Manaus, 4 de julho de 2025

Adentrando pela Capitania do Rio Negro

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*Padre José Monteiro de Noronha
  1. Do rio Trombetas até a boca inferior do rio Nhamundá, na mesma margem setentrional do Amazonas, são seis léguas. E em distância de oito léguas por este rio acima está a Vila de Faro, na margem oriental, na qual termina a Capitania do Pará pela margem setentrional do rio Amazonas, servindo a margem ocidental do Nhamundá de limite e princípio da Capitania de São José do Rio Negro.
  2. Na boca deste rio se diz que fora Francisco de Orellana acometido por aquelas mulheres a que chamam Amazonas e que deram o nome ao rio, das quais se conserva uma constante tradição entre os índios, posto que confusa em algumas circunstâncias. Os mais deles afirmam que, depois de algumas transmigrações, internaram-se as Amazonas no rio das Trombetas declarado no parágrafo 61.
  3. Vicente Maria Coronelli, no seu Atlante Veneto, dá por fabulosa a semelhança das amazonas americanas com as asiáticas na circunstância de não admitirem varões na sua república e buscarem fora dela os estranhos em determinado tempo do ano para se fecundarem. E só tem por certo que num desembarque que fez Orellana nas ribeiras do rio Amazonas o acometeram os índios do país, vindo entre eles, justamente, as mulheres armadas em guerra. A favor delas está a opinião comum que teve origem e subsiste desde que Orellana navegou por este grande rio, como se pode ver largamente na Demonstração CríticoApologética do Teatro Crítico universal do doutíssimo Feijó, escrita pelo mestre fr. Martinho Sarmento e na Ilustração Apologética do mesmo Feijó ao primeiro e segundo tomo do seu Teatro Crítico, discurso dezesseis.
  4. Não abono de infalível a verdade da história e tradição dele. Persuado-me, contudo, que não se pode negar sem temeridade um fato histórico, atestado por Francisco de Orellana e por todos os soldados da sua comitiva e armada, justificado solenemente na Audiência Real de Quito e na cidade de Pasto, conservado na memória dos índios por participação dos seus maiores nos domínios de Portugal, Espanha e França, sendo bem inverossímil que, não tendo eles notícias das amazonas asiáticas, conspirassem para uma fábula revestida das mesmas circunstâncias. E um fato, enfim, que não encontra dificuldade maior que prudentemente o dissuada, pois nenhuma há que se oponha invencivelmente à existência da dita república: ou presente e atual ainda que não se saiba dela por não se ter penetrado o interior de todos os sertões; ou passada e já agora extinta porque, vencida a república por outra nação de índios, perdesse o seu antigo costume debaixo de um domínio estranho ou porque, reduzida a menor número de indivíduos por causa de guerras e largas peregrinações, admitiu voluntariamente homens na sua sociedade, como discorre o Sr. de Condamine no Extratodo diário da sua viagem, página 58.
  5. Nos lagos do rio Nhamundá se acham e pescam os peixes-bois chamados de azeite, os quais só diferem dos ordinários em terem maior altura e tanto toucinho e gordura que quase não lhes percebe carne alguma. Há peixes-bois destes que rendem vinte e mais almudes de azeite.
  6. Da boca inferior do rio Nhamundá deve-se procurar outra vez a margem austral do rio Amazonas para fugir do caldeirão que fica junto à boa superior. E continuar-se-á a viagem até o sítio chamado Maracauaçu-tapera, que dista mais seis léguas e serve de limite às duas capitanias ao sul do rio Amazonas. De Maracauaçu-tapera seguir-se-á viagem pela mesma costa do sul até o primeiro furo do rio Tupinambaranas, superior quatro léguas.
  7. Este rio tomou o nome da nação Tupinambá, dos quais houve uma aldeia no lago chamado Uaicurapá, que fica à parte oriental do rio, dez léguas acima da boca, de cujas relíquias principiou a Vila Boim, para onde passaram. Chamam vulgarmente à barra do rio Tupinambaranas boca inferior do rio Madeira, porque deste, em distância de doze léguas da sua barra, vem um furo chamado Urariá, que sai ao Tupinambaranas. Neste furo desembocam os rios Abacaxis, Canumã e Maué, o qual é habitado de muito gentio cujas nações são: Sapupé, Comani, Aitouariá, Acaraiuará, Braurá, Urupá, Muturucu e Curitiá. É o Maué abundante de cravo e excelente guaraná.
  8. Uma légua mais acima do rio Tupinambaranas fica fronteira a boca superior do rio Nhamundá, na margem setentrional do rio Amazonas; e vencidas mais quatro léguas, o furo superior do rio Tupinambaranas. Deste, ou pouco mais acima, se atravessará o rio Amazonas procurando a parte do norte até a boca inferior do canal Cararaucu, distante cinco léguas. Muitos fazem a travessia depois de estarem bem defronte desta boca, da qual até a superior, por onde se sai outra vez ao rio Amazonas, são seis léguas.
  9. Da saída superior do Cararaucu costeia-se ao norte até o rio Uatumã por espaço de quatro léguas. Neste rio houve uma aldeia de índios missionados pelos religiosos mercedários, os quais passaram para a Vila de Silves. Presentemente ainda é habitado por índios das nações Arauakí, Terecumã, Sedeuy, Paraqui e outras e nele tem-se achado e colhido muito pau cravo.
  10. Navegando-se mais oito léguas chega-se ao primeiro furo do lago ou rio Saracá, e querendo-se ir à Vila de Silves entrar-se-á por este furo e, tendo-se piloto experimentado nos canais que formam as muitas ilhas, chegar-se-á à vila depois de navegar nove léguas. O lago de Saracá é de grande extensão e se divide em dois, reciprocamente comunicantes, e a vila está fundada numa das suas ilhas. Num desses lagos desemboca o rio Anibá, em cuja foz e margem ocidental esteve situada a aldeia chamada Anibá, que se extinguiu por passarem os seus moradores para a Vila de Silves.
  11. Defronte do primeiro furo de Saracá principiaram as praias onde com mais abundância costumam as tartarugas depor os seus ovos. Não pretendo escrever a história particular das tartarugas e suas espécies, nem contradizer as notícias que delas dão alguns autores, porque em outras partes poderão ter notável diferença. E só passo a dizer que as tartarugas de concha preciosa acham-se e pescam-se na costa seguida da cidade do Pará para baixo e que as do rio Amazonas e outras de água doce são das que se comem. Estas apenas pesam vivas três arrobas e depõem os ovos, ordinariamente uma só vez, nos meses de outubro e novembro em que as praias estão enxutas. Cada uma depões cento e quarenta ovos mais ou menos e os esconde na areia, não ligeiramente mas com profundidade de dois palmos, de modo que não é o calor do sol e sim o da areia que os fomenta e faz sair os filhotes, os quais logo que chegam à água mergulham sem embaraço nas ondas.
  12. Do primeiro até o segundo furo do Saracá, pelo Amazonas acima, são quatro léguas. Do segundo ao terceiro, duas léguas. Do terceiro ao quarto, outras duas léguas. Vencidas mais duas léguas chega-se à Vila de Serpa, situada na paragem chamada das Pedras Pintadas e, no idioma geral dos índios, Itacoatiara. Esta vila foi a primeira vez fundada no rio Mataurá, que faz barra na margem oriental do rio Madeira de que se tratará mais adiante. De Mataurá mudou-se para o rio Canumã. Deste para o rio Abacaxis. Deste para a margem oriental do rio Madeira, pouco abaixo do furo de que se faz menção no parágrafo 68, e desta para aquela em que presentemente está. Os seus primeiros povoadores foram os índios da nação Iruri, aos quais se agregaram os da nação Abacaxis e de outras muitas.
  13. Da Vila de Serpa segue-se, em distância de três léguas, o quinto furo do Saracá, chamado Aibu. E na distância de mais meia légua, o sexto furo, a que chamam Arauató, pelo qual deságua o rio Urubu, que desce dos montes que formam a cadeia ou cordilheira chamada da Guiana. Foi antigamente habitado por muito gentio e presentemente só se conserva nele o da nação Arauakí. Nele esteve em outro tempo, fundada uma grande aldeia administrada pelos religiosos mercedários, que se extinguiu fugindo os índios seus habitantes depois de tirarem a vida ao seu missionário, o padre João das Neves, animados de um espírito de rebelião e a impulsos da sua natural inconstância na firmeza da sua fidelidade. Das fontes deste rio há tradição constante de que, vencidas algumas serras da cordilheira, descobre-se um rio cujas águas correm para a costa do Suriname.
  14. De Arauató até chegar defronte à barra do rio da Madeira são cinco léguas. Este grande rio desce do sul ao norte e deságua na margem austral do Amazonas em três graus e vinte e cinco minutos. O Sr. de Condamine diz, na página 73 do seu Diário, que o rio Madeira corre paralelo ao rio Bani ou Beni, que supõe ser o que na sua barra se chama Purus e de que se tratará nos parágrafos 89 e 90; no que padeceu de grande equivocação porque o rio Beni, junto com o Inim, formam o verdadeiro rio da Madeira, que conflui com o Mamoré entre a quinta cachoeira, chamada da Barra, na altura de quase dez graus, depois do último haver recebido em si as águas do Guaporé na altura de quase onze graus. Na margem oriental do rio Madeira desaguam os rios Aripuanã, Mataurá, dos Marmelos, Araraparaná, Unicoré, Uriponi, Paraxião, Giparaná e Jamari, acima do qual principiam as catadupas ou cachoeiras. Há no rio da Madeira muito cacau e gentio, cujas nações mais conhecidas e distintas são: Arara, Marupá, Pama, Torá, Matanawí, Urupá, Tukumãfet, Mami, Karipúna, Iuqui e Yauaretinga.
  15. Governando o Estado do Pará, o senhor Cristóvão da Costa Freire fez uma expedição de guerra contra os índios da nação Torá por várias irrupções que fizeram às aldeias de Canumã e Abacaxis e hostilidades que praticaram. Foi comandante da expedição o capitão-mor da praça João de Barros Guerra que, recolhendo-se obrigado por uma moléstia, teve o infortúnio de naufragar e morrer por ocasião de um grande pau que, da margem do rio, caiu sobre a embarcação em que vinha. Na sua ausência continuaram as diligências da guerra dirigidas pelo capitão de infantaria Diogo Pinto da Gaia e pelo sargento-mor das ordenanças Francisco Fernandes. Reduzidos os índios à última consternação, pediram paz, que lhes foi concedida com a condição de se descerem e agregarem à aldeia de Abacaxis, hoje Vila de Serpa, ficando porém muitos que, por mais remotos, não foram invadidos ou escaparam do furor da guerra.
  16. As margens do rio Madeira são habitadas pelos índios da nação Mura, que são de corso, não admitem paz nem fala e costumam acometer, matar e roubar os navegantes. Não passam, contudo, do rio Jamari para cima.
  17. Na margem oriental do rio Madeira e distante da sua barra vinte e quatro léguas, está fundada a Vila de Borba. A sua primeira situação foi no rio Jamari, de onde se mudou para Camuam, na barra do Giparaná, e depois para Pirocam ou Paraxião e, ultimamente, para a paragem chamada Trocano onde presentemente está, sendo causa das suas mudanças a perseguição que faziam os Muras aos seus moradores.
  18. Distante do rio Madeira uma légua faz barra na margem austral do Amazonas o rio Autaz, que se comunica com o Madeira e é habitado pelo gentio Mura. Na distância de três léguas seguidas, defronte do mesmo rio da Madeira pela margem setentrional do Amazonas, por onde se costuma continuar a viagem, foi o primeiro furo do rio Matarí. Entrando-se por ele sai-se ao Amazonas pela boca superior depois de se navegar cinco léguas entre ilhas e por canais largos. Veja-se o parágrafo 86.
  19. Nas ilhas que estão na barra do Matarí, por serem grandes e de terra alta, fundaram em outro tempo, os religiosos mercedários, algumas aldeias de índios que tiveram pouca duração. Neste rio habitam os índios das nações Sapupé, Arauakí e Piriquita.
  20. Da saída superior do Matarí segue-se em distância de seis léguas e na mesma margem setentrional a Ponta de Pedras, a que chama “Puraquequara”, que vale o mesmo que “lugar ou buraco das tremelgas”, por haver muitas neste sítio.

 

*Trechos do livro “Roteiro da viagem da Cidade do Pará até as últimas colônias do sertão da Província (1768)”, editado pela USP, São Paulo, 2006. Introdução e notas do historiador Antônio Porro.
Natural de Belém/PA, José Monteiro de Noronha (1723-1794) foi casado com Joana Maria da Veiga Tenório e dedicou-se ao exercício da advocacia. Foi vereador municipal e ocupou diversos cargos na magistratura e no Poder Judiciário do Grão-Pará. Ainda jovem, em 1754 enviuvou, fato que o levaria a abraçar a vida religiosa. O bispo dom frei Miguel de Bulhões (1706-1778), conhecedor de seu talento e preparo, o nomeou presbítero em Belém e, após criar a Vigararia Geral do Rio Negro (13 de março de 1755), confiou-lhe a nova e imensa jurisdição eclesiástica, na qual foi empossado em maio de 1758. Em 1773 ainda estava em Barcelos como vigário geral, mas nos anos seguintes prosseguiu na carreira eclesiástica na capital paraense, como arcipreste da catedral, vigário geral e vigário capitular. Em 1790, com o retorno a Portugal do bispo dom frei Caetano Brandão (1740-1805), foi nomeado governador do bispado do Pará. Do Roteiro de Noronha existem várias cópias manuscritas na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e na Biblioteca Nacional de Lisboa.
Em 01/01/1759, na qualidade de vigário geral da Capitania de São José do Rio Negro, instalou a Paróquia de Nossa Senhora do Rosário da vila de Serpa, atual Itacoatiara.

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