Manaus, 7 de setembro de 2024

As Náiades e mãe d’água (IV)

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Três poetas em prosa e um bissexto

Nunes Pereira, como intérprete da própria vida e por sua visão de mundo foi um grande lírico. Nele vedos poetas e dos cientistas sociais da Amazônia. O mais curioso está naqueles cientistas que, embora guardem em seu trabalho preferência pelas questões de suas indagações e respostas, revelam atitudes líricas na realização do poema em prosa.

Os não considerados poetas, aqueles escritores que jamais deixaram escapar em seus hábitos intelectuais qualquer forma de manifestação lírica, talvez justificassem com autenticidade vertente original dos ensaios reunidos neste livro, porque houve momentos em que esses autores dedicados ao juízo da prosa, deixaram-se expressar com emoção estética, elemento essencial à poesia, visto com provar-se, como vimos que existe a poesia propriamente dita em verso, só em verso, e o poema em prosa.

Outro é o caso dos chamados poetas bissexto na definição de Manuel Bandeira, aqueles não visitados pelas musas com frequência, ao contrário dos poetas contumazes, dedicados toda a vida aos afazeres da poesia. E o caso do educador, político e jurista José Lindoso (1920-1993), presente neste capítulo.

Famosa é a postura do historiador Arthur Reis (1908 1993) que se dizia insensível à poesia. Sua obra, dedicada cem por cento a Amazônia, é toda lavrada em boa prosa, ainda quando manifesta intensão polêmica, tal como se vê em seu livro mais conhecido A Amazônia e a cobiça internacional. Em todos os seus livros o estilo é sempre lavrado em prosa legítima, com a intenção científica de interpretação dos fatos da história.

Genesino Braga

É diferente do jeito de ser de Genesino Braga (1906 1988), que é bem um exemplo de um poeta prosador. Um dia ele me falou que ao escrever ele necessitava de condições especiais. Precisava de solidão e silêncio. Por isso escolhia para escrever as altas horas da noite. Realizava o seu trabalho a mão. Não usava nem a máquina de escrever. O computador que hoje constitui verdadeira maravilha na produção de texto, em seu tempo ainda não era corrente em Manaus. Ele usava o lápis e a borracha, como o entalhador manobra a goiva e o estilete na modelação de suas figuras. Agia com rigor. Escrevia e reescrevia várias vezes uma palavra ou uma frase, à procura do juízo exato que expressasse a sua visão das coisas, ou a emoção mais condizente com os acontecimentos da história e os eventos do dia a dia de sua vida.

Nessa ocasião o escritor processa o objeto de seu trabalho como um autêntico artesão, antes de convertê-lo em obra de arte. Nesse sentido, todo elemento artístico experimenta, num determinando momento, um tempo de ordem artesanal, em que manipula os meios de linguagem. O escritor trabalha com a palavra escrita, na função dos sons das letras e das sílabas, os fonemas, a relação das palavras na frase, além do sentido plástico da mancha gráfica, com que conta as suas histórias, emite as suas ideias e fixa as suas emoções.

Pelo visto, assim agia Genesino Braga na produção do seu texto.

O gênero preferido de sua expressão era a crônica, forma de texto jornalístico em determinados momentos convertido em gênero literário, ou para fixar a emoção como num poema, caso do modelo aqui referido, ou para divulgar ideias como se fosse um pequeno ensaio. Foi o mol de que ele elegeu para se comunicar com os seus leitores. Era da geração daqueles escritores formados no batente do jornal, visto, desde muito jovem, dedicar-se às atividades jornalísticas em Manaus.

Em um dos seus livros23 encontra-se a crônica “Si nhá-moça Ana Cristina”. Nos últimos parágrafos do texto encontra-se um autêntico exemplar de poema em prosa. Cuida ele de acidente acontecido após uma solenidade religiosa celebrada na Catedral de Manaus, no encerramento dos festejos de Maria. Relata o fato na seguinte sequência:

Sinhá-moça Ana Cristina, finda a missa, desceu do coro e deixou a igreja pelo portão à direita.

Nesse momento o cronista registra o acidente. É um momento dramático envolto por um episódio trágico. Fixa a cena de um jovem cavalheiro que assiste a morte de sua namorada num acidente de trânsito. A jovem é pisoteada pelos cavalos que conduzem o coche e esmagada sob as rodas de uma caleche. Os automóveis ainda eram objetos de luxo na Manaus desse tempo. Em verdade, o habitual era as pessoas andarem a pé, nos largos passeios das ruas e avenidas, em convívio hoje recuperado num raro exercício de imaginação. O texto revela breve panorama da vida urbana e dos sentimentos experimentados na Manaus da belle-époque.

O episódio se deu em frente à loja Kahn Polack, onde é hoje o Palace Hotel, na Avenida 7 de Setembro, por de trás da Catedral, e próxima a Aubon Marché, estabeleci mento comercial que ainda operava até os anos 50 do século passado. O cronista-poeta confere aos ares daquela manhã a atmosfera primaveril do Bois de Boulogne, um parque tradicional parisiense em plena moda no ideário manauara da época. A calecha ou caleche era um coche de quatro rodas, puxado por dois ou quatro cavalos. Havia as carruagens de propriedade de famílias abastadas e as de aluguel que estacionavam ao lado da Catedral. Genesino Braga não define a origem da caleche que vitimou a moça, e fala de Ana Cristina:

(…) vestia bordado branco, afogado da gola até quase o tornozelo, de mangas longas e frouxas cobrindo os braços.

A figura desenhada pelo cronista-poeta guarda a imagem das donzelas manauaras de então, com indumentária recatada muito característica na época, nem tanto que não pudesse revelar pormenores levemente sensuais como registra o texto:

Trazia os quadris em anquinhas certas, bem contornadas, (..).

Abrigava-se sob um enorme chapéu branco, de tule branco, de rendas brancas (..).

Esses adereços eram encontrados e apreciados nas montras das lojas elegantes da Manaus de então.

O cronista-poeta oferece os traços essenciais ao perfil de sua heroína até o momento do desastre. O cavalheiro estava ali à espera de Ana Cristina. E jamais pensava que, naquele momento, iria enviuvar sem ao menos noivar. Fluiu o tempo e aquele cavalheiro jamais se uniu a outra parceira. Morreu nonagenário na cidade dos novos tempos, sem ninguém que o assistisse, que também ele não precisava de ninguém que não fosse a sua bela e inesquecível Ana Cristina.

Não se conhece nenhum poema em verso de Genesino Braga, autor dedicado à prosa, mas cheia de poesia como está na história de Ana Cristina, a poesia da vida urbana de Manaus, uma cidade plantada no meio da floresta, às margens do grande rio Negro e cortada por inúmeros pequenos rios. O episódio se dava alheio à realidade geográfica da cidade. A vida como que se desenrolava num mundo de ficção e fantasia, como se fosse o desenho num vaso de porcelana bem ao gosto da belle-époque manauara.

O poeta-cronista Genesino Braga era fascinado pela vida urbana, ao contrário dos escritores que se voltaram para a realidade da floresta e dos rios da região e nela fundamentaram as suas obras.

Anísio Jobim

Anísio Jobim (1877-1971) é bem um exemplo desses escritores. Embora não tenha escrito versos, pelo menos que se tenha notícia, de repente foi tocado pela linguagem poética. Prosador por 24 horas, ensaísta de quatro costados, especialista em geografia, sociologia e história da Amazônia, sua obra distribui-se por mais de 15 livros, sempre voltados ao estudo da vida social e política das comunidades amazonenses onde exerceu a magistratura, em grande parte de seus proveitosos 94 anos de vida. Dedicou-se, ainda, à historiografia conforme se vê em seus ensaios sobre a história do Amazonas e no levantamento que fez da intelectualidade no extremo norte do país, excelente contribuição à história da literatura na região. Nem por isso livrou-se da emoção experimentada ao entrar em contato com a natureza amazônica, revelada no texto intitulado “O rio Madeira”.

O Madeira tocou-o com o movimento das águas e da paisagem animada como um corpo humano. A referência a aspectos da geografia é feita apenas como suporte às imagens de imitação daquilo que vê o poeta. Diz ele que o rio Madeira

(…) estende e espicha o seu corpo colossal por entre muralhas graníticas, muralhas toscas e enegrecidas de abrolhos.

As águas se multiplicam

Com o seu trançado de lagos, o seu rosário de paranás, o seu feixe de igarapés (…).

Em boa prosa ele teria sem dúvida, evitado no caso, as palavras “trançado”, “rosário” e “feixe”, mais condizentes com o vocabulário metafórico de um poema. Entusiasmado com o movimento das águas nas enchentes, o poeta vê

O espantoso de um oceano balizado aparentemente pela fileira azulada da selva.

E encerra o texto com as palavras reveladoras da sua emoção:

(…) na paisagem vibrante das suas florestas, na delicadeza das suas flores, na poesia que se evola de seus jardins silvestres.

Anísio Jobim era nordestino de Alagoas e chegou ao Amazonas no vigor dos 33 anos, já formado bacharel em Direto pela famosa Faculdade do Recife. Ao exercer as funções de magistrado em localidades do interior amazônico, foi tomado de entusiasmo pelo rio Madeira, um rio, enfim celebrado tradicionalmente por poetas de várias gerações e estilos. Esse texto de Anísio Jobim possui cadência épica e metáforas que transcendem o universo da prosa, como quando assume esse acidente geográfico em termos de um personagem dramático.

Para melhor se expressar usou palavras sem dúvida consagradas pelos moradores do Madeira, “pedranços”, para designar acúmulo de pedras na rota dos caminhos do rio, e “varzeados”, para indicar as paisagens de várzeas estendidas em suas margens. São palavras ainda não recolhidas, nem uma nem outra, nos dicionários de Aurélio, ou de Houaiss.

 

João Mendonça de Souza

Outro exemplo é João Mendonça de Souza (1915 2003), um consagrado estudioso da poesia, reconhecido por vários trabalhos sobre teoria literária e gramática poé tica. Exercia esses estudos com prazer e amor. Produzia letras de música popular, de que chegou a lançar algumas canções em discos.

Nas suas especulações eruditas nos domínios da arte literária, ele não se isolou na torre de marfim dos que se acreditam privilegiados.

Um dia ele escreveu um livro intitulado Visões do meu Amazonas caboclo.

É desse livro um texto em que fala do rio Juruá,

um rio que chora e se desespera num lamento de mitologia,

com as transformações provocadas ao longo da história pelo movimento das águas ou pela ação dos homens. Diz ele que

Tantas foram as misérias que os meus olhos viram, no rio que dizem milionário da borracha, que o meu coração sofreu amarguradamente as mentiras que eu tinha em mente da nossa tão exaltada brasilidade.

O cronista-poeta lamenta a prática do extrativismo que vai debilitando a paisagem do rio, com o desapareci mento da borracha, da castanha e das madeiras. Fala da brutalização, da animalização do homem provocada por sua ingratidão com a terra. Lamenta o abandono do rio Juruá e a sua grande solidão.

José Lindoso

Como educador José Lindoso reservou à poesia um lugar especial. Mas o grande público não sabia de sua pai xão pela poesia. Por isso foi uma verdadeira surpresa o fato de ele ter pronunciado um discurso, na transmissão do cargo de Governador do Estado no Palácio Negro, em legítimos poemas escritos em versos livres. Seu procedi mento gerou um fato único, visto não se ter notícia de ne nhum governante amazonense manifestando-se, em sua posse, com um discurso em forma de poema, nem o poeta contumaz Álvaro Maia, tantas vezes empossado nessas funções durante a sua vida pública.

José Lindoso, homem do seu tempo e de sua terra, in fundiu em seus versos o vigor e a beleza dos motivos da Amazônia. O poeta nasceu sob as bênçãos do rio Madeira e chegou a Manaus aos 12 anos de idade, viajando nas águas amazônicas onde o rio é tudo:24

O Rio
No rio a gente pesca
No rio a gente se banha de cuia
No rio a gente mergulha
Do rio se carrega água para beber
O frio é caminho de ir
e de voltar também…
O rio é mistério e fonte de fantasia
afoga na maresia.
O rio é tudo pra gente viver.
Ao chegar José Lindoso viu
O Palácio
Palácio do seringueiro
amassado
sofrido
espoliado
seringueiro que teve sede
de riqueza.
E foi simplesmente logrado.

Sempre espantado com a realidade transformada em poesia pela força da emoção e do sonho, o poeta define a sua nova casa:

Este palácio
cofre vazio das esperanças que se acabaram
Mistério de vontades perdidas
de governantes do passado
Mistura de amor, de sonhos
com cheiro de intrigas
Cofre vazio de esperanças que se acabaram
Tem um pouco de mistério
notícias de assombração.

Seu primeiro ato foi determinar a restauração do Palácio e a ele nunca mais voltou a despachar. Seu gabinete de despachos instalou-o no último andar da Secretaria de Fazenda. Mas a emoção poética, enfim, foi a força que o ajudou a levar o barco nas águas nem sempre espelhadas pela paz e a serenidade do Rio Negro, nos seus dias mais serenos. Os motivos da Amazônia na poesia ajudaram o governador a criar o Hino do Amazonas e levar, aos seus irmãos do interior dos rios e da floresta, os benefícios do desenvolvimento de Manaus.

As características da paisagem, da mitologia e os hábitos e estilos de vida das populações amazônicas incutiram, nos escritores da região, atitudes e comportamentos messiânicos, de profetas e pregadores carismáticos, ao apreciar questões amazônicas.

Isso que se observa desde a manifestação do intérprete primitivo, ainda carente dos conhecimentos da matemática, no ponto em que o seu exercício contribui na dinâmica do conhecimento e na lucidez do raciocínio. Eram esses povos, no entanto, evoluídos nas abstrações aprimoradas pela filosofia. Psicólogos da missão exploratória do Professor Biocca, já referida neste livro, aplicaram testes de avaliação do comportamento dos remanescentes dessas populações primitivas amazônicas e concluíram por essa realidade. Realidade também interpretada pelos escritores acadêmicos amazônidas, face ao universo hinterlandino que os envolve. A produção dos escritores amazônicos reflete uma dimensão mais concebida pelo impacto gerador do espanto em seu espírito, do que o fulgor do raciocínio.

Lembra o entusiasmo de um Yanomami ao falar sobre a existência dos cursos de água encachoeirados no meio da floresta. Ali começam os rios, fonte permanente de vida. Esse modo de ser não constituía a interpretação de um fenômeno geográfico, mas a evidência do fato resultante de uma condição espiritual subjetiva, poética, isso que vemos nos textos lançados pelos etnógrafos sobre a poesia primitiva na Amazônia e o poema em prosa dos autores contemporâneos referidos neste livro.

23 Chão e graça de Manaus. Manaus: Edições Fundação Cultural do Amazonas, 1975.

24 Poemas extraídos do livro: José Lindoso, semeador de esperança. Manaus: Edições Governo do Amazonas, 2000.

(Quarto Capítulo do livro: As Náiades e a mãe-d’água, do autor).

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