O seu primeiro livro
Frauta de Barro foi lançado em 1963, estreia do poeta aos 35 anos de idade. O livro saiu numa edição da Livraria São José, do Rio de Janeiro, cinco anos após a premiação ocorrida em 1959. Os originais foram preparados por Joana de Lima Teixeira, a Ninita, que estava no Rio e inscreveu também o livro ao Prêmio Olavo Bilac. O poeta que estava em Manaus ficou surpreso com a notícia e agradecido à sua noiva pela iniciativa. Bacellar não teve pressa em editar o livro. O ficcionista Francisco Vasconcelos (1933-2016) que exercia a presidência da União dos Estudantes do Amazonas e criara na instituição uma iniciativa editorial batizada de Edições Universitárias, convidou o poeta para inaugurar o programa com o seu livro premiado e ainda inédito. Havia muita curiosidade dos leitores em conhecer esse livro tão comentado, mas o poeta abriu mão do oferecimento e recomendou que, no lugar do seu livro, fosse editado o livro de estreia mais urgente de outro autor, o que em verdade sucedeu.
Ele se referia ao meu primeiro livro intitulado Barro Verde, que enfim foi lançado em 1961, fazendo ainda a sua apresentação nas dobras de capa, com um dos seus raros textos em prosa, e o desenho também único do meu retrato em bico de pena, lançado na página de rosto do volume. Seu texto chamou a atenção dos meios literários para aquele autor desconhecido, na imprensa de Manaus em artigo de um rodapé assinado por Ramayana de Chevalier (1909-1972), e do Rio de Janeiro, referido na apreciação crítica do poeta e crítico Walmir Ayala (1933-1991).
Após esse gesto de generosidade Frauta de Barro foi enfim editado com sucesso, merecendo várias edições. Para este trabalho consulto-lhe a 9ª. e a última edição ainda supervisionada por ele. Luiz Bacellar tinha obsessão pelo bom acabamento do seu trabalho. Nas novas edições dos seus livros mexia num verso e noutro, sempre à procura de um remate definitivo, trocava títulos, caçava dedicatórias, movimentava muito. Por exemplo, o Quarteto veio em várias edições com o título de Quatro Movimentos. Eu dizia a ele que assim estaria dificulta3ndo o trabalho dos seus exegetas no futuro. Ele só fazia sorrir como a revelar dúvida sobre se os seus versos iriam merecer futuro algum dia.
Já se referiu páginas acima que a sua forma de expressão preferida era o soneto. Assim palmilhava uma antiga tradição da literatura brasileira. Após o período revolucionário da arte moderna em 1922, no Brasil, em que predominou o verso livre, modo radicalmente inadaptável à sua harmonia e equilíbrio, o soneto foi relegado até a volta das formas fixas cultivadas pelos poetas da Geração de 45, vinte e três anos depois. Foi um movimento como que anunciado por representantes da segunda geração modernista, entre os quais estão o alagoano Jorge de Lima (1893-1953) e o carioca Vinícius de Moraes (1913-1980), autores dedicados ao verso livre nos poemas da fase negra e nordestina de Jorge de Lima e no momento transcendental de Vinícius. Mas ambos publicaram livros de sonetos de muita repercussão.
A Geração de 45, anunciada como algo novo pelo crítico e teórico do modernismo Alceu Amoroso Lima (1893-1983), restaurou o verso medido, na linha do pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999), do alagoano Ledo Ivo (1924-2012) e do português transferido criança para o Brasil e considerado paulista Domingos Carvalho da Silva (1915-2003), entre outros. O soneto ganhou então nova substância, numa visão do homem em paz com a vida e o mundo, liberto do farisaísmo que via no amor a fonte do pecado, a celebrar os valores humanos sem medo de viver, como num redivivo Renascimento.
Olavo Bilac em A Alvorada do Amor, por exemplo, recomendava a antiga postura aos seus leitores, associando o amor ao pecado:
e aprende a amar o amor renovando o pecado.
A sociedade da época da Geração de 45, além de viver uma nova forma de amor, muito bem demonstrada na poesia de Vinícius de Moraes, foi marcada por correntes existencialistas que permitiram uma nova concepção de humanidade, da experiência de Deus como fonte de liberdade e da reafirmação dos valores humanos, fatores de real influência na manifestação literária e da arte em geral no período.
É nesse momento que se localiza o projeto de Luiz Bacellar, ainda por sua obra constituir-se basicamente de sonetos, desde sua estreia com esse livro, constituído de vinte sonetos entre os quarenta e seis poemas nele reunidos.
Luiz Bacellar jamais concebeu o amor associado ao pecado, embora na sua visão o amor constituísse uma emoção de intensidade frágil e fluida. Nos quatro primeiros versos da primeira estrofe da Carta Pastoral, do Quarteto, ele anuncia:
O inútil canto escoa-se no tempo
e os bens do amor em sulcos se dispersam.
A morte há de chegar, seu frio beijo
de lábio em lábio pousará silente.
Era um sentimento inútil que se perdia no tempo. Os seus bens cheios de ranhuras, de fissuras, desconcentrados se espalham. E no fim vem a morte e toma o lugar do amor com o seu frio e silencioso beijo. Não deixa de ser uma forma de descrença no amor a provocar um frio na espinha, mas muito longe, no entanto, de uma associação ao pecado.
Frauta de Barro abre com uma série de três sonetilhos em redondilha maior, sob o título de Variações sobre um prólogo, em que o poeta anuncia o sentido e significado da obra e se define com as duas quadras seguintes:
Em menino achei um dia
bem no fundo de um surrão
um frio tudo de argila
e fui feliz desde então;
rude e doce melodia
quando me pus a soprá-lo0
jorrou límpida e tranquila
como água por um gargalo.
Os sonetilhos são seguidos cada um do seguinte dístico:
É o tema recomeçado
Na minha vária canção.
Vêm em seguida dez poemas denominados Sonetos de bolso, escritos em redondilha maior e, por isso, designados sonetilhos, posto o soneto ser em regra escrito em decassílabos ou alexandrinos. Têm por motivo esses sonetilhos os objetos que, no tempo da juventude do poeta, os cavalheiros portavam na algibeira e utilizavam todo dia, acompanhando-os a todos os lugares. Desses dez objetos, com muito esforço pode-se localizar, ainda hoje, uns poucos no uso das pessoas. Deles se conta excepcionalmente o lenço e a caneta-fonte. O cigarro está cada vez mais raro tal como acontece com os seus satélites, a caixa de fósforos e o isqueiro. Tornou-se raro, raríssimo, também, o uso do canivete, do relógio de bolso, do lápis, da caneta-fonte e do chaveiro. A porta níqueis é usada principalmente por algumas senhoras. O chaveiro ainda serve para o seu portador guardar as chaves de casa e do carro. Mas o celular veio para acrescentar uma peça a mais nos objetos de uso pessoal e desativar pelo menos dois desses objetos, o relógio de bolso e a caneta-fonte, na produção de texto.
Tudo isso passou, mas não passaram a atmosfera e o impulso de poesia gerada pelo uso dos objetos pessoais, quaisquer que sejam eles. O frio e a solidão em determinado momento das pessoas se compensam com a companhia dos simples objetos de uso pessoal. A expressão de poesia que lhe incute calor humano jamais se esfria com as mudanças provocadas pelos novos costumes. Os objetos celebrados pelo poeta já não nos acompanham nos dias em que vivemos, mas o sentido afetivo dos objetos de uso pessoal, estes ou aqueles, continua e permanecerá por mais algum tempo, mudem-se ou não se mudem as maneiras de ser e os costumes. Não passará igualmente, sobre eles, a poética bem implantada no idioma e na memória do leitor.
Leiamos uma das peças dessa sequência, o Soneto da caixa de fósforos:
Minha cápsula de incêndios,
meu cofre de labaredas!
Meu pelotão de alva farda
e altas barretinas pretas:
se só num níquel quem vende-os
lhes aquilata o valor,
teus granadeiros da guarda
não se inflamam de pudor!
Fiat Lux do meu verso,
símbolo vivo do amor:
qualquer fricção te incendeia,
te arranca estrelas de dor,
minha gaveta de chamas
com sementes de calor.
Depois dessa bela sequência, o livro abriga a parte intitulada Romanceiro suburbano, composta de poemas narrativos, romances e baladas, sobre fatos acontecidos nas adjacências da vida urbana de Manaus, alguns profundamente transcendidos da realidade como a Balada da Rua da Conceição.
Nessa série há uma balada em que o poeta conta um fato ocorrido no Bairro do Céu. Nada menos do que uma briga no clube Todos os Santos, entre Cristo, um jogador de futebol e Pedro, o porteiro do clube. Perguntado pelo povo o narrador conta que o Cristo é o carpinteiro e o Pedro o pescador do bairro. A coisa estava preta, rodava a capoeira e o rabo-de-arraia, brilhava a navalhada no ar, cantava o bufete no pé do ouvido, num fuzuê de dar gosto. Pedro já estava de olho inchado e o Cristo ferido. O motivo da briga foi uma comemoração do jogador Cristo, pela vitória por três a zero do seu clube contra o adversário. Bebera mais do que devia nos festejos da vitória e queria entrar na sede do clube infringindo o regulamento que proibia entrar-se na sede do clube embriagado. O porteiro Pedro não deixou e o pau cantou.
A história é bem um exemplo da vida ingênua que o povo leva e que sempre tem por perto um poeta atento para contar, usando a fala errada do povo, como diria Manuel Bandeira.
Escreve Luiz Bacellar no início da balada:
– Corre xente! Chega povo
qui Cristo briga cum Pedro!
– Aonde é isso?
– No Céu!
– No Céu? Esprique de novo…
– Tá havendo porrada grossa
no crube “Todos os Santo”.
Como se vê o poeta saiu-se bem do desafio de registar com rude realismo um episódio tão comum na vida de todo dia nas ruas da cidade, por este ou aquele motivo.
E por aí o poeta vai contando as histórias no seu romanceiro. Conta sobre as treze casas de fachadas parecidas existentes na sua rua, da vida no Beco do “pau não cessa”, que recebeu esse nome por seus moradores viverem brigando.
Cuida de tipos populares da cidade, como um fato funesto conhecido como Caso na Neca, a mulher que assassinou a irmã doente para ficar com a sua fortuna. Perante o juiz ela se salvou da prisão jurando que não matou a irmã:
“Quero que o dragão me pegue
se agora mentindo estou.”
Ela enganou o juiz, mas perante São Jorge Ogum ela se ferrou, conforme afirma o poeta. No igarapé dos Educandos, sob os olhos espantados das lavadeiras ela foi atacada por um enorme jacaré. A fera afundou com ela e boiou várias vezes para exibir Neca presa às suas gigantescas mandíbulas, até desaparecer com aquela embiara no fundo das águas.
Outro caso é o de Santa Etelvina, devoção do povo de Manaus que não se esquece de iluminar o seu túmulo no Cemitério de São João Batista, nos dias de finados. Etelvina de Alencar lutou por sua virgindade e acabou assassinada.
Lá pelas tantas do seu romanceiro o poeta afasta-se desses casos trágicos e registra um Torneio de papagaios14, e divulga uma Receita de tacacá.
Nesta parte do livro o poeta reúne sete poemas-piada, forma de poemas curtos adotada na fase iconoclasta do modernismo brasileiro. Esses poemas de Bacellar são sobre as paróquias de Manaus.
Diz sobre São Sebastião:
Não sei como é que as beatas
não se escandalizam
com aquele homem nuzão dentro da
igreja…
Balada da rua da Conceição é o mais longo poema do livro. Ocupa dez páginas, com ilustrações e notas de pé de página. O belo poema é lançado em redondilhos maiores em que o poeta imagina uma rua onde acontecem vários e inusitados eventos. A primeira notícia é de que vão acabar com a rua, derrubando as casas e as árvores. Na memória dos seus moradores está plantada a vida vivida naquela rua. O poeta dramatiza os fatos por meio da Conversa das mangueiras, que constitui o âmago do poema.
– Ah! Comadre tu te lembras
do molecório danado:
se um papagaio quedava,
nas folhas se encalhava,
os nossos galhos sofriam…
que os nossos galhos quebravam.
Dentre elas fala A mangueira casimiriana:
Ai que saudade que tenho
do tempo em que não sofria
reumatismo nas raízes
e não tinha cicatrizes
pelo meu tronco enrugado…
Tudo indica ser Casimiro de Abreu (1839-1860) o seu poeta romântico preferido, pela referência neste passo do poema e no prólogo ao Sol de Feira, onde faz mais uma vez alusão ao poeta de Meus oito anos.
As mangueiras falam ainda da história do cavalo e o espelho. Era um animal que vivia sem fazer nada por ter quebrado a perna, abandonado pelo antigo dono, perambulando embaixo das mangueiras. Um dia o cavalo manco entrou na barbearia da esquina e, ante o espelho de moldura enferrujada, depois daquilo que fora, dourado nos tempos idos, e viu a sua própria imagem projetada no espelho. Acontece que o pobre animal, não estava acostumado com aquilo e supôs que ali estivesse uma bela potranca. Aproximou o focinho do focinho da efígie no espelho e sentiu aquilo que jamais imaginou que fosse assim. O focinho da potranca era tão frio ao ponto de provocar no animal um bafio que embaciou o espelho. Com isso, a imagem daquilo que o animal sentia ser uma potranca se evaporou. Aí o bicho mudou de ideia. O cavalo desconfiou que fosse a alma penada do pai falecido há muito tempo que apareceu e sumiu. Persignou-se com um cruz-credo e, furioso, soltou um relincho que repercutiu pela tarde, seguido de um par de coices estraçalhando o espelho do pobre barbeiro que não tinha nada a ver com a visão ilusória do desventurado animal.
No final da balada, após a narrativa de vários episódios, como o da cabrita Rolimar que foi até artista de circo e vivia abandonada debaixo das mangueiras, dos urubus com os seus trajes de agentes funerários, da Vaca Cristina, os mamoeiros e a lavadeira, o poeta fica em dúvida se essa rua existiu de fato e, com uma saudade de pedra, ele confessa:
– Ó rua da Conceição,
que ficas perto dum cais
(Mas será mesmo que existe
essa rua na cidade?
ou é rua da concepção
no velho Cais da Saudade?)
Continua na próxima semana.
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14 Vertido para o espanhol por Pablo Neruda (1904-1973), com o título de “Torneo de Volantines”.
(Capítulo Segundo do livro: Luiz Bacellar e sua poesia, do autor).
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