“Regenerar não é plantar árvores, compensar carbono ou trocar plástico virgem por biodegradável. Amazônia não é laboratório de experimentos ambientais nem de soluções genéricas. Regenerar, no caso da Amazônia, significa reconhecer os passivos históricos, sociais e ambientais das cadeias produtivas extrativas. Exige investimento em educação, conectividade, saúde e soberania para os povos da floresta. Exige transparência fiscal, trabalhista e institucional”
ANatura decidiu anunciar ao mundo que não quer mais ser uma empresa sustentável. Em sua recém-lançada Visão 2050, declara que a sustentabilidade já não basta — que sustentar o mundo como ele é hoje “não é uma boa ideia”. O novo caminho seria a regeneração. Parece vanguarda, mas a retórica por trás desse gesto simbólico esconde um recuo institucional perigoso.
Sob a promessa de “recuperar os recursos naturais utilizados na produção de cosméticos”, a Natura adota um conceito ainda em construção, importado da agricultura regenerativa, sem lastro técnico, regulatório ou ético consolidado. O resultado? Um salto de fé que coloca em risco conquistas civilizatórias – como o próprio conceito de desenvolvimento sustentável -, além de camuflar um passivo real que precisa ser enfrentado com transparência.
A derrapagem global disfarçada de inovação
Nos anos 1990, a Agenda 21 já tratava da reposição dos estoques naturais e do atendimento das demandas sociais como pilares inseparáveis. Samuel Benchimol, referência maior do pensamento amazônico, reforçava que nenhuma atividade na região deveria existir sem cumprir quatro critérios essenciais: ser socialmente justa, politicamente correta, economicamente viável e ambientalmente sustentável.
A Natura agora abandona essa moldura reconhecida mundialmente para assumir um novo paradigma de significado ainda difuso. E faz isso sem prestar contas do passado e sem garantir os mecanismos de controle, governança e justiça que a Amazônia exige. A substituição da sustentabilidade pela regeneração, portanto, não é apenas uma mudança retórica. É uma derrapagem institucional em escala global. O que se desmancha aqui não é só um conceito, mas a base sobre a qual se construiu o debate climático nas últimas três décadas.
De costas e de cócoras para a Amazônia
É do solo da Amazônia que a Natura extrai parte de sua força simbólica e econômica. Cadeias produtivas como a da linha Ekos, iniciativas de SAF com comunidades extrativistas, uso de bioativos amazônicos e parcerias com centros de pesquisa conferem legitimidade a esse modelo — mas também obrigações.
A Lei de Acesso à Biodiversidade (nº 13.123/2015) determina que qualquer exploração de patrimônio genético ou conhecimento tradicional deve compartilhar benefícios com as populações locais. Não é uma opção; é dever legal e ético. Quais são os percentuais partilhados pela Natura? Onde estão os contratos com os povos da floresta? Quais os valores repassados às comunidades tradicionais nos últimos cinco anos? A regeneração começa pela transparência.
Logística reversa frágil e distribuição precarizada
A Natura também promete zerar suas emissões líquidas até 2050, ampliar o uso de embalagens recicláveis e priorizar refis. Mas enquanto isso, sua logística reversa permanece frágil, mal auditada e com baixa rastreabilidade. E o principal: sua rede de distribuição baseada em consultoras autônomas continua à margem do sistema de proteção social brasileiro.
Essas mulheres – pilares da marca – permanecem sem direitos previdenciários, sem benefícios trabalhistas e sem acesso a qualquer rede de seguridade real. A promessa de “renda digna” até 2050 apenas adia a resolução de um problema estrutural. A regeneração, neste caso, parece uma forma elegante de empurrar responsabilidades para o futuro.
Greenwashing regenerativo?
A indefinição técnica sobre o que é, de fato, uma prática regenerativa — reconhecida até por líderes do setor — permite que se pinte de verde o que ainda é cinza. O risco do greenwashing regenerativo é real. A certificação VM0042, da Verra, embora bem-intencionada, permanece limitada ao mercado de carbono e não resolve a complexidade socioambiental da Amazônia real.
Enquanto isso, a floresta permanece um ativo simbólico na vitrine das marcas, sem que a vida de quem habita e protege essa floresta seja transformada de forma estrutural. É a repetição do velho modelo colonial, agora embalado em frascos refiláveis.
Regenerar exige enfrentar o passivo
Regenerar não é plantar árvores, compensar carbono ou trocar plástico virgem por biodegradável. Regenerar, no caso da Amazônia, significa reconhecer os passivos históricos, sociais e ambientais das cadeias produtivas extrativas. Exige investimento em educação, conectividade, saúde e soberania para os povos da floresta. Exige transparência fiscal, trabalhista e institucional.
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