Não se sabe quando, mas, provavelmente, foi no encontro da arqueologia cabocla da tradição das itaquatiaras com os estudos do comportamento indígena das dezenas de etnias residentes em Pedra Pintada, que teve início o conhecimento antropológico da riqueza sociocultural da diversidade das artes que professamos, guardando em nossas lembranças de tempos imemoriais esse encontro. No início houve um estranhamento de parte a parte. No entanto já havia um norte traçado para a compreensão e convergência da história das mais de 100 nações que habitaram nosso território, das quais herdamos delas a miscelânea construída na dinâmica oficina da floresta. Foi assim desde a 1ª Missa em Itacoatiara.
Os exemplos são claros a esse respeito e culminou na década de 30, com a construção da Escola de Música de Itacoatiara, referência na Amazônia tão esquecida pela sociedade brasileira, na formação de grandes músicos regionais. Naquele período um dos instrumentos mais amados pelos itacoatiarenses era o violino, tido como símbolo da elite local, onde era fácil a classe abastada imigrante mandar comprar na Europa, especialmente na Itália, para ter um filho que dominasse tal arte e, deste modo, poder acompanhar as coralistas nas igrejas. Também foram aproveitados na época do cinema mudo.
Foi assim que por necessidade nasceram, no Principado de Serpa, os primeiros luthiers de violino – arte e ciência da confecção de instrumentos musicais com caixa de ressonância de arcos encrinados -, para atender a demanda da classe popular. Só para exemplificar o Brasil importava crina de cavalo da Mongólia, em que um maço, custava uma fortuna. As essências florestais sempre foram as amazônicas. Os mestres da Cidade da Canção formados na nobre arte dos palácios eram Francisco Ferreira da Costa, Luís Gama, Benjamin, Quitó e Raimundo Diniz dos Santos que atendiam em seus ateliês.
Agregada ao ofício da Lutheria do Violino estava a Archetaria – arte e ciência da construção de arcos encrinados -, e, ao pressioná-los contra as cordas imprimiam um som harmônico e límpido ao ambiente. Com a ‘astúcia’ dos tapuios e baseados no experimentalismo, as crinas foram substituídas aos poucos, pelas fibras de Aninga, facilmente obtidas no Lago do Jauary. Secas, penteadas retilineamente de cima para baixo davam um aspecto de homogeneidade e volume que, pesando, 5.8 gramas em balança de precisão, eram presas a um gabarito prontas para colocação no arco.
Outra opção era a utilização das vísceras – tripa -, do macaco uacari, coatá, kuamba ou guariba. O processo de fabricação da corda vegetal era complexo… Todavia para a obtenção de produção do modo animal, limpava-se a matéria-prima, ou seja, escaldava-se em fogo brando a tripa do primata e após, estendia-se em um caibro, dentro de casa, em lugar arejado. A seguir riscava-se com a navalha, tendo como referência uma régua de madeira, inúmeras tirinhas compridas e frágeis. Os archeteiros as enrolavam em torno de si mesmas delicadamente com os dedos, produzindo efeitos de forma espiral, esticando as cordas do instrumento. O arco deveria ter uma boa curvatura, conseguida com o aquecimento de uma lamparina sob a madeira.
Para colar as laterais, o tampo inferior ao superior, o braço e a queixeira etc. encomendavam de um pescador o ventre de um Colossoma macropomum ou de um Arapaima gigas e, através de cozimento especial, era preparada a melhor cola para instrumentos musicais do mundo. A alma do violino, atrás do pé do cavalete, era, engenhosamente, colocada por uma espécie de cambito torto em ambas as pontas. Para finalizar o trabalho, utilizava-se folha de Caimbé, semelhante a uma lixa grossa e, para o fino acabamento, paciência no esfregar a folha da pimenta longa. Para dar o brilho usavam a resina jutaícica, muito conhecida no embelezamento de igaçabas.
Para afinação do violino na ausência do pêz, o breu branco ainda é empregado no interior e, constringindo o mesmo contra as cordas para lá e para cá, várias vezes eriçam-se as cerdas extraindo-se um som perfeito. A ferramentaria, de uso diário e rudimentar para fazer as formas, eram construídas ou emprestadas da carpintaria naval.
Nas domingueiras o maestro Ubirajara Fona em meio a buganvílias – em cima do mesmo banco de madeira em que subiu Juscelino Kubitschek, em 1955, para fazer um comício para cerca de 300 pessoas, em sua caminhada para a Presidência da República -, na Praça da Matriz, na Cidade da Pedra Pintada, regia os músicos Francisquinho, Luís Gama, Benjamin, Quitó e Didico(que atuava como spala) em uma audição matinal, após a missa, em que os músicos faziam aquele ‘floreado’, tocando os clássicos populares de Pixinguinha e Ary Barroso a Cartola e, também, música erudita que íam desde a 5ª Sinfonia de Bethovem até a peça completa Ave-Maria e Jesus, alegria dos homens(Bach) a Carlos Gomes.
*É Jornalista. Natural de Itacoatiara (AM).
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6 respostas
Que texto, meu amigo. Que belezura! Uma mistura de erudição com caboclitude! A nossa terra tem disso: homens e mulheres, valorosos homens e mulheres, que pensam grande. Vc, meu amigo e irmão José Raimundo me dá muito orgulho e me emociona!
Parabéns! Que Deus o conserve assim, lindo de coração e de alma. Homem que traz na memória, na palavra e na escrita a valoração desse espaço tropical de inigualáveis beleza e ternura, que é a Velha Serpa!!!
Meu ilustre, grato. É meu dever! No entanto saiba que tudo que sei devo a você. Sempre assisti seminários, participando ou promovendo palestras etc.
Parabéns pela inenarrável matéria. Sou neto do ilustre Ubirajara Dona, e fiquei imensamente lisonjeado pelo reconhecimento aqui representado ao meu avô. Obrigado!
Parabéns pelo texto , eu como neta fiquei emocionada de ver o nome do meu avó Ubirajara ,muito obrigada mesmo.
Meu saudoso avô
Que beleza! Do nada o senhor, me fez lembrar do meu talentosissimo avô , Ubirajara Fona(Bira para os íntimos). Muito obrigado!