Manaus, 16 de setembro de 2024

As Pedras do Rosário (VIII)

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Transladações

Paralelamente ao esvaziamento da missão de Mataurá e sua consequente transferência para o rio Canumã, em toda essa região crescia a movimentação de colonos capturando índios mansos e aldeados. As canoas que iam ao sertão em busca de produtos naturais exportáveis, voltavam trazendo escravos para Belém. Pouco valia o dispositivo do Regimento das Missões (Lei régia de 21 de dezembro de 1686) conferindo aos religiosos a exclusividade da administração dos nativos aldeados, tanto no que diz respeito ao governo espiritual quanto ao temporal e político.

Canumã desemboca no paraná do Urariá e, portanto, a nova missão ficava mais próxima do Madeira. Entre agosto de 1691 e julho de 1696, o padre Antônio da Fonseca (1663-1734) passou a geri-la, cumulativamente com a missão de Tupinambarana, e esta ficava a uns três ou quatro dias em viagem de canoa abaixo da nova sede jesuítica. Ao mesmo tempo, no interflúvio Madeira-Canumã-Abacaxis prosseguiam as investidas militares e comerciais visando à coleta de ‘drogas do sertão’ e ao apresamento de índios. Por mais que resistissem eles sempre saiam em desvantagem.

Em 1692, as tropas dos capitães-mores João de Moraes Lobo e Faustino Mendes chegam à região fazendo escravos e cometendo atrocidades. Em junho lá esteve o padre Antônio da Cunha, por ordem do missionário João Maria Gorzoni (1627-1711), que praticou os Abacaxis descendo vários deles para o Pará. Nos três anos seguintes, multiplicam-se queixas sobre a morte de índios decorrentes da irrupção da epidemia de ‘bexigas’ em todo o Estado, coincidentes com o registro de uma rápida retração dos Iruri como resultado do intenso contato com os brancos. Pouco tempo depois já não se falava mais desse grupo indígena como etnia.

Os índios Torá, oriundos do Maicy e do Baixo Jamary, tributários do Madeira, continuando a hostilizar aldeias, ameaçam Canumã. Aqui e ali, os sertanistas e as tropas de guerra encontram dificuldades impostas por eles. Um violento ataque desses nativos resulta no desmantelamento quase total da missão. Nem a capela de palha, construída com mão-de-obra indígena, escapou da sanha dos invasores. Ficou em tão má situação que só não veio abaixo porque ficou sustentada por escoras. Às pressas retiraram de lá a imagem de Nossa Senhora.

Em 1696, a maioria dos moradores de Canumã debilitada pela varíola e sem poder oferecer resistência às seguidas incursões dos colonos escravistas, optou por ser agregada à povoação de Abacaxis, à margem direita do rio de igual nome, a leste de Canumã, e distante 80 km em linha reta da foz do Madeira. Era a segunda transladação da missão que originou nossa cidade. No final de 1696, o padre Antônio da Fonseca, cansado e doente, deixou a região e retornou ao Pará.

Em maio daquele ano, de Belém, o Padre Superior José Ferreira mandou nomear diretor de Abacaxis ao padre João da Silva, o qual, acompanhado do leigo Antônio Rodrigues, deixou a capital paraense e assumiu Abacaxis em 12 de setembro. Desde então o núcleo só fez crescer passando a reunir variegados contingentes étnicos. Antes de completar um ano a povoação já abrigava cerca de 500 pessoas, distribuídas por cinco grandes malocas rodeando uma assobradada casa paroquial e a igreja de taipa de mão coberta de palha.

Antes do Natal de 1696, Abacaxis recebeu a visita do Superior

José Ferreira. Passou sete dias batizando e pregando aos índios. Pôde testemunhar que a pajelança e a poligamia ainda eram presentes na região. Para maior eficiência da catequese e da conversão dos índios, padre Ferreira recomendou ao padre João da Silva o cumprimento do regulamento da Ordem e, especialmente, a disseminação de missas aos domingos e dias santos de guarda; a distribuição diária dos sacramentos; a continuidade das lições de catecismo às crianças; a abertura de uma escola de “ler, escrever e contar”; o desenvolvimento entre os meninos do ensino das artes (música, teatro, pintura, carpintaria, escultura, etc.) e das técnicas agrícolas.

No aldeamento, além das missas, era comum em épocas de grandes festejos a realização de encenações teatrais, danças comunitárias, procissões. Fiel às suas obrigações, desde logo João da Silva mandou melhorar o aspecto físico da capela e encomendou de Belém o restauro da imagem da Santa Padroeira. Já solicitara ao Superior José Ferreira a troca da pia batismal de barro por outra de cobre ou latão e a aquisição de um novo hostiário, alfaias e um crucifixo para o altar. Lembrando que as hóstias eram feitas de farinha de mandioca, na própria missão.

Por mais que se esforçasse, João da Silva não conseguiu abolir certas práticas indígenas, consideradas pagãs. Os nativos jamais aderiram integralmente ao Catolicismo. Mantiveram muitas de suas práticas tradicionais. Não foram raros os pajés e xamãs que permaneceram como focos de resistência, por vezes dissimulando que aceitavam os ritos cristãos. Apropriando-se de suas formas externas, continuavam em segredo o culto aos seus próprios deuses, imitando os gestos de bênção, usando cruzes e organizando cerimônias onde ofereciam às suas divindades hóstias de farinha e cuias de bebidas feitas de ervas mágicas.

No início de 1697, em virtude de doença, o padre João da Silva foi substituído por seis meses pelo padre Antônio da Silva. Inicialmente atendido pelo homeopata Francisco Potftiz, da equipe do governador do Maranhão e Grão-Pará, Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho (1655-1725), depois foi levado para convalescer em Belém. A comitiva governamental, composta de uma armada de 60 navios, subia o rio Amazonas e em março daquele ano aportou em Abacaxis onde descansou vários dias, enquanto eram completados os remeiros faltantes, reparados os barcos e refeitos seus estoques de farinha, frutas, carnes de caça e peixes.

No começo do século XVIII, Abacaxis já era considerada uma aldeia grande situada “em sítio farto e alegre”, uma povoação historicamente reconhecida e consolidada. Segundo a lista de etnônimos mandada fazer pelo jesuíta Bartolomeu Rodrigues, a comunidade detinha um elevado contingente populacional e, entre seus moradores e vizinhos, destacavam-se os Abacaxis, grupos que, de quando em vez, eram atacados pelos Mura. Ao entorno da missão contavam-se 27 tribos de várias denominações. Inclusas as do trecho intermediário Madeira Tapajós, totalizavam 75.

João da Silva pensou em mudar a missão para outro sítio e não disse as razões. O padre Domingos de Macedo, que o sucedeu em 1698, projetara “desdobrá-la em duas”, talvez devido ao desordenado crescimento dela. Macedo foi substituído em 1704 pelo padre alemão Francisco Xavier Molovetz (1672-1709). Após a morte prematura deste, e, graças à boa performance da maioria dos administradores que por ali passaram, Abacaxis prosperou muito, e nesse ponto quem mais se destacou foi frei João de Sampaio, por três vezes gerente do aldeamento (1715-1721, 1728-1730 e 1733-1742).

Em Abacaxis João de Sampaio gastou o melhor de sua vida: ergueu casa de sobrado e uma igreja em cujo redor havia grandes malocas morando em cada uma delas 100 pessoas. Serafim Leite destaca: “[…] Recolheu cacau para diversas obras do culto, ali e na igreja de Santo Alexandre do Pará, desceu perto de 400 índios de diferentes nações, catequizou-os e foi o maior apóstolo do rio Madeira”. Em 1730 a missão abrigava 930 habitantes e, segundo o padre João Daniel, figurava como “[…] uma das mais populosas de todo o Estado, e se podia chamar uma cidade de gente; tinha muita casaria, feitas as suas moradias ao modo do mato, muito grandes, e casa destas tinha para cima de cem cabeças”.

Em pouco tempo, esse aparente clima de paz e progresso no Baixo Madeira seria mudado. Nos anos 1745-1755, em seguida à terceira administração do jesuíta frei João de Sampaio, reiteravam-se os casos de doenças sazonais e as refregas entre agentes portugueses e indígenas, resultando no esvaziamento populacional da região. Nos últimos anos do reinado de dom João V (1689-1750), o Estado do Maranhão e Grão Pará foi assolado por um violento surto de Varíola que devorou mais de 40 mil pessoas, a grande maioria das quais escravos índios.

Por falta de mão-de-obra, o sistema produtivo, o comércio e as consequentes rendas tributárias foram fortemente afetados. Havia que revitalizar o tecido demográfico para impulsionar o processo de colonização. Para isso, o governo seguinte do rei José I (1714-1777) teve que lançar mão de três expedientes: o recrutamento de colonos, o descimento de índios do sertão para as povoações ribeirinhas e a introdução de escravos negros.

Pari passu, os padres da Companhia de Jesus passariam a ser vistos como um obstáculo às mudanças e reformas propostas pelo governo, liderado pelo primeiro-ministro Sebastião José de Carvalho e Mello (1699-1782), originando a cruzada antijesuita que culminaria com a expulsão em 1759 desses religiosos de Portugal e de todas as suas colônias.

No interlúdio, a missão itinerante que originou Itacoatiara sofreria outras duas mudanças de lugar: em 1757, de Abacaxis para um sítio da margem esquerda do Baixo Madeira, cerca de 70 km abaixo de Borba; e em 1758, dali para o Sítio Itaquatiara, à margem esquerda do Amazonas, onde, no ano seguinte, seria elevada à vila com o nome de Serpa.

* Capítulo Oitavo do livro As Pedras do Rosario do Autor.

Obs. Este artigo teve suprimidas suas notas. A quem interessar a leitura do texto original, completo, pode acessar o link a seguir. https://www.franciscogomesdasilva.com.br/obras-literarias/

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