e está em seu livro de estreia na poesia,44 celebrando essa presença. Nesse momento ela não mais residia em Manaus, tinha migra do para o Rio de Janeiro, destino dos jovens ambiciosos das glórias literárias.
Estreando com um livro de prosa45, Astrid revelou-se, desde aí, uma autêntica poeta, por seu texto essencialmente poético. No conto inaugural do livro, intitulado Destino, há um trecho significativo de emoção, predicado em verdade dominante em todo o volume. É a conversa com uma plantinha que se esforça em existir entre árvores floridas e frutíferas. Fica ali a receber os chuviscos dos regadores que as aliviam do calor do sol, antes das chuvas verdadeiras,
A chuva renascendo nas raízes em frescura persistente e gostosa.
O poema de Astrid realiza-se, embora também expresse o anseio de liberdade que é marca registrada em
todo poeta, em molduras mais contidas e esteticamente mais bem cuidadas. Violeta Branca fora influenciada pela conduta estética dos promotores da Semana de Arte Moderna de 22, quando se abriu guerra a toda forma de contenção até para libertar a poesia, das algemas parnasiano-simbolistas da forma. Mário de Andrade (1893-1945), um dos líderes do movimento, no ensaio A escrava que não é
Isaura, que ele classificou de
discurso sobre algumas tendências da poesia moderna,
punha-se contra o verso rigidamente metrificado e preciosamente rimado.
Já Astrid Cabral veio de uma geração em que, superado o momento heroico de mudanças provocadas pela Se mana de Arte Moderna, os poetas brasileiros restauravam as formas fixas da poesia, por volta de 1945, com o verso medido e mais elaborado, absorvido o verso livre que permaneceu na prática de todo poeta, afinal como conquista dos inovadores da poesia de então. Só uma circunstância se evidenciava naquele instante, o poema revelava uma visão nova de mundo.
Distante do Amazonas desde a adolescência, Astrid reteve no espírito a paisagem, as formas de vida, o instinto amazonense, enfim. De um dos seus livros mais importantes,46 é o texto “Por toda parte o rio”. O poema possui pontuação no nono verso e no fim. No mais os versos convivem sem vírgulas e pontos, mas de mãos dadas conquanto sejam autônomos, guardados os nexos do discurso poético. Revela uma questão de conquista formal de excelência, distintiva em Astrid e nos poetas da geração madrugada. Ousa ainda gerar palavras novas na complementação do penúltimo verso, “riando” e “submim”. A norma corrente desconhece essas palavras, mas no contexto sonoro da composição elas se coadunam em resposta ao esforço criador, que é explorar os atributos sonoros da língua portuguesa:
o rio rente rindo
roendo ruindo riando submim.
Na composição esse poema concentra imagens relativas à floresta e o curso dos rios. A “cobra domada” leva -nos a cogitar da jiboia de manchas escuras quando é o rio Negro, ou de amarelas da sucuri quando é o Solimões, que fluem até formar o amplo Amazonas, a cobra-grande de todas as cores. Sucedem-se as imagens. A água como veículo de comunicação e transporte e fonte de alimentos, o
leite a pojar o seio das cuias.
Lembra as cunhantãs amazonenses nas festas de rua, a agasalhar e proteger os seios em cuias.
Por fim a poeta comunga com as águas batismais, identifica-se no mergulho do corpo arcaico, porque
nós todos tão sáurios tão
irmãos de peixes e quelônios.
Embora Astrid dedique sua atividade literária consagrada aos seus sentimentos em relação ao mundo, reserva uma boa parcela de tempo à poesia dotada com os motivos da Amazônia.
A poesia, no entanto, não é um fenômeno que se manifeste pela palavra apenas, ainda que se considere a poesia a arte da palavra. A poesia constitui um modo de ver a vida, uma posição do homem perante o mundo. A emoção estética desponta no contemplador quando ele assimila a realidade como um elemento que se encontra acima do sentido sensorial do objeto. Aquilo que lhe toca a sensibilidade, o sentimento, o espírito. Aí o artista realiza o poema, a balada musical, a dança, a construção na tela dos pincéis e das cores, e as obras de arquitetura e urbanismo.
Afrânio Castro
Afrânio Castro (1931-1981), que era artista plástico, dominado por suas visões de pintor e escultor, poucas vezes foi visitado pelas musas da poesia realizada com as palavras. Para seus companheiros madrugadores dava a impressão de que todos os seus dias eram dedicados às artes plásticas. Comentava entre os parceiros, sem ter sido levado muito a sério nesse ponto, que possuía uma série de poemas que pretendia reunir numa coletânea com o título de Pão de pedra, projeto, enfim, não concretizado. Talvez porque o gesto pudesse constituir uma resposta aos colegas artistas que o chamavam, não sem uma pitada de bom humor, de Troglodita, visto a sua compleição física robusta e volumosa e o seu modo áspero de ser.
Após a morte prematura e inesperada do artista aos 50 anos, os possíveis originais desse livro devem ter-se perdido no seu também abandonado acervo pessoal. Possui raros poemas publicados nos suplementos literários de Manaus e em revistas de instituições culturais da cidade, como os versos de Macumba.47
Visualizam-se nesse poema elementos amazonenses de vida
floresta grávida de luar
e
árvores violadas pelos ventos
e o predomínio dos usos religiosos, herdados da cultura afra e praticados nos terreiros de macumba, misturados com as sessões de curandeiros do meio da floresta e da beira do rio, de origem amerindia.
Moacir Andrade
Outro dos artistas plásticos mais expressivos do Movimento Madrugada, o pintor Moacir Andrade (1927-2016), também praticou a poesia com a cor e a palavra escrita. Alcançou trazer à luz uma coletânea de poemas48 bem construídos e profundas marcas amazonenses como, de resto, aconteceu em toda a sua obra no desenho e na pintura, que vemos no poema “Peixe-pão”. Bem comprova a visão do pintor na plasticidade quando celebra que
as escamas pulam como estrelas
sob o gume da faca afiada
despertando o cheiro pitiú do jaraqui.
Uma imagem viva dessa tarefa executada sobre o jirau da cozinha, com o jaraqui, o peixe de maior produção dos rios do Amazonas, preferencialmente nos rios de águas negras, e o mais popular em nossa mesa, num texto de poeta dominado pelo olhar do pintor.
O Movimento Madrugada consolidou a prática da poesia moderna amazonense, inaugurada, em seus primeiros passos e separados por pequenos espaços de tempo, por Violeta Branca, Sebastião Norões e Thiago de Mello. Desde esse período a poética amazonense recebeu trata mento mais comprometido com a nossa vida, com poetas mais conscientizados da mitologia primitiva e da vivência do amazônida como expressão da paisagem e do homem.
Uma tendência anunciada desde os expoentes anônimos da poesia primitiva e a assimilação da mitologia greco-romana, retomada pela individualidade de Tenreiro Aranha e confirmada por Luiz Bacellar. A poesia manifestou-se mais enraizada nos acontecimentos da vida, numa forma de politização do modo de ver e sentir a cul tura amazonense, nos caminhos abertos por Alvaro Maia e a sua caboclitude.
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43 Tufic, Jorge. Quando as noites voavam. 2. ed. Manaus: Editora Valer, 2012.
44 Ponto de cruz. Rio de Janeiro: Editora Cátedra, 1979.
45 Alameda. 2. ed. rev, e aumentada. Manaus: Valer, 1998.
46 Visgo da Terra. Poesia. 3ª edição revista pela autora. Manaus: Valer, 2005.
47 Revista do IGHA. Edição de abril, maio, junho de 2002.
48 Portais. Manaus: Valer, 2006,
(Capítulo Sétimo do livro: As Náiades e a mãe-d’água, do autor).
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