Manaus, 16 de setembro de 2024

Luiz Bacellar e sua poesia (III)

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Nas feiras da cidade

Embora o poeta exercitasse os altos voos da poesia, Luiz Bacellar reservou no seu fazer literário espaço dedicado aos motivos da Amazônia, como se prestasse homenagem a terra onde nasceu, atitude revelada em poemas do seu livro de estreia Frauta de Barro, sobre aspectos da vida e da paisagem de Manaus e, em maior escala, no Sol de feira, seu último livro que é integralmente dedicado a esses motivos.

Para este trabalho consulto a edição princeps17 de Sol de Feira, das cinco realizadas com a supervisão do poeta. O livro recebeu o Prémio de Poesia do Estado do Amazonas, em 1968.

A coletânea traz uma referência musical explícita. Na abertura da série dos rondeis o poeta inscreve como epígrafe o fragmento da partitura de uma peça de Mozart, notações destinadas a violino e piano. Outro dado relevante é que o poeta, no processo de composição dos rondeis, reservou um bom período de tempo à pesquisa, visitando as feiras da cidade, o velho mercado municipal de Manaus e consultando trabalhos técnicos sobre o valor fármaco e alimentício desses produtos.

Das quarenta e oito espécies que compõem o livro, frutas, raízes e favas, vinte e três são nativas da floresta amazônica, tais como o marimari, a sorva e o tucumã. Outra parte é destinada a elementos nela aclimatados como a fruta-pão, a manga e o figo.

A forma eleita na elaboração do livro são os sonetinhos ou rondeis como os batizou o poeta, com catorze versos e a soma de setecentos versos na conclusão da obra. Na abertura do livro consta um Anúncio vazado em oito versos octossilábicos, numa referência ao interior amazônico, fonte de produção desses alimentos. Em seguida vem um Prólogo, vazado em vinte e um versos também octossilábicos, com que o poeta invoca os poderes do ente helênico de Pomona, deusa dos pomares e da fartura, para ajudá-lo a levar a bom termo o seu trabalho. Refere-se, ainda, a Casimiro de Abreu, naquilo em que os dois se irmanam sob o ritmo da redondilha e da nostalgia da infância. O metro escolhido na maioria é a redondilha em tetrassílabos, entremeados com rondeis lançados em octossílabos. Os quarenta e oito poemas de que é composto o livro, não contando aí o Anúncio e o Prólogo, distribuídos em grupos simétricos relativamente ao metro, é constituído de quatro sequências de divisão imaginária de doze poemas, onze em versos tetrassilábicos e o último em octossílabos, de forma que a série de rondeis se inicia com tetrassílabos e encerra com octossílabos, modo com que conclui também o livro. Como se vê o livro contém a predominância de versos de quatro sílabas e apenas quatro em versos de oito sílabas.

Os quatro poemas lançados em versos octossilábicos, como que se projetam do contexto geral do livro, contendo o dobro de sílabas e cuidam de espécies destacadas no panorama dessas frutas. São quatro pomos mais apreciados da floresta amazônica, guardando no gosto o valor alimentício excepcional de cada um, o açaí, o tucumã, a pupunha e a castanha-da-Amazônia. São frutos produzidos por três palmeiras medindo por volta de vinte metros de altura e uma árvore gigantesca, plantada entre as mais robustas da floresta amazônica.

O tucumã é um coquinho consumido na polpa, rico em ômega 3, 6 e 9, usado na indústria de cosméticos, bons para a pele e contra a queda de cabelos, que consumida como alimento beneficia o controle do diabetes. No interior come-se o tucumã acompanhado de farinha d’água, feita de mandioca amarela. Em Manaus ele é preparado de várias formas como sanduiches e pastas servidas com torradinhas em coquetéis.

A pupunha, além de proteína, é fonte de vitamina A e excelente na produção de palmitos, fantástica para cozida acompanhar o café e, em casos raros, compor com o quiabo, o maxixe, o jerimum e a batata, num suculento cozido de pirarucu seco.

O açaí, de sua vez, é também usado na indústria de cosméticos e de alimentos, rico em fibras, proteínas e lipídios. No interior toma-se o açaí com farinha de tapioca e açúcar. Minha mãe gostava dele sem açúcar.

E, por último, a castanha-da-Amazônia, miliardária em selênio, fonte de magnésio e vitamina B, que é consumida verde ou torrada e o seu sumo, o leite de castanha, feito em pirão, se harmoniza com uma fatia de lombo de pirarucu seco assado na brasa.

São elementos essenciais adicionados aos alimentares e os fármacos, razões que levaram, sem dúvida, o poeta a distingui-los com um tratamento de destaque, nos versos de arte maior.

Bacellar era dado a estudos de numerologia, tendo, portanto, a organização numérica do livro um sentido mágico, além da acepção puramente matemática, no ideal da harmonia e do equilíbrio, digamos assim, do comportamento estético.

Vejamos alguns traços da organização numerológica de Sol de Feira. Com exceção do Prólogo, escrito em redondilha maior, isto é, versos de sete sílabas, em três estrofes de sete versos cada uma, somando o número de vinte e um, tudo o mais está em versos dominados pelo número par, quatro e oito sílabas. As estrofes estão distribuídas em números pares de oito e seis versos em duas estrofes. O Anúncio, primeiro poema do livro, está escrito em octossílabos e lançado em uma única estrofe composta de oito versos.

Dizem os numerólogos que o número par concentra tudo aquilo que conseguimos encontrar parecido conosco, de forma imediata ou distanciada. O par é ainda um número que indica nas pessoas o predomínio da influência do ser feminino, elemento representativo da legião materna.

Sua preferência pelos números na organização dos seus livros teve influência pelo verdadeiro fascínio que exercia sobre ele o sentido mágico dos números na Divina Comédia de Dante. Ainda por isso era um dos seus autores preferidos. A estrutura desse poema é fundamentada no número três, a partir dos três livros e dos tercetos com que é escrito, tal como os harmônicos blocos de pedra com que são construídas as catedrais góticas. A ideia possui a substância lendária de que a retirada de um desses blocos de pedra ameaçaria o equilíbrio de toda a construção, o mesmo que aconteceria ao poema de Dante, se dele fosse saqueado um terceto sequer.

As rimas dos tercetos dantescos obedecem à ordem de ABA – BAB – ABA e assim por diante. As rimas por sua vez compõem a sucessão de sons na tessitura de cada canto e perderiam o sentido se da estrutura do poema fosse retirado um único dos tercetos sequer. As rimas enlouqueceriam e o poema seria ferido de morte no coração. De ABA – BAB – ABA, tirar-se-ia o terceto BAB. Então, nesse momento, nesse passo do poema dar-se-ia o esquema ABA – ABA, fato que alteraria todo o sistema de rimas e mais, simplesmente, destruiria a unidade rítmica de uma parte essencial do poema, transformando-a num bestialógico.

Os blocos de pedra das catedrais góticas, configuradas por alvenarias simétricas em cada pormenor, são todos assinados pelo artesão implantador de cada um deles na estrutura da obra. A informação corrente é a de que tal procedimento era um modo de assegurar, no fim de cada dia de trabalho, a remuneração dos operários pelo mestre de obras responsável na construção. Ou, quem sabe, o costume visasse à personalização das peças em trabalho tão importante quanto às bênçãos das luzes do sagrado, luzes que iluminaram a alma do poeta ao escrever o poema.

O sentimento do artesão gótico também inspirou Dante na elaboração de sua Comédia. De tal forma que os pósteros a batizaram de Divina.

Afinal o número três, que organiza o suporte dos cantos dos três livros da Divina Comédia, é um algarismo essencial na organização do mundo, visto no medievo com a Santíssima Trindade, concepção cristã do entendimento de Deus. Outros elementos dessa realidade são as três partes do corpo humano e, modernamente, os três poderes do Estado Democrático, para ficar em apenas três exemplos.

Além de andar sempre atento a todos esses dados, Luiz Bacellar aproximava a poesia dos mistérios da magia, duas formas subjetivas, a poesia e a magia, muito próximas na expressão da realidade do mundo.

Inúmeras vezes ouvi o poeta afirmar que escrevia para ser lido, ao contrário de outros que dizem escrever para transformar o mundo, para amar e ser amados, para despertar nos homens bons sentimentos e coisas tais. Nada disso. Dizia ele com a maior simplicidade deste mundo que escrevia para divertir o leitor. Assim se vê em sua obra repleta de lances surpreendentes como se com isso quisesse livrar o leitor do bocejar casual ante um texto maçante. Aqui e ali nos seus poemas estrelam metáforas instigantes. Por vezes ele vai com suavidade e explode em seguida com imagens mais ousadas, como se encontra no primeiro poema deste livro, o Rondel I ou da pitanga:

Gracioso arbusto
de folhas breves
todo adornado
de frutas leves

tudo calmo até detonar nos versos seguintes:

como as caboclas
do meu torrão
e as cordas loucas
do meu violão.

Enfim o Rondel encerra com entusiasmo:

rubras miçangas
rubis talhados
de viva cor
sois vós pitangas
cristalizados
beijos de amor.

Os temas do poeta pairavam na linha dos mais altos sentimentos e dos conflitos da condição humana. Os motivos da Amazônia em sua poética surgem mais assiduamente neste Sol de Feira, o seu último livro. Bacellar celebra as frutas e a natureza amazônica, a poesia dos ares, da luz, dos perfumes, dos sabores. A textura dos poemas desse livro se aproxima de uma paisagem de Monet (1840-1926).

Sua poesia é como um céu noturno cheio de estrelas, um pano de azul profundo tecido de metáforas. Não as metáforas de fatura suada e construídas sem a habilidade dos verdadeiros artistas. Há textos intoxicados de metáforas, casos que nem se aproximam dos poemas de Luiz Bacellar. As suas metáforas são espontâneas e sóbrias e, nem por isso, menos brilhantes e vívidas, como se vê ao longo do Sol de feira.

No Rondel III ou da graviola, escreve o poeta:

graviola, posto
que viola grave,
de aroma e gosto
de arpejo suave;
em vindo agosto

que a chuva lave
teu verde rosto
pra bicos de ave;

pevides breves
na polpa, neves
de arminhos reais,
são semibreves
desses teus leves
sons palatais

A graviola não é nativa da Amazônia. Está entre as aclimatadas. É natural das Antilhas e de origem silvestre. É vasta a lista dos benefícios fármacos procedentes da graviola. O poeta, no entanto, atém-se aos sons da palavra, as cores e o gosto da fruta. Divide a palavra em dois substantivos, grave e viola. O instrumento viola, por sua vez, produz sons agudos e graves, mas pode ser como unidade gramatical um verbo, verbo violar, violar no sentido de infringir uma norma legal ou, num sentido metafórico, no ato de tocar viola.

No contexto do poema ela é apenas o instrumento viola. O arpejo suave da viola traz o gosto, igualmente delicado e doce do miolo da graviola, mais suculenta com as chuvas de agosto, até para alimentar as aves que a bicam e pipilam de alegria. As sementes da fruta repousam na polpa alva como a neve dos arminhos reais, ao mesmo tempo em que produzem os ritmos mais intensos e extensos das semibreves, no sabor e nos sons palatais. O poeta converte a fruta num instrumento que, por fim, domina o texto com o seu som grave e suave.

Um fino sensualismo acrescenta o componente humano a esses poemas. Os textos estão crivados de desenhos feminis. Há alguns que obedecem a toda uma escala circunstancial de tempo do seio feminino.

Vai do

pardo mamilo
da cunhantã (sapoti),

passa pela

teta amorosa
de adolescente (abiu),

até chegar

na mama fria
de bugra avó (jenipapo),

semelhanças anotadas com extremo domínio formal, diga-se de passagem.

Ainda nesta linha observa-se o aspecto da referência culta em sua poesia, ao festejar no Rondel VII ou do limão, mais uma imagem de feição feminina:

chega o limão
ácido e raro
seivoso e claro
como o verão
o Poeta di-lo
cúpido e ardente
túmido e olente
verde mamilo.

Em nota de pé de página o poeta esclarece que a imagem desse último verso, foi captada do Nono Canto, estrofe cinquenta e seis, versos sete e oito de Os Lusíadas. Desde o quinto verso desse Rondel, ao grafar a palavra com inicial maiúscula, insinua que ali faz referência a um grande poeta. Os versos referidos estão na seguinte forma:

Os formosos limões ali cheirando
Estão virgíneas tetas imitando.

As miniaturas sempre agradaram o poeta Luiz Bacellar. Vem isso desde a sua estreia com os sonetos de bolso, escritos em arte menor e saídos em Frauta de Barro. São sonetos tão pequenos em termos materiais que podem caber dentro do bolso. Escreveu séries de hai-kais, o exemplo mais expressivo da miniatura em arte poética, que examinaremos páginas à frente no seu Crisântemo. Os rondeis deste livro já constituem uma excelência em arte menor, posto formarem na maior parte sonetinhos distribuídos em duas estrofes de oito e seis versos tetrassilábicos. A miniatura vigora, ainda, neste exemplo, no espírito de como o poeta festeja o marimari que é uma fruta nativa dos igapós, um acidente geográfico exclusivo da Amazônia. O marimari possui a constituição de um ingá cipó somente no contorno externo, com as suas sementes cobertas de uma polpa mínima de cor verde adocicada, envolvendo sementes em forma de pequenas moedas. A polpa do ingá ao contrário é branca e o seu caroço é escuro, comprido e arredondado, nesse ponto, portanto, bem diferente do marimari.

Leiamos o Rondel XI ou do marimari:

marimari
em longas trilhas
do tenro limo
doces pastilhas
como obras-primas,
encadernadas
de veludinho,
enfileiradas

nos seus alvéolos,
iguais freirinhas
verdes, deitadas
nas suas celas
arrumadinhas
e separadas

Continua na próxima semana.

_________________

17 Editora Umberto Calderaro, Manaus, 1973.

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