Manaus, 21 de novembro de 2024

As Pedras do Rosário

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Enfim, Cidade de Itacoatiara!

Em 1868 o município de Serpa atingiu 4.627 habitantes, equivalentes ao dobro da população de dois anos antes. O volume de recursos arrecadados pela Coletoria local, no exercício anterior (22,5 contos de réis), representava mais de dez por cento da receita líquida apurada em toda a Província. A supremacia desses números destoava enormemente do status educacional: os alunos da escola primária para meninos, naquele ano, eram somente 15. Só depois de a população muito reclamar, o governo da Província recriaria, em 23 de maio de 1869, a escola de primeiras letras do sexo feminino.

O forte da economia amazonense, à época, decorria da produção e comércio da borracha, e este era feito através de inúmeras canoas de regatão conduzidas a remo por indígenas “recrutados” nas aldeias ou aliciados dos comerciantes bolivianos que desciam o rio Madeira. A maioria destes, centralizados em Humaitá com incursões permanentes em Serpa, era constituída de capitalistas portugueses, com representações em Belém e Manaus. Conflitos entre brasileiros, portugueses e bolivianos eram comuns. Havia problemas entre regatões e autoridades da Província do Amazonas ocasionados pelo não pagamento dos impostos.

Para prestar assistência e/ou proteger interesses de seus nacionais, os governos de Bolívia e Portugal decidiram instalar vice consulados em Serpa. O da Bolívia, inaugurado em 1867, desde lá esteve sob o comando do vice-cônsul dom Ignácio Arauz e o referido órgão foi encerrado provavelmente em 1890. Quanto ao Vice-Consulado português de Serpa, da mesma época, não nos foi possível identificar seu primeiro vice-cônsul, porém, é certo e incontestável que o segundo e último foi o cidadão português José Joaquim Affonso Antunes. Teria assumido em 1894, ficando no cargo até sua extinção em 1905 ou 1906. Casado com Catharina Brazão Antunes, também portuguesa, José Joaquim desincumbiu-se bem da missão; retornou à sua terra natal deixando em Itacoatiara família numerosa e honrada.

Em 1868, o engenheiro, desenhista e fotógrafo alemão Franz Lëuzinger (1835-1890) esteve visitando o Amazonas. Relator da expedição científica designada por dom Pedro II para planejar e executar obras viárias no Brasil, Lëuzinger fez o percurso de Belém a Manaus em embarcação da Companhia do Amazonas. Ao retornar, em 27 de maio, parou em Serpa, de onde a comitiva seguiu até o rio Madeira. Deixou relato confirmando ser Serpa um dos mais importantes portos da Província, à época, e ponto obrigatório de parada dos comerciantes que subiam ou desciam o Amazonas, ou que viessem mesmo de Mato Grosso, através do Madeira.

Dois anos antes, deu-se a chegada do imigrante norte-americano Jazon Williams Stone (c.1836-1913). Participou da Guerra de Secessão dos Estados Unidos, entre 1861 e 1865, porém, não aceitando a derrota da causa defendida pelos sulistas americanos, em 1866 deixou o País vindo parar em Serpa. Aqui montou a Fazenda Terra Preta, no bairro do Jauarí, onde aplicou o que lhe restava de economia em negócios de criação de gado e plantações de tabaco e frutíferas. Para operar seus negócios, Stone celebrou sociedade comercial com José Hermida, sob a razão social de Stone & Hermida, a qual possuía um barco a vapor que regateava pelo interior. A empresa tornou-se grande exportadora de tabaco servindo especialmente ao mercado europeu.

A 28 de agosto de 1869, o bispo dom Antônio de Macedo Costa visitou, pela segunda vez, a Vila de Serpa, sendo recebido pelo vigário Gaspar Porfírio Delgado. A bordo de uma lancha cedida pelo governo provincial, o Prelado paraense esticou sua visita às paróquias de Manaus e Silves. Embora tenha permanecido pouco tempo em Serpa, ainda lhe foi possível celebrar Missa na Matriz local onde distribuiu o sacramento da Crisma a quase trezentos fiéis. Voltou a Belém e de lá dirigiu-se a Roma onde, a 8 de setembro, participou da cerimônia de abertura do Concílio Vaticano I, que, no ano seguinte, proclamaria o dogma da infalibilidade papal.

Isso ocorreu há 152 anos (1870-2022)! O tema nos remete à teologia católica, segundo a qual o Papa, em comunhão com o Sagrado Magistério, quando delibera e define solenemente algo em matéria de fé ou moral, ex cathedra, está sempre correto. Nesses anos todos o assunto tem exigido da parte dos católicos não somente a disponibilidade para a polêmica e a luta, mas também uma atitude de prudente reflexão e estudo dos problemas colocados. Dentre os vários líderes da Igreja que se pronunciaram a respeito, destacamos os papas Paulo VI (1897-1978) em 1969; João Paulo II em 1993; Bento XVI (1927) em 2006; e o atual – Papa Francisco em 2014 e 2017.

Das pesquisas feitas sobre o tema, exsurge claramente que o Concílio Vaticano I definiu não só o dogma da infalibilidade, mas sobretudo o poder pleno e imediato do Papa sobre todos os bispos e toda a Igreja. O caminho a seguir nesta confusa situação não é por certo o de substituir o Papa e os bispos à frente da Igreja, em cujo supremo timão permanece sempre Jesus Cristo.

Na verdade, após muitos anos de reflexão histórica e teológica, chegou-se à conclusão que a autoridade do Papa não residia apenas no Pontífice, mas no Papa unido aos bispos e a todo o rebanho de fiéis. Portanto, o Papa não é infalível quando exerce o seu poder de governo: as leis disciplinares da Igreja, diversamente das leis divinas e naturais, podem de fato mudar.

A infalibilidade do Papa não significa de forma alguma que ele usufrua, em matéria de governança e de ensino, de um poder ilimitado e arbitrário. A tese da minoria anti-infalibilidade, derrotada pelo Papa Pio IX, em 1870, ressurgiu no Magistério do Vaticano II (1962-1965) sob a nova forma do princípio da colegialidade. Se o Vaticano I havia concebido o Papa como o condutor de uma sociedade perfeita, hierárquica e visível, o Vaticano II e, posteriormente, os textos pós-Concílio, redistribuíram o poder no sentido horizontal, atribuindo-o às Conferências Episcopais e às decisões sinodais.

Hoje, o poder da Igreja parece ter sido transferido para o Povo de Deus, que compreende as dioceses, as comunidades de base, as paróquias, os movimentos e associações de fiéis. A categoria do Povo de Deus, que é absolutamente central nos textos conciliares, havia sido calada. O Papa Francisco a revigorou. Houve um vigoroso relançamento dela no Pontificado de Francisco.

Voltando a Serpa… Em abril de 1870, o presidente da Câmara Municipal, vereador Elias Pinto de França (c.1821-c.1897), mandou abrir uma estrada em direção ao centro da mata, ao norte da vila, alinhada pela frente da Câmara. Seis meses depois, o primeiro estirão medindo cerca de 300 metros, ficou pronto sendo tomado por habitações; mais para o centro foram abertos roçados de mandioca e realizadas plantações. O plano inicial da presidência da Câmara previa uma estrada com 60 palmos (13 metros) de largura e duas milhas (3.200 metros) de extensão, que se estenderia até o Vale do Ventura (hoje lagoa da Poranga). É a atual Avenida Parque.

Ainda em 1870, foi iniciada a fixação dos primeiros postes de iluminação pública a gás carbônico. Até então a iluminação de Serpa era feita com manteiga de ovos de tartaruga. Os primeiros lampiões a gás, comprados em Manaus, substituindo às antigas lanternas a óleo de tartaruga, colocados sobre postes de madeira de 12 palmos cada um, foram instalados em frente à Câmara e ao longo da nova estrada e da rua Formosa (atual Saldanha Marinho).

Em meados de 1870, por proposição do vereador Manuel Henrique da Silva Dourado, a Câmara proibiu a salga do pirarucu “na época em que os peixes principiarão a ter filhos” e a captura de filhotes de tartaruga nos meses de agosto a dezembro. A prematura preocupação de Serpa em defesa das espécies fluviais, só uma década depois seria reconhecida pelas autoridades superiores: a Lei provincial de 1º de junho de 1882 finalmente proibia a captura de tartarugas recém nascidas em todo o território do Amazonas.

No centro de Serpa já faltava espaço para agasalhar a crescente população decorrente da mestiçagem, que aumentava, e do maior número de imigrantes que chegavam. A única praça do lugar, defronte à Matriz, continuava um terreirão dominado pelo capinzal. As poucas casas em adobe de barro e cobertas de telha, destoavam do casario pobre de antanho, em parte coberto de cavaco e em parte de palha. Na segunda e terceira ruas da frente levantavam-se, lentamente, dois ou três palacetes de alguns proprietários de seringais. De quando em quando um vapor fundeava-se ao largo da vila e dois ou três navios à vela amarravam-se em seu improvisado cais.

A oeste, desligados da vila, vários casebres formavam o novo e ainda desorganizado bairro da Colônia, para onde se ia e donde se vinha através de um caminho que atravessava ao meio a mata densa e fechada tendo, em suas laterais, de modo disperso, sítios cheios de árvores frutíferas e pequenas criações. Dito caminho ou Estrada da Colônia, no início da República, na Cidade de Itacoatiara, passaria a ser rua Álvaro França. A leste, graças à abertura de caminhos ligando o centro da vila ao lago do Jauari, nascia o bairro do mesmo nome. Tal ligação dava-se tanto pela rua da Orla quanto pela rua Nova do Jauarí – esta, mais tarde, passaria a ser rua Desembargador Meninéa.

Ao tempo, exercia a Vigararia-Geral do Amazonas o padre José Manoel dos Santos. Dedicado ao trabalho pastoral, mandou recuperar os templos católicos da capital e do interior. O vigário interino de Serpa, padre Gaspar Porfírio Delgado, velho e cansado, enfermou gravemente vindo a falecer em janeiro de 1873. Enquanto não vinha o substituto, os serviços paroquiais iam sendo ministrados, intermitentemente, pelo vigário colado de Silves, padre Daniel Pedro Marques de Oliveira. Somente a 7 de julho de 1873 seria designado o novo vigário, padre Manuel Ferreira Barreto (1819-1878), que atuaria até 1878 – quatro anos após a elevação de Serpa à Cidade. Foi o último vigário da Paróquia da Vila e viria a ser o primeiro da Paróquia de Itacoatiara.

Nos três anos anteriores à decretação da cidade, Serpa deu lugar a vários acontecimentos significativos. Pela terceira vez, desde novembro de 1870, o vereador-suplente Damaso de Souza Barriga dirigia a Câmara e, a seguir afastou-se para assumir vaga na Assembleia Legislativa da Província. Pelo decreto imperial nº 5.146, de 27 de novembro de 1871, é criado o Termo Judiciário de Serpa. Em 1873 é inaugurado o novo prédio da escola de primeiras letras do sexo masculino, onde foram matriculados 52 alunos.

A política, tanto em Manaus como em Serpa, era disputada entre liberais e conservadores; ambas as correntes eram concordes em manter a ordem monárquica e o regime servil. Significativa parcela da população de Serpa era analfabeta e, consequentemente, marginalizada do processo político e social. Como ocorria em todo o País, nas eleições municipais prevaleciam o suborno e a violência. A Igreja colaborava na manutenção desse estado de coisas, não tanto pela ação direta, mas principalmente pela omissão de seus membros.

Inobstante, a partir de 1874, os tempos se mostrariam auspiciosos, tanto para Serpa quanto para Itacoatiara. Em 1º de janeiro desse ano foi instalada a Alfândega de Serpa; e no dia 8 do mesmo mês, o abolicionista Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha (1840-1919) passou a ensinar gratuitamente na escola do sexo masculino. A luta pela elevação da cidade saía do âmbito local passando a constituir uma preocupação provincial. Conforme os ‘considerandos’ do projeto de 10 de abril de 1874, firmado pelo deputado Damaso Barriga e avalizado por outros seis parlamentares, “Convinha dar à Serpa maior importância política que a tem atualmente, visto o progresso que tem tido ali o comércio, a indústria, a edificação de prédios, etc”.

Cumpridos os trâmites legais, o projeto foi aprovado em 22 de abril. Três dias depois era sancionada a Lei, pelo presidente da Província, conforme anotação abaixo:

Lei nº 283, de 25 de abril de 1874.

Eleva à categoria de Cidade, com a denominação de Itacoatiara, a Vila de Serpa.

Domingos Monteiro Peixoto, bacharel formado em ciências jurídicas e sociais pela Faculdade de Direito do Recife, e Juiz de Direito, Oficial da Imperial Ordem da Rosa, Cavaleiro da de Cristo, e Presidente da Província do Amazonas.

Faço sabe a todos os seus habitantes que a Assembleia Legislativa Provincial decretou e eu sancionei a seguinte LEI:

Art. 1º. Fica elevada à categoria de Cidade, com a denominação de Itacoatiara, a Vila de Serpa.

Art. 2º. Revogam-se as disposições em contrário.

Mando, portanto, a todas as autoridades a quem o conhecimento e execução da referida lei pertencer que a cumpram e façam cumprir tão inteiramente como nela se contém.

O Secretário da Presidência a faça imprimir, publicar e correr.

Dada no Palácio da Presidência da Província do Amazonas, em Manaus, aos 25 dias do mês de abril de 1874, 53º da Independência e do Império. L. S. Domingos Monteiro Peixoto.

O 2º Oficial Antônio José Barreiros a fez.

Nesta Secretaria da Presidência do Amazonas foi a presente lei selada e publicada, aos 25 dias do mês de abril de 1874

O Secretário Teodoro Tadeu d’Assunção.

Em maio de 1874, aproveitando o ambiente de absoluta liberdade de imprensa gozada em toda a Província, é inaugurado o primeiro periódico do interior amazonense, “O Itacoatiara”, que desapareceria em abril do ano seguinte. Posteriormente, passaria a circular o jornal “A Voz do Madeira”, igualmente de curta direção. A 5 de junho de 1874 dá-se a solene instalação da Cidade de Itacoatiara.

Segundo Mário Ypiranga Monteiro,

“[…] Os foros de cidade iriam dar a Itacoatiara maior força política, maior expressão social e um relativo progresso. Continuava pertencendo, na qualidade de distrito, à Comarca da capital. […] em 1875, foi agitada na Assembleia Legislativa Provincial a questão da criação de uma Comarca, desta vez integrada pelos termos de Itacoatiara, Silves e Maués”.

E assim foi feito. O deputado Damaso Barriga e outros quatro proponentes, na sessão legislativa provincial de 21 de abril de 1876, apresentaram o projeto de criação da Comarca, o qual, após vários debates, foi convertido na Lei nº 341, de 26 de abril de 1876, quando presidente da Província o doutor Antônio dos Passos Miranda. O decreto imperial nº 6.253, de 12 de julho de 1876, baixado pela Princesa Isabel (1846-1921), declarou a Comarca de Itacoatiara de primeira entrância, cuja instalação ocorreu em 11 de setembro e nesse mesmo dia empossado em Itacoatiara seu primeiro juiz, Fellipe Honorato da Cunha Meninéa (1828-1919).

Desde a elevação da Vila à Cidade foram amiudadas as chegadas dos imigrantes judeus. Vinham somar com os portugueses que chegaram antes. Posteriormente, viriam sírios, libaneses, espanhóis, italianos, sul-americanos, etc. Tencionavam trabalhar, criar família, crescer, ser feliz e, ao mesmo tempo, contribuir de modo eficaz e permanente com o desenvolvimento social, político, econômico e cultural da jovem cidade. Com o passar do tempo, muitos descendentes dessas famílias se destacariam na vida profissional e pública do Município, do Amazonas e do Brasil.

* Capítulo Decimo Oitavo do livro As Pedras do Rosario do Autor.

Obs. Este artigo teve suprimidas suas notas. A quem interessar a leitura do texto original, completo, pode acessar o link a seguir. https://www.franciscogomesdasilva.com.br/obras-literarias/

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