Manaus, 16 de setembro de 2024

A Capitania de São José do Rio Negro

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*Mario Ypiranga Monteiro

Continuação…

A Função dos Grupos Humanos

Por esta amostra se aquilata a tempera do soldado português. Evidentemente o trabalho de conquista se fazia com elementos dessa envergadura moral. É por isso que a penetração do Amazonas realizou-se com absoluta perseverança e valor. 1) Em 1619 vêmo-lo, ao mesmo Pedro Teixeira, subindo o Amazonas, desvendando os mistérios da selva, em penetração que não seria definitiva, até Carepe. 2) Sete anos mais tarde, em 1626, o soldado, comandando uma tropa de resgate, penetra o curso inferior do Tapajós. 3) Dois anos depois, sobe novamente o Amazonas, dirigindo outra tropa de resgate, e por fim, 4) Em 1637 tem início a grande aventura, que abriria o setentrião à cobiça dos aventureiros espanhóis, no oeste, e holandeses e ingleses, a leste, no farto delta. A expedição do grande cabo-de-guerra assinala o período da conquista oficial da Amazônia.

Daí por diante, essa conquista faz-se quase que ininterruptamente por meio das famosas tropas de resgate, baluartes da fixação e ao mesmo tempo elementos de destruição do gentio. Seria extemporâneo enumerá-las agora. Faremos, entretanto, mais adiante, no corpo da tese que estamos procurando desenvolver com os documentos sob os olhos, à luz de um critério histórico honestíssimo, dando-lhe a interpretação sociológica mais conveniente.

Sobre essas famosas tropas de resgate, muito teremos que dizer no andamento do nosso trabalho – que elas representam, para a Amazônia, uma como abusiva maneira de conquista impiedosa que reverte em benefício da própria colônia. É a verdade, nua e dura, mal interpretada pelos ardores nacionalistas. Compreendemos que haja uma razão, de ordem histórica e de ordem sentimental, que presida os excessos de entusiasmo combativo. derredor dessas tristes bandeiras de destruição. Torna-se, entre- tanto, necessário avaliar o sentido da conquista. O colono nada mais fez que aplicar, na América, os mesmos processos persecutórios já desenvolvidos e com força legal nas Ordenações. Há, entretanto, uma diferença, nesses processos, que é mister ressaltar, sem o qual perde o nosso tentame de interpretação o seu valor histórico: o homem americano, pelas suas vinculações com a natureza, pelas suas raízes sólidas na terra, pela sua cultura estagiária ou de transição,12 não estava disposto a aceitar, sem reativos, as normas de progredimento desenvolvidas pelo colonizador. Daí a indissimulável protervia com que agiram ambos os povos, arruinando-se ao mesmo tempo as duas culturas, no início, amparadas mais tarde pelo gênio dos estadistas portugueses, quando viram que a função da raça devia ser a europeização do meio, e antes que os dissolventes sociais da terra eliminassem os resíduos fundamentais do meridional, a língua, os costumes, os hábitos, a própria andadura política. Esse, pois, o motivo da dis- sidência que culminou com a ruína e o desaparecimento de tribos inteiras reduzidas ao cativeiro. Que digo eu? De nações valorosas como é exemplo a dos Manau, subvertidas na degradação do álcool, eliminadas pelas epidemias, como os Timbira, os Guarani do norte. Mas é convincente, no meio de todo esse furioso delírio de espantosas carnificinas, de que a história da Amazônia está repleta, o grau de interesse do colono pela conquista e povoamento da terra, feito com o auxílio desses elementos. E é preciso não esquecermos a enorme área do Brasil, para aquele tempo. O espaço – tirano do homem, da civilização, aumentava proporcionalmente na razão inversa da deficiência demográfica do reino. Daí, logicamente, a necessidade de chamar-se o gentio a tomar parte no desenvolvimento social da colônia. Não é verdade e os documentos no-lo confirmam sisudamente, que essa conquista, fixação e desenvolvimento, se fizesse sem o auxílio do índio. É por essa razão que Arthur Reis, ao indicar os elementos combativos dessas décadas, nomeia-os por lusos-brasileiros. Mas eu o repeti três vezes já no decurso de poucos anos.13 A participação do selvagem na obra cristã política da conquista e civilização da Amazônia, é um fato indiscutível. Ela começa com a escravização, a princípio esporádica, depois legalizada, defendida inclusive pelos missionários. Foram anos de lutas inglórias por que se bateram muitos sacerdotes, procurando salvar os indígenas do infame tormento. Luta desigual da caridade contra o interesse econômico; da espada contra o crucifixo, da coroa contra os excessos particulares; do direito contra a injustiça. Se o direito triunfou contra o erro; se a coroa venceu os escrúpulos baixos; se o crucifixo derrotou a implacável perseverança da espada, se a caridade destruiu os privilégios económicos, devemo-lo à constância, ao amor, aos bons sentimentos do clero.14

A função da tropa de resgate era inicialmente o índio e a droga do sertão. O trabalho da colheita da droga, entretanto, por mais complexo, desviava o cabo-de-tropa para outros objetivos. Atiravam-se à caça ao silvícola. Esse sim, rendia muito mais. Foram inúmeras as expedições, das quais não poucas com caráter punitivo, de que participara Pedro Teixeira e outros célebres capitães da época. Entretanto, não se deve atribuir a esse bandeirismo desenfreado, o mérito de haver produzido um sistema colonial perfeito no setentrião. Não foi a tropa de resgate senão a prova de fogo sustentada pelo soldado no sertão, contra o índio. Ela é o reverso daquele outro sistema de atração experimentado pelo sacerdote. Mas há, aqui, uma dessemelhança: enquanto a tropa de resgate é a conquista móvel, rompante, a redução é a estática mobilizada no sentido de conquista espiritual e temporal a um tempo. Não sei como se processam esses fundamentos cristãos, nascidos, um da ferocidade implacável do soldado, da ambição, do desprezo pela raça inferior; o outro, da mansidão do sacerdote, da sua grandura moral. O fato é que dos deslocamentos sucessivos se originaram concentrações ativas, os plasmas dos futuros povoados, das cidades progressistas. Foi assim que nasceu o Presepe, isto é, Santa Maria de Belém: um exemplo do interesse comum dos conquistadores, fundada por Francisco Caldeira de Castelo Branco. Com a cooperação do gentio Tupinambá, fundou a estacada de madeira, a que chamou cristamente Presépio15 É a cidade de Belém que se iniciava. Os fundamentos dela são a prova robusta do conceito unânime em que era tido o soldado português àquela época. Diferentemente de Manaus, que apareceu como resultado da tropa de resgate,16 sem que The faltasse o apoio espiritual. Acontecia isso no norte. O aparecimento das cidades, no sul, dependia de outras condições, bem que algumas vezes era o resultado do trabalho das Missões.

Todos os cronistas contemporâneos são unânimes na reprovação dos feitios dos massacres sistematizados. Entretanto, hoje, à luz de um critério sociológico honesto, considerando-se o tempo, a distância da metrópole, urge desculpar os excessos em honra do alto descortino da política reinol. A verdade é que talvez tudo tivesse degenerado em ruína para a colônia nascente, não fosse o sacrifício de milhares de criaturas arrancadas ao amago da floresta. Justo é correr em auxílio do colono. Nem sempre era aplicado o mesmo processo bárbaro das carnificinas, e temos sob os olhos o fato documentário capaz de constituir prova física das injustas acusações.

O segundo exemplo que eu desejava referir é a da fundação de Manaus. O processo foi diverso, embora idêntica a maneira da conquista. Vimos como no delta se processou a conquista. Fundada a 22 de dezembro de 161517 a Feliz Lusitânia, sob o patrocínio de Nossa Senhora de Belém, não devia, por nenhum modo, ficar, como capitão-mor,18 Caldeira Castelo Branco inativo.19 O ex-capitão-mor do Rio Grande do Norte, tomada a primeira iniciativa de conquista e de colonização, esta se faz lentamente, numa continua preocupação econômico-política que parece haver escapado à argúcia dos historiadores desse período. Arthur Reis, o mais autorizado, e sempre o melhor informado dos nossos historiadores, quer que a inclinação mercantilista – e quem diz mercantilismo diz interesse econômico-financeiro – tenha sido a principal preocupação dos salteadores do lito amazônico.20 Certo. Mas, a par da vontade férrea do lusíada, não devemos esquecer que agiu sob o impulso daquele enérgico critério contratual que o fez buscar novos mundos pelos mares desconhecidos. Não há nisso por- ventura nenhum propósito, pois está claro o critério do granjeio da subsistência. Que significa, ademais, a própria escravização do indígena, senão um dos mais fortes ângulos econômicos daquela época?21 O colono branco, isto é, o soldado, a nada atendia que não fosse o próprio interesse particular. O escravo amarelo era o sustentáculo das missões, di-lo o farto documentário. Sem o braço indígena nada se faria. A tanto monta essa necessidade, que ao depois, escasseando o escravo em todo o litoral, do delta amazônico ao Maranhão, houve por bem o governo aceitar a exposição de motivos feita pelos conquistadores. Pois não seria esse critério que determinava a forma de bandeirismo, em que sobressai como elemento econômico o selvagem? As tropas de resgate nada mais eram, com efeito, que a busca, incessante e contínua, sob a forma indisfarçável da escravização, do homem moreno, dono das terras taladas. Se escondesse embora sob o rótulo menos hostil de entradas. Não ficaria completa a história desse período tumultuário da conquista, sem o aparecimento do caçador de escravos. Ela é, mesmo, obrigatória no processo de progressão da sociedade colonial. Estabeleçamos um paralelo, que virá unir- se ao depois, histórica e socialmente, sob o mesmo meridiano de Tordesilhas. No sul – abaixo do Rio Amazonas – as bandeiras não têm objetivo diverso: o índio nela integrado como elemento participe ou como simples objetivo de lucro, resulta um argumento de economia. Demandam inicialmente o oeste, numa tentativa económico-política de conquista, em que se ocultam interesses de granjeio.22 É o índio fator econômico tão interessante que originou nada menos que o alargamento das fronteiras lusas. Das bandeiras se ocupou largamente Cassiano Ricardo numa maravilhosa tese sociológica insuperável.23 No setentrião, as entradas são grupos em movimento para o oeste também, seguindo a contra-corrente. Nelas igualmente o índio toma parte saliente; mas o objetivo colimado é o braço para a lavoura, e secundariamente as drogas; fator econômico tão ou mais importante que o ouro e as pedras preciosas. Essas bandeiras chegaram, um dia, a encontrar-se em pleno Amazonas, pelos afluentes Madeira, Tapajós24 e Xingu,25 ou pelo Araguaia, uma varando o país, do sul para o norte; a outra furando, caminhando fluvialmente para o sul, para oeste, para o norte até o Rio de Vicente Pinzón, hoje Oiapoque. Paulistas, bandeirantes atrevidos da rija cepa lusa, mamelucos e índios, talvez alguns tapaiunas, eram António Raposo, Manuel Felix de Lima,26 José Leme do Prado, João de Souza Azevedo,27 alferes José 26 Peixoto da Silva Braga, Sebastião Pais de Barros, Pascoal Pais de Araújo,28 João Pacheco do Couto, Jacinto de São Payo Soares, Leonardo de Oliveira.29 Lá as entradas, em sentido horizontal, chamavam-se bandeirismo; aqui, manifestamente verticais, sertanismo. A palavra çertão é trivial na crônica do Brasil colónia, corriqueira nos documentos coevos, comuns portanto aos dois aspectos sociais da conquista. É interessante como os próprios bandeirantes se serviam do veículo natural da região encharcada para atingirem o grande rio: os caminhos que andam, mais uma vez provaram ao homem do planalto que a conquista, aqui, se fazia à revelia das correntes.30 E foram essas correntes que arrastaram os conquistadores em todas as direções.

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12 Não é lugar para discutir-se a teoria de um autoctonismo cultural, de uma regressão à fase primária de civilização ou de um começo, consoante as insinuações correntes.

13 Mario Ypiranga Monteiro, O Estado Social do Índio Brasileiro, Manaus, 1946: Aspectos Evolutivos da Lingue Nacional, Manaus, 1947; Fundação de Monaus. Manaus, 1948.

14 Claro que se deve fazer restrições.

15 Diz Ernesto Cruz “que ainda hoje subsiste”, Belém. Aspectos geo-sociais do Município, 1, 19, José Olympio Editora, 1945,

16 Mário Ypiranga Monteiro, Fundação de Manaus, 2.ª edição, Manaus, 1952.

17 idem, 8.

18 Patente conferida a Caldeira de Castelo Branco, a que se ajuntou o repolhudo título de descobridor

do Amazonas. Vd. Berredo, Anais Históricos do Maranhão, 1, 165.

19 Vd. a propósito do privilégio de primeiro descobridor e conquistador do Amazonas, Berredo, 201; do primeiro volume, na parte que diz respeito a Bento Maciel Parente e ao capitão Luís Aranha de Vasconcelos, que pretendiam ambos o mesmo título graúdo.

20 Arthur Reis, Estadistas Portugueses na Amazônia, 22, Rio de Janeiro, 1948.

21 “0 índio era a grande riqueza da colônia, que devido à penúria em que vivia, não podia dispensar sua

ajuda”. Moacir Paixão, Formação económica do Amazonas, Porto Alegre, 1940.

22 Vd. Frei Vicente do Salvador, História do Brasil, capítulo III – V. livro 1, 3.ª edição, São Paulo, s/d. e João Ribeiro, História do Brasil.

23 Marcha para Oeste, 2. edição, Rio de Janeiro, 1942.

24 João de Sousa Azevedo, saindo de Cuiabá, em 1747, após freqüentar os rios Paraguai, Sipotuba e Arinos, atinge o Tapajós.

25 Em 1682, o Anhanguera atingiu o Xingu, descobrindo as minas dos Martírios.

26 1742. Desceu o Guaporé, Madeira, Amazonas, até o Pará. 27 Arthur Reis, A Política de Portugal no Vale Amazônico, 14, 15, 17 até 20.

28 Idem, idem.

29 Aliás o mesmo fenômeno é apontado no sul, onde o Rio Tieté exerceu influência social sobre as bandeiras.

30 Pedro Calmon in A Restauração e o Império Colonial Português, 87.

Continua na próxima edição…

*Mário Ypiranga Monteiro (1909-2004). Amazonense de Manaus, historiador, folclorista, geógrafo, professor jornalista e escritor. Pesquisador do INPA, membro da Academia Amazonense de Letras e do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas. É o autor que mais escreveu livros sobre História do Amazonas, com quase 50 títulos.

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