Manaus, 16 de setembro de 2024

Luiz Bacellar e sua poesia (I)

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Profissão poesia

Luiz Bacellar4 se dizia pertencer a uma das mais antigas famílias brasileiras e portuguesas, remontando a Mem de Sá (1500-1572), meio irmão do poeta Sá de Miranda, numa conclusão a que chegou com os estudos de heráldica e medalhística em que se tornou exímio. Esse fato genealógico é estudado por intelectuais do Estado do Maranhão, origem recente da família de sua mãe, que há mais de cem anos veio para Manaus com os pais. Sobre essa questão a imprensa maranhense da época registra um episódio acontecido com o poeta, primo do Luiz (Franco de Sá) Bacellar, de nome Antônio Joaquim Franco de Sá (1836-1858), falecido quando estudava na Faculdade de Direito do Recife, aos 22 anos de idade, acometido de tuberculose.

Antônio Joaquim e Gonçalves Dias (1823-1864) se confrontaram. O poeta da Canção do Exílio alegava que o autor de Esbelta pertencia a uma família que, por se julgar exclusiva, pleiteava para si as melhores posições na sociedade maranhense de então. Um deles foi Filipe Franco de Sá (1841-1906), coincidentemente irmão de Antônio Joaquim, magistrado e político, deputado e senador, ministro do Império de 1882 a 1889, com direito a retrato entronizado nas galerias do Museu Imperial de Petrópolis. Muito dessa desavença, no entanto, debicada entre os dois poetas, podia ser considerada uma atitude que não ultrapassava arrufos de gente nova. Embora Luiz Bacellar cultuasse com veneração as raízes de sua origem e esses fatos o comovessem, sua dedicação à literatura convertia-os em matéria de poesia, que é o trabalho do poeta. E ninguém melhor do que Luiz Bacellar para confirmar essa verdade, como está na chave de ouro do soneto Finis gentis meae:

da raça o resto e o pó que somos nós…

Outro fato acentuado em sua vida foi a perda prematura da mãe aos seis anos de idade, sinal revelado no poema A escada, saído em Frauta de Barro

Logo no início desse poema o poeta orienta o leitor:

a escada nasce do sonho
pelo sono revelada.

Em nota de pé de página da nona edição do livro o próprio poeta informa:

As diversas nuances que brotam do simbolismo da escada estão
diretamente ligadas às relações entre céu e terra, paraíso e
inferno, vida e morte.

Ele só não disse que esse poema contém uma revelação sobre a sua orfandade. Depois de cuidar da escada, sua construção e sua função comunicadora, veículo de subida e descida nos momentos do dia a dia, sob o brilho de metáforas douradas e luminosas, ele confirma:

Vejo-a, neste momento, exata e ampla.
E um menino, vestindo um camisão
branco, a subir por ela, mansamente
vai. Com uma estrela na mão.

(Lá vai, subindo por ela,
com uma branca e enorme estrela
remeluzindo na mão).

Minha cabeça repousa
na pedra ungida de sonho.

Minha mão desliza, lentamente,
obre o sujo e gasto
corrimão de vida. E para…

Com a ausência da mãe esteve sob a guarda dos avós, mas o pai decidiu deixá-lo interno no Colégio de São Bento, na cidade de São Paulo, onde passou sete anos, dos 11 aos 17. O pai decidiu que era esse o melhor lugar para deixar o filho. O poeta referia-se repetidas vezes com verdadeira reverência à sua orientação de alicerce beneditino. Mas a formação intelectual regular completou-a como bolsista do INPA – Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, cumprido no curso de Aperfeiçoamento de Pesquisa Social, na área de Antropologia Cultural, no Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, durante quatro anos sob a orientação do Professor Darcy Ribeiro (1922-1997).

De volta a Manaus, onde fixou residência, entre os seus hábitos estava o de ouvir música em grupo, no tempo dos indefectíveis toca-discos. Toda semana reservava pelo menos dois dias, aos sábados na biblioteca do poeta Sebastião Norões (1915-1972) e aos domingos na sala de música do Professor, poeta e musicista Raymundo Freitas Pinto (1887-1966), para audições de música sinfônica, que era a sua preferência, especialmente a de câmera. Seus estudos de música, por fim, tornaram-se mais eficazes ao funcionar como secretário do Conjunto de Câmera Orpheus, um quarteto de cordas criado e mantido por seu pai, o Sr. Francisco Bacellar, violinista e empresário, com repertório predominante de música do período barroco italiano e alemão.

Também ao regressar a Manaus, após realizar o curso de humanidades em São Paulo e o de nível superior no Rio de Janeiro, o poeta associou-se a um grupo de jovens intelectuais interessados na abertura de novas ideias nos horizontes de suas vidas. A seu modo foi um dos animadores desse grupo desejoso de mudanças nos estudos da política, da economia, do comportamento social e das formas artísticas, principalmente na literatura, na música e nas artes plásticas. Prefiro reconhecer nesse grupo, batizado de Clube da Madrugada, um instrumento de participação no movimento de transformação registrado nos anos 50 do século passado em Manaus. Finalmente, essa ação enraizou-se mais intensamente no terreno da criação artística e literária. Eram homens na maioria muito jovens e seu comportamento provocava comentários singulares na cidade. Atores de ações extravagantes, lançadas no rol das lendas urbanas, tinham o hábito de se reunir no cemitério de São João Batista, após soar a meia-noite, para celebrar rituais místicos de cavalaria medieval5. Reuniam-se, igualmente, mas de modo mais comportado e mais efetivo, na Praça Heliodoro Balbi, – também conhecida por Praça do Colégio Estadual ou Praça da Polícia, em razão de funcionar ali o referido colégio e, à época, o Comando da Polícia Militar do Estado, – hoje endereço de vários museus contando a história da vida amazonense denominado Palacete Provincial. Nesse ambiente foram lançados os fundamentos do projeto daqueles jovens, com a participação do poeta Luiz Bacellar, então por volta dos 26 anos de idade. Na tranquila Manaus desse tempo, com uma população formada por

volta de 150.000 habitantes, não era difícil acreditar-se nas invencionices sobre pessoas e confrarias excêntricas como aquela que se reunia no cemitério em rituais mágicos e entrava pela madrugada dentro, entregue a encontros em praça pública para conversar sobre filosofia, política, literatura e arte.

O lugar preferido para essas reuniões era o lado da praça onde existe ainda hoje a árvore de um mulateiro6,. Ali reluz também um “laguinho”, como chama o povo a esse espelho d’água ornamental do jardim da praça. Certa feita, numa dessas altas horas o jovem Luiz Bacellar, atraído pelo reflexo das luzes da noite nesse “laguinho”, disse aos amigos que o seu desejo era dar um mergulho naquelas águas, para banhar-se com as estrelas. O episódio comentava-se como gracejo, uma anedota, uma piada literária, ou um fato que em verdade aconteceu não se sabe. O que se sabe é que ao se cogitar da ideia de estabelecer espaços na vida de cada um daqueles jovens reservados ao debate sobre questões da atualidade no terreno da filosofia e da arte, foi Luiz Bacellar quem sugeriu que se aplicasse ao acontecimento o selo de Clube da Madrugada, tornando-se ao longo da vida uma das suas figuras mais representativas. Era ainda uma pessoa bem integrada na cidade e de excelente relacionamento com suas personalidades mais notáveis.

Ao defender novas formas de expressão entre os jovens, não desprezava as gerações anteriores. Visitava frequentemente Américo Antony, 33 anos mais velho, figura das mais expressivas das letras e muito ativa em sua ação criadora, porque de fato, Bacellar não estava tão empenhado em praticar a inovação de formas exteriores, mas, sim, expressar um novo modo de ver a vida, como sentia nos horizontes abertos pelo mestre de A ronda dos cisnes, um intelectual de experiência europeia, pois fizera o curso de humanidades numa cidade da região metropolitana de Londres, quando teve contato com a obra dos antigos poetas ingleses que o velho Américo Antony declamava com o tom do inglês clássico, para a surpresa e enlevo do jovem Luiz Bacellar. Desse aprendizado veio ganhando os timbres da poesia, transplantando esse conhecimento para os sinais da tradição na poesia de língua portuguesa, presente em sua poética, ou do cultivo à grandeza das novas doutrinas estéticas, como o surrealismo francês que era um dos temas estudados pelos jovens artistas na Manaus de então.

Na política Luiz Bacellar defendia uma posição aparentemente contraditória, conquanto fosse polêmica. Era monarquista e socialista. As pessoas ficavam basbaques sobre o modo de como conciliar posições teóricas antagônicas, tão distantes uma da outra e aparentemente conflitantes entre si. Explicava com simplicidade o seu posicionamento político. Dizia ele que ao Estado moderno, qualquer que seja a organização constitucional, compete providenciar meios de melhor distribuição dos bens da produção a toda a sociedade, entre ricos e pobres, credos religiosos ou origens étnicas, melhorando enfim o convívio social. Mas para que alcance esse objetivo o Estado precisa manter estabilidade institucional, equilíbrio possível apenas quando permanece no poder a mesma cabeça, isto é, o mesmo comando político-administrativo. O império da lei que constitui a essência do comando republicano, em determinados momentos em que as ambições políticas se exacerbam, passa a ser fator de somenos, partam tais atitudes de quem quer que seja de membros do executivo, do legislativo ou do judiciário, frágil, assim, ao fragor do tacão autoritário devastador das liberdades individuais.

É preciso que haja harmonia e o respeito à lei, que é uma virtude possível de se observar em qualquer sistema de governo. Ele apresentava como exemplo de equilíbrio o caso do Brasil no Segundo Reinado (1840-1889), que perdurou por 49 anos. Nesse período o país experimentou a maior estabilidade política da sua história e uma significativa projeção internacional como país civilizado. Luiz Bacellar estava entre os que pensavam assim. As crises políticas que em regra são provocadas por interesses regionais e de grupos econômicos e ideológicos e que agitam o ambiente de governo na República, são resolvidas com o impeachment, situação traumática e onerosa à vida socioeconômica do país. Na Monarquia as crises são resolvidas com a mudança de gabinete do governo, reformulando-se o ministério, providência menos dispendiosa, portanto. Dava como exemplo de Monarquia moderna bem sucedida o caso da Espanha. Dizia ele que essa providência foi uma forma ideal adotada para comandar um país como esse, constituído de regiões com características de verdadeiras nacionalidades autônomas, com línguas e dialetos próprios, algumas apresentando diferenças culturais insuperáveis como é o exemplo do País Basco, a expor contendas verificadas desde a prática na região de uma língua retro latina, portanto muitíssimo anterior à conquista romana.

Pelas dimensões do Brasil e a diferenciação de várias regiões marcadas por acentuadas características étnicas e geográficas, embora se fale uma só língua, apenas marcada com algumas variações dialetais, mas enfim agitado por periódicos conflitos ideológicos e programáticos de governo, a Monarquia constitucional seria a melhor solução, tal como sucede na Espanha e nos Países do Reino Unido, ele pensava.

Eram, portanto posições polêmicas e ele preferia cuidar de arte e poesia com personalidades do nível de Américo Antony com quem se identificava ainda, por serem eles homens de ampla erudição, com um vasto conhecimento de questões de cultura e arte e navegarem com desembaraço nos mares do mito e da magia.

Por essa época o poeta levantou uma questão que chamou de poesia nuclear. Houve reverente silêncio da parte dos seus parceiros no Clube sobre o tema. Foi um silêncio prudente vista a origem da ideia, partida de quem já havia granjeado o respeito intelectual de seus pares. Não foi, enfim, por falta de vontade de estimular o debate, mas pelatotal falta de interesse na proposta. O ambiente clubista estava sempre disposto ao debate de ideias novas, como aconteceu com o concretismo e o neoconcretismo, movimentos observados no Brasil na década de 1950, com profunda influência nas artes plásticas, na literatura e na música. O poeta Bacellar estudou o concretismo e o neoconcretismo, mas não aderiu à prática. Sua opinião é de que o esforço dessas agitações em conferir preferência pelo sentido visual do poema contribuía do ponto de vista formal, muito pouco para a sua realização. Reconhecia que a prática no enxugamento do estilo e na concisão da linguagem forçada pelo concretismo melhorava o texto. Era, portanto, uma contribuição positiva à realização do poema do modo de ver técnico. Mas havia um ponto basilar abraçado pelo concretismo que o poeta não aceitava de jeito nenhum, que era a eliminação do verso. Considerava o verso um elemento essencial ao poema, um instrumento de expressão de que era mestre o poeta. Talvez residisse aí a doutrina da poesia nuclear. Contra o esforço do concretismo em esvaziar a palavra de seu conteúdo semântico, o que ele pensava é que a poesia devia desenvolver-se mais ainda a partir do núcleo semântico da palavra. Mas enfim, a ideia desfez-se no tempo, como ficou para trás, também, a questão do concretismo e do neoconcretismo. O único documento escrito sobre a poesia nuclear é uma entrevista concedida pelo poeta a um dos jornais de Manaus, infelizmente não recuperada, que poderá ser objeto de futuros pesquisadores. Era uma coisa assim comprometida com o núcleo semântico da palavra, sem mexer na estrutura do verso. Finalmente, por falta de repercussão de sua proposta sobre a poesia nuclear, não houve debates, diferentemente do seu pioneirismo no exercício do haicai, que não tendo sido também posto em prática por seus confrades do Clube, mais tarde passou a ser praticada pelos poetas das novas gerações de Manaus, matéria de que me ocupo a páginas tantas deste livro. Na primeira edição do seu livro de estreia Luiz Bacellar publicou uma série de haicais.

Mas Luiz Bacellar permaneceu o mentor inicial da primeira geração dos jovens da madrugada. O seu livro de estreia Frauta de Barro7, proporcionou-lhe o prêmio nacional de poesia Olavo Bilac, edição de 1959, conferido pela Prefeitura do Rio de Janeiro, então capital da República, láurea cobiçada por poetas de todos os recantos do país que viam nele uma oportunidade de projeção nacional, ambicionado ainda pelo nível do corpo de jurados do certame, composto de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Manuel Bandeira (1886-1968) e o poeta e pintor José Paulo Moreira da Fonseca (1922-2004).

O evento levou o nome do Amazonas a repercutir na grande imprensa literária brasileira.Farias de Carvalho (1930-1997), um dos mais ativos animadores do Movimento, reconheceu a posição do poeta e a sua importância naquele momento, a quem chamou de

missionário evangélico do verso.

Sua poética, no entanto, não possuía apenas o sentido romântico infundido por esse verso de louvação. Sua prática de poesia alia a erudição à linguagem corrente. Oferece ao leitor uma quimera de simplicidade, isso com certeza, porque, em verdade sua maior preocupação era comunicar-se com o leitor, ao contrário de outros que tentam enclausurar a emoção nos gradis de um monte de palavras inócuas, ou dos que não querem mesmo se comunicar como Mallarmé (1842-1898), um dos poetas franceses de sua predileção, que propalava escrever sem nenhuma intenção de ser percebido por alguém. – Continua na próxima semana.

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4Manaus (1928-2012).

5 TUFIC – Jorge (1930-2018), in Clube da Madrugada 30 anos, página 23, Imprensa Oficial do Estado do Amazonas, Manaus, 1984.

6 Designação popular do Pau-mulato, indivíduo originário das várzeas amazônicas, conhecida como árvore da juventude, visto sua casca possuir utilidade cicatrizante e rejuvenescedora.

7Frauta de barro”, 9ª edição, Valer, Manaus, 2011, Prêmio Olavo Bilac 1959, conferido pela Prefeitura do Rio de Janeiro, então capital da República.

(Capítulo Primeiro do livro: Luiz Bacellar e sua poesia, do autor).

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