“Os fundos estaduais precisam deixar de ser moeda de barganha política e tornar-se instrumentos de transformação territorial e cidadã.”
A desigualdade que o progresso não corrige
O Amazonas voltou a reduzir seus índices de fome em 2024, segundo a Pnad Contínua do IBGE. Mas a boa notícia esbarra num paradoxo cruel: ainda é um dos piores estados do país em segurança alimentar. Enquanto Santa Catarina lidera o ranking nacional com 90,6% dos domicílios em situação de segurança alimentar, o Amazonas ocupa a 24ª posição, com apenas 61,1% dos lares com acesso regular à comida.
Isso significa que quase 1,8 milhão de amazonenses ainda enfrentam algum grau de insegurança alimentar – dos quais 91 mil em condição grave, ou seja, convivendo com a fome.
Produz muito mas distribui pouco
Esses números, frios em aparência, revelam o drama de uma região que alimenta o PIB nacional com suas riquezas naturais e industriais, mas ainda não consegue alimentar sua própria gente. É o retrato de uma sociedade que produz muito, mas distribui pouco – e que parece aprisionada num modelo de desenvolvimento que não se traduz em dignidade.
A dualidade estrutural da renda: entre o pão e o patrimônio
O estudo recém-divulgado pela Unicamp, assinado pelos economistas Cláudio Salvadori Dedecca e Cassiano Trovão, ajuda a compreender a natureza dessa desigualdade. Ele aponta duas formas distintas de olhar a renda:

Embarcação regional amazônica. Foto: Gisele Alfaia
- A renda corrente, proveniente do trabalho, previdência e programas sociais – base dos estudos socioeconômicos tradicionais.
- A renda patrimonial, derivada dos bens e direitos acumulados, ou seja, da riqueza propriamente dita.
No Brasil, por falta de dados sobre patrimônio, sempre olhamos a primeira. Mas quando, em 2024, a Receita Federal abriu parte das informações da Declaração do Imposto de Renda da Pessoa Física (DIRPF), a realidade se impôs de forma devastadora: 10% dos declarantes concentram 78,4% da riqueza nacional. E o 1% mais rico, sozinho, detém 30% de todo o patrimônio declarado.
Bilhões em tributos
Essa elite financeira vive num país onde 75% dos adultos sequer possuem renda tributável ou patrimônio mínimo para declarar. Um contraste que, transposto à realidade amazônica, ganha contornos de tragédia social: uma economia que gera bilhões em tributos e benefícios fiscais, mas que não rompe o cerco da desigualdade histórica.
A riqueza concentrada e o poder político que se alimentam mutuamente
Dedecca e Trovão mostram que a desigualdade no Brasil não é apenas um efeito econômico – é um mecanismo de poder.
Os mais ricos pagam proporcionalmente menos impostos do que os mais pobres. Entre os 0,1% mais ricos, apenas 2,8% da renda é efetivamente tributada; o restante é isento ou submetido a alíquotas simbólicas. A consequência é um sistema fiscal regressivo, que legitima privilégios e perpetua a exclusão.
Essa engrenagem – poder político, riqueza e privilégio – opera como um circuito fechado. O topo da pirâmide financia campanhas, influencia decisões e molda políticas públicas que asseguram a própria preservação. A desigualdade, nesse sentido, não é um acidente do sistema: é sua essência.
Amazonas e a abundância perversa
No caso do Amazonas, o paradoxo se agrava. O Polo Industrial de Manaus – motor de uma das maiores arrecadações fiscais do país – gera uma contribuição federal superior a dois terços da riqueza produzida no Estado. Além disso, fundos como o FTI (Fundo de Fomento ao Turismo, Infraestrutura e Serviços), o FMPES (Fundo de Fomento às Micro e Pequenas Empresas) e a UEA (Universidade do Estado do Amazonas) foram concebidos justamente para induzir o desenvolvimento regional, interiorizar oportunidades e reduzir desigualdades.
Contudo, a persistência da fome, da pobreza e da precariedade básica no interior revela que esses instrumentos não estão cumprindo plenamente sua função social.
Instrumentos de Desenvolvimento Regional: Limites e Desafios
A função social dos fundos estaduais no Amazonas
Apesar da criação de mecanismos como o FTI (Fundo de Fomento ao Turismo, Infraestrutura e Serviços), o FMPES (Fundo de Fomento às Micro e Pequenas Empresas) e a UEA (Universidade do Estado do Amazonas) com o objetivo de promover o desenvolvimento regional, interiorizar oportunidades e combater desigualdades, observa-se que esses instrumentos não estão cumprindo plenamente sua função social. Parte dos recursos é retida pela União; outra parte, capturada pela política – muitas vezes usada como ferramenta de controle eleitoral. Como resultado, comunidades inteiras continuam enfrentando dificuldades básicas, como acesso limitado à energia, saneamento precário e insegurança alimentar, evidenciando que os fundos estaduais precisam ser transformados de moeda de barganha política em verdadeiros instrumentos de transformação territorial e cidadã.
Parte dos recursos é retida pela União; outra parte, capturada pela política – muitas vezes usada como ferramenta de controle eleitoral.
Enquanto isso, comunidades inteiras sobrevivem sem energia confiável, sem esgoto, sem renda, e comendo quando o Estado permite.
A fome como sintoma de um modelo esgotado
É inegável que houve avanços no mercado de trabalho: o Amazonas registrou em 2024 a maior taxa de ocupação dos últimos dez anos (55,9%), com queda no desemprego e na informalidade. Mesmo assim, o rendimento médio caiu 7,35%, segundo o IBGE. Ou seja: mais pessoas trabalhando, mas ganhando menos.
E quando a renda real não cresce, o alívio na fome vem apenas pela injeção temporária de programas de transferência de renda – o Bolsa Família, o Auxílio Estadual – que, embora fundamentais, não substituem a criação de um ecossistema produtivo inclusivo e sustentável.
A fome, portanto, não é apenas um indicador social: é o reflexo de um modelo de crescimento que concentra benefícios, distribui migalhas e naturaliza a miséria como estatística.

foto: Gisele Alfaia
No coração da Amazônia, onde a floresta poderia inspirar uma nova economia do equilíbrio, a desigualdade continua sendo o produto mais resistente à mudança.
Um apelo à responsabilidade pública
É hora de revisitar o pacto federativo e os mecanismos de distribuição dos recursos que a Zona Franca gera.
Não basta o Estado arrecadar – é preciso redistribuir com propósito, com base em métricas de desenvolvimento humano, interiorização da indústria, geração de valor social e fortalecimento das economias locais.
Os fundos estaduais precisam deixar de ser moeda de barganha política e tornar-se instrumentos de transformação territorial e cidadã.
Enquanto isso não ocorrer, o Amazonas continuará sendo o espelho invertido do Brasil: uma das regiões mais ricas da Terra e, paradoxalmente, uma das que mais sentem fome.
Views: 7

















