
*Éder de Castro Gama
CAPÍTULO 1
Continuação…
Após a formação do Estado do Grão-Pará e Maranhão, e a implantação do decreto pombalino que mandava expulsar os jesuítas das colônias portuguesas, determinou pela ordem do Governador Mendonça Furtado que houvesse igualdade entre indígenas e os portugueses em suas relações sociais, para que assim, entrasse em curso o plano de povoamento da Amazônia, que na fundação da Vila de Serpa já nasce sobe égide da paridade social, mesmo que o preconceito estivesse exposto de uma forma velada para o cumprimento de uma ordem colonial e clara como nos momentos observados por Bates, onde “os negros e os índios justificavam as suas bebedeiras dizendo que os brancos também se estavam embriagados do outro lado da cidade, o que era a pura verdade”. Ou seja, se eles podem, nós também podemos!
Tinhorão (2000) nos ajuda a entender que as festas no período colonial, assumem um caráter de um “fenômeno de oportunismo lúdico” onde todas as formas de expressão festiva a santos católicos, sobretudo, em um meio social, “a simplicidade favorecia(…) o controle por partes das autoridades, padres e proprietários”, onde “tornar-se-ia possível, graças à profusão de oportunidades, que o próprio poder oferecia aos governados e fregueses (…), através da reiteração com que procurava consagrar-se publicamente”.
Silva (1999) concorda com o escritor Elson Farias, que a devoção a Nossa Senhora assume uma atitude pedagógica, pois tornava mais factível a aproximação dos nativos da religião católica, onde a devoção à figura da Mulher-Mãe Divina fortalecia a comunicação entre catequistas e catequizados.
Ainda para este autor, entre a última década do século XVIII e as primeiras do século XIX, o dever dos paroquianos frente aos clérigos da igreja, era de prestigia-los obcecadamente, inclusive as autoridades diocesanas. “Havia uma certa apatia da parte dos iniciados na religião em compreender o real significado dos ofícios religiosos. E embora as missas contassem com o comparecimento em peso da população, a liturgia em latim 7 tornava mais difícil sua compreensão”.
Valeria a pena aprofundar os estudos sobre as manifestações religiosas da Vila de Serpa, desde a sua fundação em 1759 (séc. XVIII), até o início das décadas de 1980 do século XX, passando em revista todas as publicações sobre as manifestações religiosas do catolicismo local, como arquivos da Prelazia de Itacoatiara, atas de festas, informativos e outros. Os documentos intitulados Relatórios dos Presidentes de Província do Estado do Amazonas e aos jornais públicos que noticiavam as festas, nos fazem entender a dinamicidade das relações sociais, frente aos eventos festivos. É claro, isto demanda um verdadeiro trabalho arqueológico frente aos documentos restritos da cúria de Itacoatiara e uma garimpagem aos jornais que circularam na cidade.
Este trabalho vem demonstrar, ao exemplo da descrição feita por Bates e Wallace no séc. XIX, o primeiro trabalho de cunho etnográfico3, sobre a festa de Nossa Senhora do Rosário na cidade de Itacoatiara no ano de 2003, que tinha como preocupação as seguintes questões: descrever por meio do método etnográfico a Festa de Nossa Senhora do Rosário e interpretar o seu significado para as pessoas que participam anualmente do evento no município de Itacoatiara, entre a segunda quinzena do mês de outubro e primeira semana do mês de novembro, além de identificar e interpretar os múltiplos interesses de instituições, como a prefeitura municipal, a Prelazia de Itacoatiara, a Associação Comercial e empresas que se envolvem na festa, através de contribuições financeiras e doações, com vistas a definir a importância da festa para estas instituições. E, por fim, de identificar a repercussão da festa em nível local ou regional, considerando a vinda de pessoas de outros municípios e mesmo de Manaus para o evento. Considerando também a apresentação de atrações artísticas da capital, que podem contribuir para divulgação do município em um turismo de eventos.
O sentido religioso e cultural da Festa
Quem mora no município de Itacoatiara vivencia os ciclos das festas religiosas celebradas pela Igreja católica, onde em cada comunidade tem seu santo padroeiro, e quando chega o momento festivo dado pelo calendário oficial da igreja, celebra-se com uma grande festa intitulada de “noitadas de arraial”, que dura normalmente de 10 a 15 dias.
São realizadas as novenas e missas, os ritos religiosos, seguido dos arraiais uma manifestação festiva (em oposição ao sagrado, considerado profano) onde a comunidade aproveita para arrecadar dinheiro e donativos, por meio de vendas de produtos do leilão e da barraca de comidas típicas (mingau, bolos, churrasco, vatapá, lasanha e bebidas). Destinado para as despesas da igreja durante o ano (contas de água, luz, internet, reposição de sistema de áudio) ou complementar o orçamento para colocar em prática algum projeto de construção ou ampliação da igreja.
As noites do arraial são ambientadas ao som de músicas ao vivo ou playback, onde as pessoas aproveitam para dançar, divertir-se e socializar-se. Mas qual seria o real sentido da festa?
Itani (2003) considera que “a festa em si é uma ação de simbolização, na qual é aprepresentado um evento ou uma figura revestida de importância para coletividade festeira”. Ela nos sugere que, “compreender a festa requer ver e sentir as representações e imagens materiais e mentais que a envolvem”. Neste caso, é preciso compreender o sentido da festa para a comunidade religiosa que realiza e participa.
Tomemos o conceito de comunidade religiosa considerada por Eduardo Galvão (1976) e Charles Wagley (1988), onde ao desenvolverem seus estudos numa comunidade Amazônica batizada sobre o pseudônimo de Itá no Estado do Pará, encontraram uma relação estabelecida entre o tradicional e o moderno, que apesar de a comunidade de Itá ter se desenvolvida e transformada em cidade, permaneceu com os seus aspectos tradicionais, no que concerne às festas de santos e práticas de pajelança, como benzimentos e curas. Para Wagley (1988) todas as comunidades de uma área compartilham a herança cultural da região e cada uma delas é uma manifestação local das possíveis interpretações de padrões e instituições regionais”. Neste caso, quais foram os elementos tradicionais preservados no decorrer do tempo nos festejos de Nossa Senhora do Rosário?
Para Eduardo Galvão (1976) ainda sobre Itá, questiona-se: de que forma as instituições religiosas sofreram influências das forças econômicas e sociais que penetraram no vale de Itá? Ele nos demonstra que “as festas de Santo são um denominador comum entre as diferentes classes sociais da comunidade de Itá”, neste caso, a vida religiosa reúne os roceiros, seringueiros, caboclos e a gente da cidade.
Em Itacoatiara, as festas de santos podem ser tomadas como denominador comum entre as diferentes classes sociais que tomam parte das festas. Por exemplo, na festa de Nossa Senhora do Rosário, existe a participação dos diferentes grupos que se encontram no contexto social do evento, como os comunitários religiosos, associações de moradores, comerciantes, professores de escolas públicas, além da participação de paróquias da Prelazia de Itacoatiara4, de cidades como Urucurituba, São Sebastião do Uatumã, Silves, Itapiranga e de comunidades circunvizinhas a Itacoatiara, além de comunidades ribeirinhas e rurais que se ligam pela estrada Am-010 e da capital, Manaus.
Galvão (1976), notou que as festas de santos preservam as tradições antigas e criam laços de parentesco entre os indivíduos, onde “os brancos e gente da cidade são procurados pela gente mais pobre para apadrinhar seus filhos. Sua proteção é sempre pedida para a realização de festas das freguesias”. No caso da festa do Rosário em Itacoatiara, o apadrinhamento ocorre pelo compromisso que as famílias, lojas e comércios assumem na promoção da festa e sua promoção para toda a cidade, onde suas relações são colocadas à prova para conseguir donativos para realização do evento.
Para este autor, na cidade de Itá, “os católicos têm a sua igreja e uns sem números de capelas”, onde na cidade existe um santo padroeiro e outros santos, os chamados santos de devoção pessoal. Na cidade de Itacoatiara também há inúmeras igrejas e as festividades dos seus santos padroeiros, porém há um envolvimento destas comunidades e de paróquias preladas nos festejos do Rosário.
Galvão (1976), comenta que “a comunicação ou aproximação com o santo, para dele se obter auxílio se faz, sobretudo, através de ladainhas e novenas, independente de tratar-se de oração na igreja ou na capela, ou nos pequenos oratórios domésticos”. Na festa do Rosário, as manifestações de agradecimento dos fiéis, além das práticas religiosas de oração e devoção, ocorrem nas funções desempenhadas nos festejos, quando um fiel que teve uma graça alcançada, decide ajudar se inserindo nas equipes da mesa do leilão, da cozinha, do bingo, litúrgica e etc., mas principalmente, com doações em dinheiro para feitorias na catedral.
As práticas religiosas da festa do Rosário podem ser tomadas a partir de uma dimensão da cultura popular? Uma vez que desde as descrições feitas pelos cronistas viajantes Bates e Wallace no sec. XIX sobre os festejos da época do Natal passaram-se mais de 150 anos, a resposta é sim! Magnani (2003) nos ajuda a entender que “a cultura é mais que uma soma de produtos, é o processo de sua constante recriação, num espaço socialmente determinado”. Neste caso, o espaço dos festejos de Nossa Senhora do Rosário vem passando por inúmeras transformações e ressignificações, onde junta-se o tradicional e o moderno, valores de tradições ribeirinhas e rurais com uma sociedade industrial e comercial, já que algumas coisas permanecem e outras desaparecem.
Arantes (1981) nos orienta que a formação de uma cultura popular ocorre pelas condições de vida, de trabalho e as relações sociais em uma dada localidade. Ao estudar sobre a produção artística de operários na cidade de São Paulo, observa-se que foi o momento em que houve transformações políticas e econômicas de famílias que estavam situada ao longo do rio Tietê, influenciadas pelo processo de urbanização e industrialização da cidade, onde as transformações advindas por este processo no plano das relações sociais, fizeram-se sentir principalmente no âmbito da cultura, especificamente no campo das artes e o modo pelo qual os moradores se organizavam para produção de sua área.
Antes, estes aglomerados populacionais ao longo do rio Tietê, realizavam atividades de festa de santos e folguedos por festeiros aos moldes rurais. Com o advento da industrialização e urbanização, o quadro sócio político local começou a popularizar-se, e com isso, surgiram nos bairros as associações e agrupamentos informais. Estes passaram a disputar uso e controle dos espaços e equipamentos necessários à produção. Os comerciantes do lugar criaram formas de dominar a criação intelectual do bairro, passando a patrocinar a produção artística com criação de companhias de teatro, associações culturais e sociais, como o Rotary e Lions Clube.
O autor nos mostra que a cultura passa por um processo dinâmico e por transformações (positivas) que ocorrem “mesmo quando intencionalmente visa congelar o tradicional para impedir sua deterioração”. Considera ainda, que as transformações culturais ocorrem em um lugar, mas dependem das relações determinadas por fatores significativos da sociedade.
É importante fazer um paralelo entre o popular e o erudito, cultura popular e religião popular. O termo popular identifica-se como um conhecimento de todos, enquanto que o conhecimento erudito passar a ser algo institucionalizado. Trazendo estas ponderações para o campo das “religiões populares”, Fernandes (1984) considera que a religião popular pode referir-se às questões étnicas de população, podendo se identificar com unidades regionais de população que se enquadram em um âmbito cultural, como no caso da religião judaica que, ao mesmo tempo que é um grupo étnico, é também uma religião.
Nos festejos do Rosário é possível identificar a presença de grupos que tomam parte na festa frente aos afazeres religiosos, podendo ser classificados como sagrados às atividades, como as novenas, as missas, adoração ao “Santíssimo Sacramento”, batizado, casamentos e atividades tidas como profanas, dentre elas as noitadas de arraial, com venda de produtos para arrecadação de dinheiro, bingos, shows de bandas e grupos de dança no palco do arraial.
Émille Durkheim (1996) ao teorizar sobre crença e rito, classificou-as como categorias fundamentais dos fenômenos religiosos. As crenças seriam um sistema de representações que exprimem as coisas classificadas como sagradas e profanas. A relação do sagrado e do profano constitui-se numa relação heterogênea, onde “as coisas sagradas são aquelas que as proibições protegem e isolam (…) as coisas profanas são as que se aplicam a essas proibições”.
Para ele, a crença é a fé que o indivíduo deposita nas “coisas divinas”, no místico, nas lendas, no religioso. Nesse sentido, na festa do Rosário a crença se manifesta na fé que os fiéis depositam na Santa para alcançar seus pedidos. Os “ritos são as regras de conduta que prescrevem como o homem deve comportar-se com as coisas sagradas, é a forma simbólica que os indivíduos usam para exercitar a fé”. No contexto da festa do Rosário, os ritos identificam-se através da devoção, das promessas, das novenas, procissão e outras formas ritualísticas exercidas pelos fiéis.
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3Trabalho orientado pelo Professor Doutor Sérgio Ivan Gil Braga da Universidade Federal do Amazonas/Pró Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação/Departamento de apoio a pesquisa/Programa Institucional de Iniciação Científica. Relatório Final PIB – H -003/2003.
4 Neste caso, refere-se a uma prelazia territorial, que é uma área religiosa governada por um Bispo diocesano, que contém Congregações subordinada a ele. Silva (1999, p. 204-205) nos descreve que a Prelazia de Itacoatiara foi criada pela bula de 13 de julho de 1963, firmada pelo Papa Paulo VI. Criada a Prelazia Nullius de Itacoatiara, com sede na Paróquia de Nossa Senhora do Rosário. Limita-se com a Arquidiocese de Manaus, Diocese de Roraima e as Prelazias de Parintins e Borba. Compõe-se jurisdicionalmente de Itacoatiara, os municípios de Itapeaçu (vale apena esclarecer que Itapeaçu nesta época, foi elevado à categoria de cidade, porém não permaneceu, tempo depois voltou a ser distrito de Urucurituba), Silves, Itapiranga, São Sebastião do Uatumã, Urucará e Urucurituba – abrangendo uma área aproximadamente de 92.000 km. Dom João de Souza Lima é nomeado administrador apostólico. Em 2003, o Catálogo Plano Pastoral 2002 – 2005 e Calendário 2003 da Prelazia de Itacoatiara, comenta que a instalação da Prelazia, ocorreu após o pedido do Papa Pio XII, por meio dos bispos brasileiros, que os padres estrangeiros pudessem ajudar o Amazonas no trabalho Missionário. A Sociedade Missionária de Scarboro, com sede no Canadá, ficou responsável pela Prelazia de Itacoatiara, criada em 1963. Os primeiros padres da Sociedade Missionária Scarboro que chegaram à Itacoatiara foram, Padre Francisco Paulo McHugh, Padre Douglas Mackinnon, Padre Jorge Edward Marskeel, Padre Vicente Daniel e padre Miguel O’Kane. 1º Bispo Padre Francisco Paulo McHugh (1967-1972); 2º Bispo Jorge Edward Marskeel (administrador apostólico 1975-1978 e Bispo de 1978-1998). 3º Bispo D. Carillo Gritti do Instituto da Consolata para as Missões Estrangeiras (nomeado em 05 de janeiro e posse 26 de março de 2000). A sua situação geográfica em 2003. Norte do Estado do Amazonas limita-se com Arquidiocese de Manaus (AM), Dioceses de Roraima (RR) e Parintins (AM) e a Prelazia de Borba (AM) e Óbidos (PA). População de 124.995 (~154.1995) hab. Municípios de Itacoatiara, Itapiranga, São Sebastião do Uatumã, Silves, Urucará e Urucurituba.
Continua na próxima edição…
*O autor é natural de Itacoatiara, vem trabalhando com a temática sobre patrimônio cultural a mais de duas décadas. É formado em Ciências Sociais (UFAM) e Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia (PGSCA/UFAM) especialista em Festas Populares e Religiosas da Amazônia. Formado em Direito (ULBRA/Manaus), MBA em Gestão, Licenciamento e Auditoria Ambiental (Anhanguera-Uniderp). É professor Universitário. Publicações em coautoria nos livros “Cultura popular, patrimônio imaterial e cidades” (2007) e “Culturas populares em meio urbano” (2012). Autor do livro “A Senhora, o Folclore e o Festival” (2022). É Assessor Jurídico e vem prestando assessoria ao patrimônio imaterial etno-história da Amazônia para empresas de licenciamento ambiental e arqueológico.
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