Manaus, 19 de agosto de 2025

As mil vidas de Ajuricaba: genealogia de uma tradição (re)inventada (parte I)

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*Helio Dantas

Em 2019, nas comemorações dos 350 anos da cidade de Manaus, a Rede Amazônica de Televisão fez uma série de enquetes em busca de definir os símbolos de Manaus: comidas, frutas, animais, músicas, expressões, personalidades e pontos turísticos. Disputando com os nomes de Cláudio Santoro, Eduardo Ribeiro, Lindalva Cruz e Tenreiro Aranha, Ajuricaba foi escolhido pelos votantes como personalidade que é “a cara de Manaus” por 46% dos votantes.

Como ele veio a se tornar a “cara de Manaus”, porém, não é algo que remonta à enquete televisiva. A associação da figura de Ajuricaba ao Amazonas e à Manaus é antiga e multifacetada. Já em fins do séc. XIX, o jornalista Bento Aranha assinava alguns de seus textos na imprensa periódica em Manaus com o pseudônimo de Ajuricaba. Através de impressos (poemas épicos, discursos políticos, narrativas, peças teatrais), artes plásticas, fotografia, cinema e música popular, essa produção é levada a efeito por vários agentes sociais (artistas, representantes políticos, professores e pesquisadores) e difundida na cultura histórica, na universidade, na comunicação de massa, no senso comum. Em Manaus, capital do Amazonas, ainda hoje, seu nome batiza bairros, ruas e estabelecimentos comerciais.

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Mas quem foi Ajuricaba?

Sabemos que ele foi uma importante liderança ao longo dos embates entre as tropas lusitanas e as populações indígenas do vale amazônico durante o diretório pombalino, no início do séc. XVIII. Pertencente ao povo Manaus, este principal teria organizado a resistência ao avanço das tropas de resgate portuguesas, tendo sido capturado em 1727 e sua morte teria acontecido em circunstâncias duvidosas, sendo a versão oficial a de que teria se suicidado no trajeto para Belém.

Talvez seja possível definir, pelo menos, quatro momentos em contextos históricos específicos onde a figura de Ajuricaba é trabalhada de diferentes maneiras. O primeiro deles se dá a partir da Primeira República, com a busca de constituir de um panteão de “vultos e heróis”, datas cívicas e acontecimentos marcantes para a memória histórica amazonense. Arthur Reis, em seu livro de estreia, História do Amazonas, de 1931, dedica todo um capítulo para Ajuricaba, onde encontra-se um curioso paradoxo: ao mesmo tempo que Reis elogia o avanço colonizador lusitano na região, apresenta os Manaus como um povo superior, cujo ânimo guerreiro foi o embrião das famílias amazonenses, e Ajuricaba como um guerreiro que se rebelou contra a “ação criminosa de brancos cujos desacertos resultavam mau para a religião e para o Estado”. Arthur Reis finda por apresentar Ajuricaba como uma espécie de pré-brasileiro, “um guerreiro ilustre, dos primeiros a batalhar pela liberdade na América”, tanto que o autor insiste no argumento de que Ajuricaba, apesar de fazer frente aos lusitanos, a quem Reis devotava tanta admiração, não se aliou aos holandeses.

O segundo momento de difusão da figura de Ajuricaba pode ser delineado em meados do séc. XX. No ano de 1948, quando então foi comemorado o primeiro centenário da elevação de Manaus à categoria de cidade, duas publicações chamam a atenção. Ajuricaba, o guerreiro manau, poema épico dividido em 6 partes de autoria do bancário amazonense Hugo Bellard, que foi lido em sessão solene na AAL e exalta a atuação de Ajuricaba, vinculando-o como um pai do povo amazonense, “em cujas veias corre, em nossas veias passa//redivivo e viril, ressurgido de novo//nas grandes gerações do nosso povo”.

Semelhantemente, o Álbum da Cidade de Manaus (1848-1948), traz em seu conteúdo duas laudas, com uma imagem fotográfica (a que ilustra o cabeçalho dessa publicação) com a legenda “O guerreiro Ajuricaba”, acompanhado de um texto curto: “Diz a história da Amazônia que Manaus era o nome de uma tribo indígena que primitivamente dominava o vale do Rio Negro. Ajuricaba que a ela pertencia chefiou a célebre Confederação Ameríndia da Amazônia que fez perigar o domínio lusitano nessas partes do Novo Mundo. Ajuricaba caiu prisioneiro, conduzido acorrentado numa canoa para bordo de um veleiro português, onde seria levado para corte. O guerreiro índio, altivo e nobre, atirou-se com seus grilhões a voragem das águas, preferiu morrer a viver como escravo, e seus feitos, revestidos todos de grande heroísmo e denunciadores de profundo sentido nativista, atravessou o tempo. Para os filhos do Amazonas, Ajuricaba tornou-se um símbolo”.

Curiosamente, a mesma imagem aparece na folha de rosto do livro de Bellard, acompanhada de uma legenda que diz “retrato simbólico” (legenda esta ausente no Álbum). Não se sabe a procedência da imagem, e, muito embora não haja nenhum registro iconográfico de Ajuricaba, a fotografia repercutiu, décadas depois, principalmente no contexto da internet, aparecendo em blogs pessoais, mas também em sites oficiais, como é o caso do post dos resultados da referida enquete promovida pela Rede Amazônica em 2019 e também ilustrando o texto “Ajuricaba, o guerreiro da liberdade”, no site “Plenarinho”, da Câmara dos Deputados, com conteúdo voltado para estudantes da educação básica.

No próximo texto, abordarei o terceiro e o quarto momento dos usos da figura de Ajuricaba. Até lá!

*Hélio Dantas é professor de História na rede pública municipal de Manaus e historiador na Secretaria de Cultura do Estado do Amazonas. É autor do livro “Arthur Cézar Ferreira Reis: Trajetória Intelectual e Escrita da História” (Paco Editorial, 2014), e, atualmente, está escrevendo uma tese de doutorado sobre a história da historiografia amazonense.

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