Decadência & Recomeço
A extinção da supremacia política da Vila de Serpa sobre o Lugar da Barra, teve início em meados de 1825 com o decreto do governador do Grão-Pará, José Félix Pereira de Burgos, ordenando a remoção da Câmara de Barcelos para a futura Manaus. Essa providência, efetivada em dezembro desse mesmo ano, atentava contra a desenvolta atuação da Câmara de Serpa à frente do governo da antiga Capitania (e agora Comarca) do Rio Negro, iniciada em 1819, e derrogava – de fato – a superioridade da comunidade serpense sobre as demais povoações.
Continuando as desavenças no Amazonas, em 1º de outubro de 1828, o Imperador dom Pedro I promulgou a Lei Regulamentar das Câmaras Municipais, dando nova forma às edilidades, rompendo com uma longa tradição que garantiu o exercício de uma multiplicidade de atribuições aos órgãos. As câmaras das cidades passariam a contar com nove vereadores e as das vilas com sete (eram três), além de um secretário. Cada legislatura duraria quatro anos. A eleição ocorreria sempre no dia 7 de setembro, estando aptos a votar os cidadãos brasileiros no gozo de seus direitos políticos e os estrangeiros naturalizados. A presidência caberia ao vereador mais votado.
O Regimento de 1828 definiu as câmaras municipais como “corporações meramente corporativas”, vedada a jurisdição contenciosa que exerceram ao longo do período colonial. Com a perda das funções judiciais, este papel tornou-se responsabilidade do juiz de paz, cargo existente em cada freguesia ou paróquia. Nesse novo arranjo, as câmaras “ficavam subordinadas aos presidentes provinciais, primeiros administradores delas”, e às assembleias provinciais.
Com a nova legislação imperial, esperava-se que a Comarca do Rio Negro fosse elevada à Província. Ao contrário, ela continuaria subordinada ao Grão-Pará. As seguidas reclamações e queixas partidas do rio Negro e dirigidas ao Imperador do Brasil não foram atendidas. Com o decreto de 1825, a governança da região continuou sob o comando da Câmara de Barcelos, trazida para funcionar no Lugar da Barra e apenas designada de Câmara Governativa da Comarca.
Para complicar ainda mais a situação, em meados de 1828 o governo paraense entendeu de fazer recolher a Câmara de Barcelos à povoação de origem, além de decretar intervenção militar na Comarca do Rio Negro, nomeando como interventor ao coronel Joaquim Felipe dos Reis, que logo assumiu. Os primeiros anos dessa administração ocorreram calmos e nos anos seguintes a Comarca viveu dias agitados. Em 1831, no Rio de Janeiro, com o pretexto de resolver a crise que grassava não só no Amazonas, porém, em outros locais do Império, e que tomou maior dimensão com a abdicação de dom Pedro I – naquele ano – foi outorgado o Código de Processo Criminal de 29 de novembro 1832.
O novo diploma jurídico unificava a legislação esparsa; criou a Guarda Nacional visando à manutenção da ordem pública ameaçada por uma série de revoltas provinciais, que contestavam a centralização do poder nas mãos de parte da elite política de então; e tratou da nova organização judiciária, que manteve nas províncias a divisão em distritos de paz, termos e comarcas. Todavia, ao descentralizar o processo atribuindo aos presidentes provinciais o direito de proceder “quanto antes a nova divisão de termos e comarca”, o governo imperial ‘reforçou’ o poder de mando e o caráter repressivo e violento do governo paraense – e assim a Comarca do Rio Negro continuou sujeita ao Pará, e a Câmara de Serpa foi sumariamente extinta.
Opresidente do Grão-Pará, José Joaquim Machado d’Oliveira, através do Ato de 25 de junho de 1833, dividiu o território da Província em três comarcas: a do Grão-Pará, a do Baixo Amazonas e a do Alto Amazonas, sediada em Manaus, novo nome dado ao Lugar da Barra, e, assim, desaparecia a Comarca do Rio Negro. O Alto Amazonas, além de Manaus, ficou com mais três vilas, e sedes de termos: Tefé (antiga Ega), Maués e Barcelos. As outras passaram a simples povoados: Silves (antiga Saracá), Santo Elias do Jaú (ex-Airão), Borba, Araratema, Vila Nova da Rainha (atual Parintins) e Tupinambarana.
A Comarca do Alto Amazonas continuou governada pelos comandantes militares enviados de Belém, e essa sujeição aumentou a frustração e a revolta do povo amazonense. O movimento nativista descambou para a luta armada e mais uma vez lá estava o idealista João da Silva e Cunha, ex-presidente da Câmara de Serpa. Em 1821 ele integrou a Junta Governativa que substituiu o deposto governador Manoel Joaquim do Paço. Sua presença foi atuante e temerária nas muitas reuniões realizadas antes e após a Independência. Novamente membro da Junta em 1832, na revolta desse ano, ao lado de frei José dos Santos Inocentes (c.1773-1852) e outros bravos, bateu-se destemidamente até ver, com uma ponta de frustração, serem derrubados os intentos autonomistas do Amazonas. Exerceria, entre 1834 e 1836, a função de juiz de órfãos da nova Comarca. Com absoluta razão o historiador Arthur Cézar Ferreira Reis o denominou de “o patriota das agitações autonomistas de 1832”.
Embora a preponderância política de Serpa sobre Manaus tenha sido, DE FATO, encerrada em julho de 1825 – consoante informado no Capítulo anterior – DE DIREITO, o encerramento só ocorreria oito anos depois. Em 25 de junho de 1833, segundo Mário Ypiranga Monteiro,
“[…] A última cerimônia realizada pela Câmara de Serpa com respeito ao Lugar da Barra […] foi o recebimento do exemplar do Código de Processo Criminal, o qual, na divisão da Província em Comarcas e Termos, para completar a execução do famoso Código, fora omitido o nome da vila. Essa passou, de repente, à condição inferior, perdendo a predicação. Crê-se geralmente ter sido involuntário o esquecimento. Mas nós perguntamos: diante da situação em que figurava a Barra, não teria sido mesmo proposital a omissão do nome da vila que vinha prejudicando a posição da Barra? Não teria havido políticas? Nunca se pode averiguar.
O celebrado historiador amazonense ainda disserta:
“[…] Esse famoso Código ocasionou duas injustiças: o não reconhecimento da Província do Amazonas e o não reconhecimento da vila de Serpa. Todavia, este último engano veio beneficiar o então Lugar da Barra, que fugia da órbita de influência da vila de Serpa, ascendendo ao prestígio de vila – Vila de Manaus, de acordo com o artigo 27 do mesmo decreto que punha em execução o Código de Processo. […] Portanto, Serpa voltava à condição de freguesia de Nossa Senhora do Rosário, incorporada ao termo de Manaus.
Mário Ypiranga, apoiado em Arthur Reis, reafirma com autoridade: a preponderância de Serpa sobre o Lugar da Barra só cessou no final de 1833:
“[…] Foi com o Código de Processo Criminal, expedido em 1832, que se elevou o Lugar da Barra à categoria de vila. […] Ainda não era o máximo, mas já era um passo dado no sentido de uma autonomia. […] As falhas do Código não prejudicaram apenas a Capitania, que deixou de ser elevada à Província: Serpa perde nessa conjuntura política a predicação de vila, por lamentável omissão, passando a simples freguesia […] E a sua Câmara eleita? Qual a situação da Câmara de Serpa? Extinguiu-se por força daquela falha do Código de Processo? Não parece. Tanto que o historiador Arthur Reis acena com um documento precioso, em que o governador da Província do Pará incrimina ao presidente e vereadores da Câmara Municipal da vila de Manaus, em 1834, por não haverem procedido a eleição em tempo hábil, o que se verificaria de fato a 17 de dezembro de 1833”.
O criminoso rebaixamento de Serpa, além de atrasar suas conquistas materiais, golpeou fundamente os brios e a espiritualidade da vila. O decreto do governo paraense veio em represália à independência com que se portara a Câmara de Serpa. Enquanto esta expôs sinais de combate defendendo o coletivo amazonense, Manaus mirou a si mesma. Do episódio resultou a lição de que em política não há justiça; há, sim, vencedores e vencidos. Embora vitimada pelo ódio e pela incompreensão, Serpa cuidaria de dar prosseguimento à sua caminhada.
Em 1832, em pleno apogeu da luta pela autonomia do Amazonas, o vigário do então Lugar da Barra, frei José dos Inocentes, foi removido para Serpa. Atribui-se que sua remoção ganhou o caráter de castigo por haver tomado parte do levante sangrento contra a sede do governo, que resultou na morte do comandante militar Joaquim Felipe dos Reis e na deposição de seu substituto coronel Francisco Ricardo Zany. Frei José permaneceu como vigário encomendado de Serpa até esta perder a condição de vila. Seu retorno à Barra deu-se pela incumbência recebida de oficiar, em 21 de dezembro de 1833, a missa solene de inauguração da nova vila de Manaus.
Passados dois anos da perda de sua autonomia política, Serpa iria se defrontar com a Guerra da Cabanagem, levante armado que envolveu toda a Amazônia. Os cabanos – índios, caboclos e escravos africanos – vingando-se das explorações, em 5 de janeiro de 1835 tomaram Belém e avançaram por todo o interior. Em cinco anos de combate foram mortas mais de doze mil pessoas. Em 1836, Serpa e Amatari foram duramente atingidas e Manaus cedeu duas vezes. Em 6 de agosto do ano seguinte, Ambrósio Aires (c.1798-1837), o mais valente defensor da Comarca, foi massacrado e morto em Autazes.
Encerrada a sedição, em 1837, a repressão se amplia até 1840: os cabanos são perseguidos, mortos, torturados e reduzidos à escravidão. Serpa ficou na maior penúria. Sua população, que em 1840 ascendia a cerca de 700 pessoas, diminuiu consideravelmente. A produção agrícola e pastoril local praticamente desapareceu. O Arquivo Municipal foi saqueado e dali sumiram importantes documentos, como a Ata de fundação da antiga vila, a lista de seus primeiros mandatários e a carta régia da Coroa portuguesa que delimitou o seu patrimônio urbano.
Para o naturalista francês Paul Marcoy (1815-1888), que passou por Serpa em julho de 1847, a visão do lugar não era das mais promissoras:
“[…] A vila de Serpa consiste de umas trinta casas dispostas em linha num barranco amarelo-pardo que se eleva a dez pés sobre o nível da água. As casas ficam tão juntas uma das outras que a certa distância parecem um só edifício. Ao redor das casas há uma extensão considerável de grama amarela e ressecada; ao fundo eleva-se o paredão verde da floresta. Isto é Serpa! [Navegando junto à margem], procuramos em vão por um morador ou por uma janela aberta no alinhamento de casas. Tudo estava fechado e silencioso. Assim que mudamos o rumo, o barulho das roldanas mal engraxadas [da nossa embarcação] acordou alguns cães de guarda que não havíamos visto. Sete ou oito deles, todos em pele e osso, arremeteram para a margem do rio seguindo-nos com latidos furiosos. Essa cidade fantasma, que logo perdemos de vista, […] devia estar mergulhada num sono profundo”.
Diferente opinião manifestou o bispo diocesano dom José Afonso de Morais Torres (1805-1865) que, procedente de Belém, entre 7 e 18 de setembro daquele ano, visitou Serpa e descreveu-a “[…] com pouco mais de cinquenta casas e uma igreja coberta de telhas, espaçosa e bem construída”. A Vigararia estava sob o comando do padre João Antônio da Silva, o qual desde 1831 morava no lugar. Durante seus impedimentos, entre 1843 e 1848, a religião foi professada pelos padres Nuno Alves do Couto e Gaspar Porfírio Delgado. Espírito exaltado e adepto da legalidade, João Antônio, além de vigário foi professor em Serpa; lutou contra os cabanos e, no auge da sedição em 1837, foi preso. Segundo dom José Afonso, ele “[…] era um homem bom, insigne pescador, manejava bem o arco e a flecha, com que dava de comer à pobreza de Serpa”.
O bispo dom Afonso de Morais Torres pensou em construir um Seminário em Serpa “[…] para aproveitar alguns moços, aliás talentosos mais sem meios para irem estudar na capital desta Província” (15). Durante a sua passagem pela freguesia crismou pouco mais de trezentas pessoas e em seguida foi visitar Silves.
À época, o isolamento dos padres os expunha à uma vida dissoluta e a se envolverem na política. Subordinados ao governo, a côngrua mensal que lhes competia sempre atrasava e mal dava para garantir-lhes o sustento. Para suprir suas necessidades materiais, os vigários teriam que buscar outras alternativas, inclusive fora de sua sede paroquial.
Naqueles idos, Henry Walter Bates e Alfred Russel Wallace (1823-1913) viram Serpa com simpatia. Os cientistas ingleses aportaram na freguesia no final de 1849. Bates chegou primeiro, às vésperas do Natal; não escondeu o desarrumo da área urbana de Serpa, dizendo-a “com cerca de oitenta casas” e ressaltando ter sido a freguesia “em outros tempos sede do governo distrital, com jurisdição sobre a Barra do rio Negro” e, que à altura de sua chegada, ela se mostrava
“[…] cheia de animação por causa do grande número de pessoas que tinham vindo de fora para as festas. O porto estava cheio de embarcações, grandes e pequenas, desde as montarias com seu toldo em arco feito de cipó trançado e folhas de maranta, até os barcos de dois mastros dos mercadores, que para ali tinham acorrido na esperança de comerciar com os agricultores vindos de distantes pontos da região para assistir às festas. […] A população constituída, em sua maioria, de índios semicivilizados, que moravam, como de hábito, em choças de barro. As ruas tinham um traçado irregular e estavam cheias de mato. […] As poucas pessoas da raça branca residentes ali, bem como os mestiços de classe mais alta, moravam em casas mais bem construídas, caiadas e cobertas de telhas. Todos os moradores do lugar me pareceram […] mais cordiais no trato e mais rudes de hábitos do que os brasileiros que eu havia conhecido até então. […] Alguns eram gente de peso, proprietários de navios mercantes, de escravos e de vastas plantações de cacau e fumo”.
Bates desembarcou em 23 de dezembro e deixaria Serpa no dia 28. Foi à Missa na Igreja Matriz, acompanhou a procissão de Nossa Senhora, ouviu populares, anotou gestos e hábitos de negros e índios e pesquisou a natureza circunvizinha. Na freguesia dedicou particular atenção às festas populares, e, em especial, às do çairé e São Benedito. Acompanhemos sua narrativa:
“[…] Permanecemos cinco dias em Serpa. Algumas cerimônias realizadas no Natal não deixaram de ser interessantes, tanto mais quanto eram, com ligeiras modificações, as mesmas que os missionários jesuítas tinham ensinado há mais de um século às tribos indígenas induzidas por eles a se estabelecerem ali. Pela manhã todas as senhoras e moças do lugar, trajando blusas de gaze branca e vistosas saias de chita estampada, seguiram em procissão até a igreja, depois de darem uma volta pela cidade a fim de chamar os vários ‘mordomos’, cuja função era ajudar o ‘juiz’ da festa. Cada um desses mordomos segurava uma comprida vara branca, enfeitada de fitas coloridas; inúmeras crianças participavam também da procissão, cobertas de grotescos enfeites. Três índias velhas iam na frente, levando o çairé, que consiste num traçado de cipó semicircular, recoberto de um tecido de algodão e incrustado de pedaços de espelho e enfeites semelhantes. Elas agitavam essa peça para cima e para baixo, cantando ininterruptamente um hino monótono e plangente na língua tupi e se voltando de vez em quando para os que vinham atrás, os quais nesse momento interrompiam a sua marcha. […] À noite o povo se entregou a alegres folguedos por toda a cidade’”.
Da Praça da Matriz Bates dirigiu-se ao bairro do Jauarí, onde, em um terreiro amplo, aberto e pouco iluminado, atrás da lagoa homônima, assistiu à Festa de São Benedito. Os negros, devotos do santo africano, faziam sua comemoração à parte e
“[…] passaram a noite toda cantando ao compasso de um tambor comprido chamado ‘gambá’ e do caracaxá. O tambor era feito com um pedaço de tronco ôco, fechado numa das extremidades por um couro esticado; era colocado horizontalmente no chão, e o tocador montava nele, percutindo-o com os nós dos dedos. O caracaxá era feito de um pedaço de bambu cheio de entalhes, os quais produziam um som áspero e matraqueante quando se passava uma vareta ao longo deles. Nada se comparava, em monotonia, a esses sons, cantos e danças, que continuaram pela noite a dentro com inexaurível vigor. Os índios não executaram nenhuma dança, já que os brancos e mamelucos tinham monopolizado todas as morenas bonitas do lugar, atraindo-as para os seus bailes, e as índias mais velhas preferiam assistir à festa ao invés de tomar parte nela. Os maridos de algumas delas juntaram-se às danças dos negros, e dentro em pouco estavam bêbados. Era divertido observar como se tornavam loquazes, sob a influência do álcool, os taciturnos índios. Os negros e os índios justificavam as suas bebedeiras dizendo que os brancos também se estavam embriagando do outro lado da cidade, o que era a pura verdade”.
Na festa de Nossa Senhora do Rosário, o movimento da freguesia se fazia com a chegada dos barcos que atracavam na orla trazendo muitos devotos. O sino tocava, anunciando a alvorada. O padre se fazia presente celebrando missa, batismos e casamentos. Todas as noites realizavamse novenas. A dança do çairé e a Festa de São Benedito eram dois eventos de final de ano. Muito concorridos na freguesia, começaram no século XVII, ainda na missão jesuítica de Canumã, depois passaram à Vila de Serpa e finalmente à Cidade de Itacoatiara, e vigeram provavelmente até as primeiras décadas do século XX.
Manifestação folclórico-religiosa, ou encontro da cultura indígena com a religião católica, o çairé é uma festa de louvor ao Divino Espírito Santo. De acordo com o Barão de Sant-Ana Nery (1848-1901), trata-se de
“[…] um semicírculo de madeira, de 1,40 metro de diâmetro [e nele] dois outros menores são inscritos, tangentes um ao outro, e tocando o grande diâmetro. […] Todo o relato bíblico do dilúvio está contido nessa representação simbólica. O grande arco representa a arca de Noé; os espelhos significam a luz do dia; os doces e as frutas, a abundância que reinava na arca; o algodão e o tamborim, a espuma embranquiçada e o ruído das ondas do dilúvio; o movimento que se imprime ao çairé lembra o balançar da arca sobre as águas. Os três círculos tomados em conjunto figuram a Trindade, distintos embora se penetrando. As três cruzes são a imagem do Calvário, com Cristo crucificado entre os dois ladrões, e assim por diante. […] Os missionários, assim, tornaram acessíveis a essas inteligências [índios] os principais dogmas do Catolicismo. Não se preocuparam com os rigores teológicos. Só tinham uma finalidade: tornar mansas e boas essas infelizes criaturas humanas. […] Conseguiram desse modo, tirar aos índios uma parte de sua ferocidade, e desfigurar insensivelmente suas crenças primitivas”.
Em seguida à retirada de Bates, Alfred Wallace chega a Serpa. Era final de dezembro, mas este ainda pôde assistir a uma procissão na Praça da Matriz. Encheu-se de curiosidade sobre as danças e enfeites que constavam do cerimonial cristão. Foram-lhe oferecidos vinhos e doces. Comeu peixes e frutas. Ao visitar o Sítio Itaquatiara, a leste da freguesia, achou os desenhos esculpidos sobre os rochedos da margem do rio parecidos com os do Orenoco, região que visitara tempos atrás.
Os negros que Bates e Wallace viram dançando no bairro do Jauari eram descendentes dos quilombolas que fugiram do Madeira em meados do século XVIII, ou foram transferidos para Serpa à época ou nos anos seguintes à instalação da vila. Calcula-se que tencionaram construir uma capela em homenagem à Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, mas, perseguidos pelas autoridades e pela Igreja, desistiram da ideia. Para sobreviverem, ocupavam-se fazendo trabalhos braçais ou em atividades de caça e pesca. Viviam nas matas e, ao mesmo tempo, em contato com a sociedade envolvente que os rodeava, os vigiava, controlava e perseguia.
Quando, em meados do século XVIII, teve início o processo de caboquização da Amazônia – a mescla de sangue entre brancos e índios – a grande miscigenação que em poucos anos iria dar às comunidades regionais (inclusive à missão que deu origem a Itacoatiara), uma geração nova, ampliada ainda pela intrusão de mamelucos e caribocas, o negro foi praticamente alheado dessa mudança de hábitos. A respeito, assim se manifesta Mário Ypiranga Monteiro:
“[…] Medíocre foi a intrusão do negro como força dinamizadora de qualquer fenômeno, étnico, social, econômico. Enquanto as leis josefinas cumulavam de isenções e privilégios a mescla de branco com o natural, o negro ficou, sempre, um elemento obliterado mesmo economicamente. […] A legislação pombalina [Alvará de 4 de junho de 1755] fomenta esses enlaces”.
No mesmo passo quanto ao aviltante preconceito contra os negros, no período colonial, também comenta Bertino de Miranda:
“[…] Casar com índia é ser preferido sempre para todos os cargos e distinções de nobreza. […] Mello e Póvoas se limitou a insuflar nos moradores os casamentos mistos. Para tirar aos brancos e aos índios todo o pretexto de contágio com a outra raça, um decreto régio declarava infame os que se casem com as negras, ou vice-versa, as mulheres brancas e as índias que se ajuntam aos negros”.
Voltando à Serpa… Já era manhã do primeiro dia de 1850 quando Alfred Wallace seguiu em direção a Manaus, onde reencontraria o seu conterrâneo Henry Walter Bates.
A histórica passagem dos cientistas ingleses por Serpa permitiunos conhecer esses dois momentos marcantes do sagrado e do profano itacoatiarenses. Marcantes e interessantíssimos pelo conteúdo cultural e etnográfico, probatórios de que Itacoatiara é um laboratório de conhecimentos, um território de resistência que guarda um pouco da memória de um Brasil profundo, complexo e cheio de desafios. Esses e tantos outros eventos revelam-se desafiadores, concitam estudiosos e cientistas amazônico-brasileiros a irem fundo em suas pesquisas sobre a vida, os costumes e a memória das populações interioranas.
Na década de 1840, Serpa era grande produtora e exportadora de manteiga de tartaruga. Acondicionada em potes, internamente servia à cozinha e às iluminações pública e privada. Um dos locais de produção era a Ilha da Trindade, ou do Cumaru, nas proximidades da boca do Madeira, e por isso apelidada de Ilha da Mantegueira. A direção da freguesia, desde 1843, estava sob os cuidados do capitão da Guarda Nacional Manuel Joaquim da Costa Pinheiro. Henry Walter Bates o conheceu e dele se tornou amigo. Dizia-o um homem cheio de vida, inteligente e generoso. Famoso em todo o interior pela assistência e ajuda que dava aos residentes e viajantes estrangeiros. Então, era fiscal procurador da freguesia Leonardo Ferreira.
A freguesia, apesar de abandonada pelo poder central, estava na dianteira das demais povoações da Comarca do Alto Amazonas. Segundo Araújo e Amazonas, “[…] Seus habitantes eram em número de 1.720, distribuídos em 170 fogos. Cultivavam, além do necessário à sua subsistência, algodão, café e tabaco. Pescavam pirarucu, tartaruga e peixe-boi. Teciam panos e redes de algodão. Manipulavam azeites de tartaruga, de peixe-boi e de andiroba. Extraiam breu, salsa, cravo e copaíba. Criavam em reduzida escala algum gado muar”.
A passagem de Bates e Wallace – coincidindo com os 90 anos de criação da Paróquia de Serpa (1759-1849) – além de seu elevado conteúdo histórico, redundou em testemunhar a reunião íntima do sagrado e do profano, a interação perfeita entre a tradição indígena e a religião cristã. Já afirmáramos duas décadas atrás,
“[…] Após a encenação espiritual e contemplativa da missa de final de ano, no interior da Matriz, à tardinha os fiéis se transportavam à rua para formar a procissão em homenagem à Santa Padroeira. Nessa parte da cerimônia algumas mulheres, enfeitadas de fitas e flores, iam dançando pelas ruas no trajeto para a igreja, com o padre à frente, da maneira mais burlesca possível. A procissão – evento da Igreja Católica que data de muito longe, tradicional, e anima as festas anuais do povo católico – ocorria da seguinte maneira: a multidão em filas, e o sacerdote à frente, marchava entoando preces e conduzindo a imagem da Santa sobre o andor ornamentado de fitas e flores. […] O arraial – outra transmissão de valores espirituais que procede de muitas gerações – marcado pelo entoar de músicas solenes e caracterizado pelo forte ajuntamento de populares locais e romeiros chegados na véspera, […] comestíveis, jogos e diversões expostos nas barracas irregularmente distribuídas pela praça da Glória e pela travessa Mítica. […] A quermesse, feira com leilão de prendas expondo frutos e animais. […] O povo se entregava a alegres folguedos”.
Ao tempo, a luta pela emancipação política da Comarca do Alto Amazonas caminhava para um bom desfecho. Em julho de 1849, no recinto do Senado, no Rio de Janeiro, reabriu-se o debate em torno da proposição aprovada pelo plenário da Assembleia Legislativa Geral, em 19 de junho de 1843 – elevando a Comarca amazonense à categoria de Província, desvinculada do Grão-Pará. Destarte, através da Lei nº 582, de 5 de setembro de 1850, sancionada pelo Imperador dom Pedro II (1825-1891), o Amazonas ganhou autonomia política e administrativa passando a integrar o Império do Brasil. A freguesia de Serpa, liderada pelo então diretor Damaso de Souza Barriga (c.1813-1876), comemorou festivamente o acontecimento.
O diretor Damaso de Souza Barriga assumiu em meados de 1850 substituindo a Manuel da Costa Pinheiro, e eles se revezariam no governo da freguesia até a reinstalação da Vila, em junho de 1858. Em 1851, a Paróquia Nossa Senhora do Rosário de Serpa passou ao comando do padre Manuel Inácio Raposo – e naquele mesmo ano foram criadas a Agência Postal e a Coletoria de Rendas de Serpa, seguidas do Cartório de Registro Civil. A futura Itacoatiara tinha um amplo horizonte de futuro pela frente.
* Capítulo Decimo Sexto do livro As Pedras do Rosario do Autor.
Obs. Este artigo teve suprimidas suas notas. A quem interessar a leitura do texto original, completo, pode acessar o link a seguir. https://www.franciscogomesdasilva.com.br/obras-literarias/
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