Manaus, 18 de outubro de 2024

O adeus ao “Mestre Agnello”: análise da consagração de um intelectual amazonense (parte II)

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*Helio Dantas

No texto anterior, eu falava sobre a ideia de que Agnello Bittencourt encarnou, para seus pares, em uma espécie de figura do intelectual amazonense ideal, ou, pelo menos, que houve um esforço considerável da parte de seus contemporâneos em construir essa imagem. E nessa construção, três pontos são destacados recorrentemente pelos homenageadores de Agnello Bittencourt: a sua atuação docente, a sua produção escrita, abordados no texto anterior, e, hoje, vamos para o terceiro ponto: a sua longevidade.

Em que pese o fato de parecer um detalhe banal, acredito que o foco na longevidade de Agnello Bittencourt busca construir um significado muito específico na trajetória desse intelectual. Nascido no séc. XIX, Agnello Bittencourt teve contemporâneos seus que faleceram precocemente, enquanto ele atravessou praticamente um século de vida, ou seja, ele representava uma espécie de sobrevivente de uma época longínqua, o que parecia conceder à sua produção intelectual e atuação pública uma enorme carga de legitimidade.

“Majestoso cedro do Ayapuá”[1] e “aquariquara do Amazonas”[2] são dois adjetivos que comparam Agnello Bittencourt a árvores amazônicas de grande porte e que produzem madeiras nobres, simbolizando tanto força quanto longevidade. Já sexagenário, afirma Pablo Cid, Agnello, quando em viagem ao Amazonas, visitava o Lago do Ayapuá e “em canoa, lançava tarrafa e colhia peixe como o mais hábil dos pescadores. Fazia por esporte, fazia para alegrar seus filhos, fazia porque tinha imenso prazer”[3]. Vale frisar que o destaque da vitalidade física conduz à constatação da lucidez mental e da produção intelectual ininterrupta, mesmo em avançada idade, como elementos distintivos.

Essa longevidade e vitalidade física também se desdobram na construção da figura de um homem público de retidão moral e probidade inquestionáveis. Agnello é sempre associado a um comportamento discreto, reservado, tendo herdado do pai, Antônio Clemente Ribeiro Bittencourt, uma conduta “altiva”, que transmitiu a filhos e alunos, pois, trazia a marca de alguém nascido no séc. XIX e criado em uma tradicional família amazonense, numa época “em que o convencionalismo se articulava em preceitos, necessários e indispensáveis ao respeito entre todos os que compunham a sociedade (…) e a compostura se apresentava obediente a um verdadeiro código moral, que ninguém procurava violar, para não perder a sua autoridade”[4].

Também é possível inferir que Bittencourt é visto como um intelectual que teria ido além da descrição e análise de eventos da história amazonense. Mais do que isso, a importância de sua figura se deveria ao fato de que ele vivenciou muitos desses momentos, e isso conferiria a ele um lugar especial na intelectualidade amazonense como “testemunha ocular da história”[5]. Ainda na infância, teria testemunhado a luta abolicionista e a defesa da causa republicana[6]. O próprio Agnello descreve a si mesmo como um “homem de antanho”[7].Teria sido um dos últimos representantes de uma “falange magnífica de espíritos”, sendo sempre lembrado como um dos jovens idealizadores e fundadores do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas[8].

Entretanto, de todos os momentos históricos vivenciados por Agnello Bittencourt, o mais celebrado de todos seria o de que ele presenciou a “época de ouro” do Amazonas, durante o período de maiores lucros da economia gomífera: era uma testemunha ocular de um tempo de grandeza que o próprio autor tratou de tornar paradigmático. Cito aqui como exemplo um texto publicado em meados dos anos 1940 na imprensa periódica, quando Bittencourt contava 70 anos. Ele faz um balanço, da Manaus que ele vivenciara na década de 1910 e da que ele tinha diante dele àquela altura. Talvez Agnello Bittencourt tenha sido um dos grandes contribuidores para a construção da “ilusão do fausto”[9].

Digo isso porque, em seu balanço histórico, a cidade de Manaus de outrora era marcada por “alegria e fartura” e todos viviam em um ambiente de “espiritualidade e conforto”: um porto “movimentadíssimo”, luz elétrica e água encanada de qualidade, um Mercado Público que “fazia inveja aos demais”, estabelecimentos comerciais que vendiam produtos de primeira qualidade importados da Europa, fazendo de Manaus uma “cidade de luxo”: montar um recital de salão era algo muito fácil de se fazer, atravessar o oceano saindo de Manaus em direção a Lisboa em um navio de primeira classe custava uma bagatela, uma cidade onde “nunca se bebeu tantos licores e champagne! Pudera! Uma dúzia de garrafas custava apenas Cr$ 80,00”[10].

Tamanha qualidade de vida teria levado o autor a sonhar um futuro grandioso para Manaus, inclusive registrado em texto[11]. Porém, a crise chegou como um “vendaval”[12]. O desfecho de sua crônica é melancólico: “o mundo é completamente outro”, e, ele próprio, não parecia mais o mesmo: “tem subidas e descidas, no seu movimento contínuo, a marcha de um povo, no decorrer de sua história. Ora por montanhas claras, ora por vales escuros, que são esplendores e contingências do destino, as Províncias e Municípios, cidades e vilas, como as grandes Nações, não morrem, na realidade. Transformam-se tantas vezes, para avançarem melhor fortalecidas na experiência e no sofrimento”[13].

Do Agnello otimista de 1910, temos em contraste este da citação acima, bastante pessimista e desesperançoso. Contudo, quase vinte anos depois, nos parágrafos finais de Fundação de Manaus, Bittencourt parece novamente otimista em sua nostalgia, e faz dessa vez um interessante paralelo, entre a história de Manaus e a sua própria história. Os adjetivos comumente associados à sua pessoa, ele os associa à cidade: “a cidade mantendo o sorriso acolhedor, o ar hospitaleiro, a generosidade franca, a tranquila doçura que é sua marca registrada” (Bittencourt, 1999, p. 49), e completa: “Com o pensamento voltado para Manaus em sua magia envolvente, faço um retrospecto de minha vida, de minha prolongada atividade ali, e encontro um saldo altamente compensatório. É o obstinado amor que sinto – e que constato em quantos me cercam, meus filhos, meus amigos, ex-alunos, que são também filhos espirituais – pela terra poderosa e amável que nos serviu de berço, e a cujo futuro promissor faço meus mais ardentes votos[14].

Esses balanços que Bittencourt faz, mais sentimentais que técnicos, nesses dois momentos, certamente estão vinculados às questões vivenciadas em cada um. Em 1946, vivia-se o pós-guerra, e o Brasil passava por uma transição, saindo do Estado Novo e vivenciando o período da redemocratização, com a Constituinte de 1946, onde se debatia a destinação de verba específica para a Amazônia. Em 1969, Agnello fazia parte da “Manaus que estava todinha em Copacabana”[15], exercendo seu papel de intervenção intelectual no Amazonas de seu apartamento na Guanabara.

Entretanto, esse posicionamento de Agnello Bittencourt, ainda que distante do Amazonas geograficamente, conformou também outro distintivo associado a ele: para além do magistério e da produção escrita, em sua atuação na política e no funcionalismo público, um detalhe que é sempre frisado é o seu amor ao Amazonas, a sua devoção ao desenvolvimento de sua terra natal, enquanto nela viveu e depois de ter saído dela, tendo permanecido a ela ligado, e isso é visto com enorme apreço por seus pares.

  1. LINDOSO, José. Homenagem ao Professor Agnello Bittencourt. Jornal do Commercio, Manaus, Amazonas, nº 21.925, p. 7, 10/08/1975.
  2. CRUZ, Wladimir. O aquariquara do Amazonas. Jornal do Commercio, Manaus, Amazonas, nº 21.916, 31/07/1975, p. 3.
  3. CID, Pablo. Palavras… Jornal do Commercio, Manaus, Amazonas, nº 21.916, 31/07/1975, p. 3.
  4. Agnello Bittencourt. Centenário do seu nascimento. Manaus: Imprensa Oficial, 1976, p. 5.
  5. OLIVEIRA, José Cidade. Carta de Ulysses. Jornal do Commercio, Manaus, Amazonas, nº 21.916, 31/07/1975, p. 3.
  6. Agnello Bittencourt. Centenário do seu nascimento. Manaus: Imprensa Oficial, 1976, p. 5. Parece pouco plausível essa informação, tendo em vista que, àquela altura, Agnello Bittencourt vivesse a primeira década de sua vida.
  7. BITTENCOURT, Agnello. Balanço entre duas épocas. O Jornal, Manaus, Amazonas, 11/08/46.
  8. Agnello Bittencourt. Centenário do seu nascimento. Manaus: Imprensa Oficial, 1976, p. 8.
  9. Aqui faço referência ao título de DIAS, Edinea Mascarenhas. A ilusão do fausto: Manaus, 1890-1920. Manaus: Editora Valer, 1999.
  10. BITTENCOURT, Agnello. Balanço entre duas épocas. O Jornal, Manaus, Amazonas, 11/08/46.
  11. Trata-se do texto “Manaus do Futuro”, que segundo o autor, ele teria publicado em revista da época que, contudo, não revela o nome. Estou em busca desse texto.
  12. BITTENCOURT, Agnello. Balanço entre duas épocas. O Jornal, Manaus, Amazonas, 11/08/46.
  13. Idem.
  14. Cf. BITTENCOURT, Agnello. Fundação de Manaus: pródomos e sequências 2.ed. rev. Manaus: Governo do Estado do Amazonas; Universidade do Amazonas, 1999, p. 49.
  15. Cf. DAOU, Ana Maria. A Cidade, o Teatro e o “Paiz das Seringueiras”: práticas e representações da sociedade amazonense na virada do século XIX-XX. Rio de Janeiro: Rio Book’s, 2014, p. 23.*Hélio Dantas é professor de História na rede pública municipal de Manaus e historiador na Secretaria de Cultura do Estado do Amazonas. É autor do livro “Arthur Cézar Ferreira Reis: Trajetória Intelectual e Escrita da História” (Paco Editorial, 2014), e, atualmente, está escrevendo uma tese de doutorado sobre a história da historiografia amazonense.

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