*Éder de Castro Gama
CAPÍTULO 1
Os festejos de Nossa Senhora do Rosário em Itacoatiara
Os festejos de Nossa Senhora do Rosário, na cidade de Itacoatiara, nos permitem pensar as diferentes formas e sentidos que os estratos ou grupos sociais têm na manifestação religiosa de fé, devoção de uma santa ou santos, nas suas atividades recreativas e burlescas, como os arraiais e festas dançantes. O lugar é o cenário de um desenvolvimento histórico que perpassa todo o desenvolvimento de ocupação e conquista da Amazônia, dado por um Estado Colonial Português acompanhado do poder religioso da Igreja Católica, ambos desde o séc. XVIII.
A festa de Nossa Senhora do Rosário no Século XIX
A festa, apesar de ser expressão de uma fé oficial, advinda do processo de colonização Amazônica, do Estado português em colaboração com a Igreja Católica que durou mais de 200 anos, iniciando em fins do século XVI, culminando com a expulsão dos Jesuítas no ano de 1757, por desacordo entre as reformas pombalina e nova ordem pública1, vem marcar a participação popular frente ao sentido oficial dada pelas autoridades religiosas. Como se pode observar em estudos feitos por Silva (1999), sobre a Paróquia de Nossa Senhora do Rosário de Serpa, ao descrever os relatos dos cronistas viajantes do sec. XIX, Henry Walter Bates (1825 – 1892) e Alfred Russel Wallace (1823 – 1913).
Decorriam exatos noventa anos da criação da Paróquia e dos notáveis estrangeiros presentes em Serpa testemunhavam a reunião íntima do religioso e do profano. Após a encenação espiritual e contemplativa da missa de fim de ano no interior da matriz, à tardinha os fiéis se transportavam à rua para formar a procissão em homenagem à padroeira.
(…) nessa parte da cerimônia “algumas mulheres enfeitadas de fitas e de flores, iam dançando pelas ruas, no trajeto para a igreja. O padre ia à frente, da maneira mais burlesca possível”. Nesse momento, a procissão – evento que desde priscas era se tornara tradicional e duradouro nas festas da Igreja Católica – ocorria da seguinte maneira: sacerdote à frente, marchava a multidão em filas, entoando preces e conduzindo a imagem da santa postada sobre o andor ornamentado com fita e flores. No começo da noite, realizava-se o arraial – outra transmissão de valores espirituais através de gerações – marcado pelo entoamento de músicas e caracterizado pelo forte ajuntamento de populares locais e de romeiros chegados na véspera, que se serviam de comestíveis e de jogos e diversões expostas nas barracas irregularmente distribuídas pela praça da Glória e travessa Mítica, viela esta mais próxima da igreja. O ponto alto do arraial era a quermesse, feira com leilão de prendas expondo frutos e animais, principalmente (SILVA, 1999, p.98-99).
Em relato extraído diretamente do livro “Um naturalista no Rio Amazonas”, feito por Henry Bates, no século XIX, nos traz com detalhes a diversidade dos festejos de Serpa realizada à época do Natal, nos descreve os diferentes grupos e sentidos que eles davam às suas manifestações de fé, durante o mês de dezembro.
Em 1849 (..) Era véspera do Natal quando chegamos, e a vila mostrava-se cheia de animação por causa do grande número de pessoas que tinham vindo de fora para as festas. (…) Algumas das cerimônias realizadas no Natal não deixavam de ser interessantes (…) pela manhã, todas as senhoras e moças do lugar trajando blusas de gaze branca e vistosas saias de chita estampada, seguiram em procissão até a igreja, depois uma volta pela cidade a fim de chamar os vários “mordomos” cuja função era ajudar o “juiz” da festa. Cada um desses mordomos segurava uma cumprida vara branca, enfeitada de fitas coloridas; inúmeras crianças participavam também da procissão, cobertas de grotescos enfeites. Três índias velhas iam na frente, levando o “sairé”, que consiste num traçado de cipó semicircular, recoberto de um tecido de algodão e incrustado de pedaços de espelho e enfeites semelhantes. Elas agitavam essa peça pra cima e para baixo, cantando ininterruptamente um hino monótono e plangente na língua tupi e se voltando de vez em quando para os que vinham atrás, os quais nesses momentos interrompiam a sua marcha. (…) A noite o povo se entregou a alegres folguedos por toda a cidade. Os negros, devotos de um santo que tinha a sua cor – São Benedito – fizeram sua festa à parte e passaram a noite toda cantando e dançando ao compasso de um tambor comprido chamado “gambá” e do caracaxá (…) Nada se comparava, em monotonia, a esses sons, cantos e danças, que continuaram pela noite adentro com inexaurível vigor. Os índios não executaram nenhuma dança, já que os brancos e mamelucos tinham monopolizado todas as morenas bonitas do lugar, atraindo-as para os seus bailes, e as índias mais velhas preferiam assistir à festa ao invés de tomar parte nela. Os maridos de algumas delas juntaram-se às danças dos negros, e dentro em pouco estavam bêbados. Era divertido observar como se tornavam loquazes, sob a influência do álcool, os taciturnos índios. Os negros e os índios justificavam as suas bebedeiras dizendo que os brancos também se estavam embriagados do outro lado da cidade, o que era a pura verdade (BATES, 1979, p.123-124).
A descrição feita por Bates (1979), nos revela a estrutura social estabelecida na Vila de Serpa, pautada por aquilo denominado por DaMatta (1986) como “o mundo de Deus” onde, “os rituais religiosos (…) pretendo ordenar o mundo de acordo com os valores que são ali articulados como básicos (…) as coisas se ordenam de modo plenamente vertical. De cima para baixo”. Ou seja, vê-se claramente que as festas de Serpa eram programadas dentro da igreja católica, numa estrutura social articuladas entre o juiz da festa (coordenador geral) e os mordomos da festa (que ajudavam o juiz a realizar a festa). Esta estrutura hierárquica da igreja, era disposta nas procissões realizadas, onde tem-se as figuras clericais como ponto central nas procissões, seguidas dos responsáveis pela igreja e da festa numa ordem decrescente.
Para entendermos os diferentes grupos que tomam parte da festa, desde as manifestações religiosas até as expressões de divertimento, podemos citar o caso dos índios de Serpa que seguiram o sairé numa expressão religiosa e profana, perpassando pelo arraial e suas atividades feitas pelos brancos, até a dança executada ao som do gambá (tambor) em homenagem ao São Benedito, santo de cor negra que tinha e tem grande identificação com os negros do lugar.
Ao refletir sobre as festas nas colônias brasileiras, Mary Del Priore (2000) afirma que havia uma “espécie de caldo cultural da vida cotidiana na colônia, na qual se misturavam indivíduos de raças, condições e credos diferentes. Essa ouverture dava a dimensão sacro profana contida nos festejos de rua, dirimindo sensivelmente as pendências entre brancos e negros, senhores e escravos, pobres e ricos”. É tão claro, que há uma tensão velada na Vila de Serpa, que segundo Bates (1979), “os negros e os índios justificavam sua bebedeira, porque os brancos também estavam embriagados do outro lado da cidade”.
Vale a pena considerar, que o caldo cultural de Serpa descrita no Séc. XIX, advém dos seus pressupostos do sec. XVIII, quando foi instalada a Vila de Serpa e a paróquia de Nossa Senhora do Rosário de Serpa. Em um breve retrospecto a fundação da Vila de Serpa e a paróquia de Serpa nascem simultaneamente, numa época onde índios e os portugueses passam a conviver sobre o decreto pombalino, que pedia que os indígenas fossem contratados sob remuneração e que fossem tratados da mesma forma que os portugueses, pois pretendia-se aumentar a povoação da Amazônia.
Silva (1999), comenta que o povoado “Itaquatiara” teve seu nome mudado para Serpa no ano de 1758, em cumprimento à carta régia, que ordenava que todas as Vilas da Amazônia deveriam ter o nome de cidades portuguesas. Ainda para este autor, Serpa referia-se a “uma das vilas da Real Casa de Bragança”, a freguesia da província portuguesa do baixo Rio Alentejo, onde Mendonça Furtado (governador e capitão-general do Grão-Pará), passou a infância, faleceu e foi sepultado aos 69 anos de idade. Na Amazônia, no ano 1759, é que foi fundada a vila juntamente com a paróquia, sendo denominada como Vila de Nossa Senhora do Rosário de Serpa2.
Em outra publicação, Silva (1997) nos descreve que a instalação da Vila de Nossa Senhora do Rosário de Serpa ocorreu também com a edificação da primeira capela, “momento em que foi realizada a primeira missa de ação de graças pelo vigário-geral da Capitania, padre José Monteiro de Noronha”. A “primitiva igreja, construída de frente para o Rio Amazonas era pequena, feita de madeira e palha. Nela, se reuniam os índios, alguns poucos civilizados, cantando hinos e proclamando a religião de Cristo”.
Observa-se que este momento solene se assemelha ao vivido por Pedro Alvares Cabral e o padre Frei Henrique, com a realização da primeira missa no Brasil em 1500, onde, “essa solenidade de júbilo político-religioso de fundo festivo, como representada pela cerimônia pública de fincar a cruz de Cristo como marco de conquista temporal e espiritual, não constituíram privilégios dos portugueses no século XVI” (TINHORÃO, 2000, p. 19).
Silva (S. D) ao escrever a cartilha “Projeto Cultura na Escola”, publicada pela fundação André e Lucia Maggi, faz um breve compendio sobre a construção do prédio e reformas da igreja de Nossa senhora do Rosário. Segundo ele, a igreja colonial foi construída em 1759, depois foi consumido por um incêndio em 1791, ainda no mesmo ano foi construída uma nova igreja pelo governador Manoel da Gama Lobo D’Almada. No fim do século XVIII para meados do seguinte, a igreja sofreu várias reformas e no inverno de 1927, parte da igreja desabou. E nova igreja foi levantada nos fundos da praça principal, construção que durou quase duas décadas entre 1939 e 1940. A Matriz passou a chamar-se Catedral a partir de 1963. E finalmente passou por reforma em 2003 e 2012 pelo Bispo Dom Carillo Gritti, que teve inclusive seu altar principal, que era de mármore, descaracterizado, ganhando uma característica austera de cor dourada com entalhamento em placas de madeira.
Silva (1999) nos sugere que os padres da vila de Serpa, adotaram Nossa Senhora do Rosário como padroeira, devido a orientação da bula Papal assinada pelo Papa Clemente XI, de 3 de outubro de 1716, que pedia que se estendesse a festa do Rosário para toda humanidade. Ainda para este autor, o cotidiano dos fiéis de Serpa ocorria da seguinte forma,
ali, se reuniam os índios e os poucos civilizados existentes, cantando louvores de Maria e ensinando a religião de Cristo. Diante da imagem (…), toda ela engalanada de fitas multicores e alumiada por candeias rústicas, eram recitados ladainhas, terços e rezas e feitas súplicas e promessas. Abundavam nas festas as cantigas em língua nheengatu (SILVA, 1999, p. 74).
Pode-se dizer que os relatos descritos pelos cronistas Henry Walter Bates (1825 – 1892) e Alfred Russel Wallace (1823 – 1913), sobre os festejos da Vila de Serpa a época do Natal, é fundamental para entendermos os aspectos culturais que estão no cerne da sociedade colonial amazônica, uma vez que são poucos os relatos desta natureza. Estes nos revelam a rica mistura étnico-cultural entre o branco português europeu, administradores coloniais, o indígena nativo, fruto do processo de descimento para formação dos primeiros povoados e submisso ao trabalho e ao negro advindo de um processo de escravidão.
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1 Francisco Xavier de Mendonça Furtado, popularmente conhecido como Mendonça Furtado novo governador e capitão-general do Grão-Pará (1751 – 1759). Em 1751, havia recebido ondem para fazer cumprir as propostas da coroa portuguesa que pedia a emancipação irrestrita e absoluta de todos os indígenas, que não poderiam ser feitos de serviçais e só poderiam ser contratados mediante remuneração, além de erradicar as diferenças culturais e colocá-los em pé de igualdade com os luso-brasileiros, com vistas ao povoamento da Amazônia (BASTONE; REIS, 2018, p. 79).
2 Silva (1999) a festa de instalação da vila se Serpa, como de praxe, foi cercada de formalidades: Pelourinho, símbolo das franquias municipais à feição de coluna, foi levantado no terreno escolhido para servir a praça principal e, sob aclamações dos presentes, foram dados tiros para o alto em saudações ao rei de Portugal. Culminando a cerimônia, foi empossada a Câmara Municipal, constituída de vereadores escolhidos dentre os mais esclarecidos – portugueses e gentios – prestaram o juramento dos Santos Evangelhos, e designados os demais membros para reger as funções políticas: juiz ordinário, oficiais e diretor do povoado.
Continua na próxima edição…
*O autor é natural de Itacoatiara, vem trabalhando com a temática sobre patrimônio cultural a mais de duas décadas. É formado em Ciências Sociais (UFAM) e Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia (PGSCA/UFAM) especialista em Festas Populares e Religiosas da Amazônia. Formado em Direito (ULBRA/Manaus), MBA em Gestão, Licenciamento e Auditoria Ambiental (Anhanguera-Uniderp). É professor Universitário. Publicações em coautoria nos livros “Cultura popular, patrimônio imaterial e cidades” (2007) e “Culturas populares em meio urbano” (2012). Autor do livro “A Senhora, o Folclore e o Festival” (2022). É Assessor Jurídico e vem prestando assessoria ao patrimônio imaterial etno-história da Amazônia para empresas de licenciamento ambiental e arqueológico.
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