Nas feiras da cidade – Continuação
Os caroços do marimari ele aproxima de pastilhas; na organização das sementes dentro da casca o poeta vê livros de obras-primas encadernadas de veludinho; vê as sementes em seus casulos iguais freirinhas deitadas em suas celas, bem arrumadinhas e separadas. Tudo no diminutivo.
No final da primeira sequência, no último dos doze, vem um rondel composto de versos octossilábicos. É o rondel XII ou do açaí. Ainda pela medida dos versos em arte maior, aí o ritmo é mais solene, as imagens mais largas a revelar um tom romântico principalmente nos seus últimos três versos, ao contrário da gradação neoclássica marcante na realização do livro. O poeta celebra a soberania do desenho da palmeira, cujas palmas servem também para compor o abrigo das pessoas, com sua haste elegante e flexível ao vento. O vinho do açaí, nesse poema, é servido em cuias fartas e possui a cor vermelha dos césares, que evoca os deuses áticos. E termina com um tom de melancolia:
qual uma verde chama além
por sobre os lagos da saudade
– passam murmúrios de orfandade
mas teu perfil só evoca o bem.
No primeiro poema da segunda sequência de doze vem o rondel XIII ou do taperebá. Em estilo terso e rigoroso ele se irmana a esses elementos, aproximando-os e jamais abandonando as entidades da mitologia grega. Aí refere-se a Zeus e Dânae, a árvore gigantesca do taperebá e seus frutos maduros como chuvas de ouro:
gotas de oiro
e ao refresco deles extraído:
Zeus, a hora amena,
no colo mana e
flui da serena,
silente Dânae.
Refere-se ao episódio da mitologia grega que envolve essas figuras do mundo pagão. Zeus penetra na torre de bronze onde o pai de Dânae, filha de Acrísio, rei de Argos, a mantem presa e, transformado em chuva de ouro, inventa um filho, contrariando a vontade do pai de Dânae.
Observem-lhe as rimas dos versos (no colo mana e) com (silente Danae), onde se vê quanto é constante no poeta o domínio da técnica literária.
É mais um exemplo da poesia contagiada por elementos culturais de um processo sincrético de herança primitiva indígena com a greco-romana, forma de autêntico panteísmo tão presente desde Tenreiro Aranha, marcando a poesia praticada no Amazonas desde o seu início.
Mas o poeta se distancia dos motivos de sua fala. É como se ele estivesse apreciando esse mundo de fora dele e fosse um visitante privilegiado. Ao celebrar o taperebá sob as árvores que quando adultas ficam gigantescas, está seguro de não afundar os pés no lodo que se derrama embaixo dos taperebazeiros, repleto de frutos apodrecidos contaminados pelo dejeto dos animais que o visitam, em busca de alimentos.
Em seguida, ao celebrar a flor de outra planta no rondel XVI ou do maracujá, o poeta se irmana ao romântico brasileiro da segunda geração Fagundes Varela (1841-1875) e o romântico tardio Catulo da Paixão Cearense (1863-1946), que celebraram a flor de maracujá. A cor da paixão é o vermelho do ponto de vista da sensualidade. O violeta que é uma cor medianeira entre o vermelho e o azul, como intermediação do equilíbrio entre o céu e a terra18, representa igualmente a paixão, mas a paixão de Cristo, que, enfim constituiu o momento extremo da aproximação entre o céu e a terra.
É por isso que diz o poeta:
e porque a Hora
da Remissão
não passará
és passiflora
flor da paixão,
maracujá.
O poeta faz referência explícita ao trabalho do amazônida, com os elementos mais característicos dos meios de sobrevivência e os seus instrumentos. A mandioca é um subsídio fundamental na dieta amazônica. O seu consumo traz alegria nas festas do povo. Luiz Bacellar conta como isso acontece, no rondel XVIII ou da mandioca:
Manimani19
teu corpo branco
esfarelado
no caititu
chora espremido
no tipiti
lágrimas vivas
do tucupi
depois no tacho
dança lundus
cateretês
todo doirado
dança emboladas
de amido e luz
Manimani já é uma invenção do poeta no vezo de compor palavras como fez na Onde anacreôntica. Há mais um produto extraído da mandioca chamado tarubá. Possui teor alcoólico e usado em rituais indígenas, mas os amazônidas a usam em suas festas e impulsionam os dançadores aos lundus e cateretês como demonstra o poeta. Uma festa das boas.
São muitas as referências à dança nos rondeis de Luiz Bacellar. Cateretê é uma dança indígena brasileira, de influência africana; o lundum é uma dança do povo angolano introduzida no Brasil pelos escravos. O poeta usa essas danças para celebrar a mandioca e no rondel XXXIX ou do araticum. Outras danças aparecem ainda nesses versos. No rondel XLIII ou da cana, o poeta compara as bandeiras do canavial ao vento à pavana, uma dança de casal em ritmo animado e que ao passar do tempo ficou lento. É uma dança europeia antiga e corrente no Renascimento:
cana – colete
rolete – cana
danças na rua
tua pavana
No rondel XLV ou da mangarataia, menciona a valsa, uma das mais célebres danças de salão, originária da Áustria e Alemanha, introduzida no Brasil pela Corte Portuguesa. O poeta põe em contraste essa raiz que se mostra como uns pés acostumados a viver descalços e, por isso, sem a mínima condição de valsar:
qual pé de bugre
que nunca viu
botina alguma
e nem calçou
meia de seda,
nunca valsou
nem passeou
na alameda
Há inúmeras referências aos motivos amorosos como se vê no rondel XL ou da goiaba:
o doce sumo
de tua polpa
lembra a saliva
de uma cabocla
sem deixar de construir uma divertida rima toante entre as palavras polpa e cabocla.
Ainda estimulando a imagem de um beijo identificado no rondel XLVII ou do araçá:
redonda fruta
que no perfume
lembras o cântico
de Salomão,
o rei-poeta
comparar-te-ia
à boca fresca
de Sulamita
Olhem aí mais uma ardilosa rima toante entre comparar-te-ia com Sulamita.
Entre tantas delícias encontra-se mais esta concentrada no rondel XXI ou da jaca:
jaca: entre as frutas
eis a matrona,
esparramada
gorda sultana;
com frouxos bagos
flácido aroma
dá visgo aos lábios
de quem a coma
seu jeito lembra
as contorções
moles, lascivas
dos ventres nus
das odaliscas
no harém cativas
Era um dos ídolos de Luiz Bacellar o genial poeta barroco D. Luiz de Gôngora (1561-1627). Muitas vezes tive a dita de ouvi-lo dizer sonetos do grande cordobês, entre os quais ele sempre repetia aquele em que Gôngora canta Córdoba que se inicia com os seguintes versos:
!Oh excelso muro, de torres coronadas
De honor, de majestad, e galhardia!
Enfim Gôngora foi um dos seus mestres, do cultismo também identificado em Sol de Feira. O cultismo20 enfim caracteriza-se por um estilo eivado de termos cultos e preciosismo vocabular. Há momentos em que se mostra como um jogo de palavras. O que atrai o leitor contemporâneo em Luiz Bacellar é o jeito que ele usa das formas consagradas no passado na construção dos seus versos. No rondel IV ou da banana encontram-se traços de tal procedimento com um sabor de espontaneidade exemplar:
onde a banana
doce crisálida
dorme? Na verde
rede da casca:
no cacho oclusa
tão mansa e inerme
tão paquiderme
musa reclusa;
Enfim, por mais que me tenha esforçado, não encontrei nos quadros da literatura brasileira, nenhum exemplo de livro com a qualidade artística, a unidade estética e o engenho criativo do Sol de Feira de Luiz Bacellar.
É um livro único.
18 BECKER, Udo (1957), Dicionário de Símbolos, Paulus, São Paulo 1999.
19 In Nheengatu Rupi (Vocabulário Miri), Carta Pastoral lançada em 1909 por D. Frederico Costa, Bispo Diocesano de Manaus: “Mani era a filha única e querida de um tuxaua; boa e benfazeja era com todos. Quando morreu, todos a choraram e de sua sepultura brotou a maniva (Mani aua – Cabelo de Mani) cuja raiz chamou-se Mandioca (Mani-aca – chifre de Mani)”..
20 A Poesia Lírica cultista e conceptista (autores portugueses), coleção de poesias do século XVII, principalmente de “Fénix Renascida”, com prefácio e notas de Hernani Cidade, Lisboa 1958.
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