Manaus, 11 de julho de 2025

Mano Jorge

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*Sylvia Aranha de Oliveira Ribeiro

Biografia de Dom Jorge Marskell

Continuação…

CAPÍTULO 9

RELACIONAMENTO COM O POVO: UM HOMEM SERVIDOR

Miguel O’Kane em uma de suas entrevistas, falando de Jorge, afirmou: “Jorge nunca foi um Bispo do povo. Ele foi Bispo com seu povo”. Com isso queria dizer que Jorge se identificava com o seu rebanho. Fé e vida estavam intimamente ligadas na sua ação; por isso desejava ardentemente pôr em prática a palavra de Jesus: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10, 10).

As pastorais sociais estabelecidas na Prelazia não tinham outra finalidade. Certamente, Jorge pensava como João Paulo II quando afirmou:

Ainda que imperfeito e provisório, nada do que se possa realizar mediante o esforço solidário de todos e a graça divina em dado momento da história para fazer mais humana a vida dos homens, nada se perderá ou será inútil (Texto citado no documento de Aparecida, p. 181 – CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO, 2007).

Assim surgiram as pastorais da saúde, da mulher, da criança, do menor, da família, da juventude, pastoral operária, indigenista, carcerária, a Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Uma das pastorais sociais que recebeu maior atenção da Prelazia pela amplitude do seu campo de ação foi a Pastoral da Terra, iniciada no Amazonas em 1975. Após ter participado do encontro da CPT em Goiânia, Jorge trouxe a ideia de implantá-la no Amazonas.

Por meio dessa pastoral, a Prelazia realizou um trabalho de conscientização e organização dos trabalhadores rurais em vários municípios, apoiou e animou os ribeirinhos na sua luta em defesa dos rios e lagos, luta pela vida.

Na defesa dos direitos do povo lavrador e ribeirinho, dos povos indígenas, muitas vezes Jorge entrou em conflito com forças poderosas como a Companhia Mineradora Paranapanema e a Eletrobras e Eletronorte, no município de Presidente Figueiredo.

Quando, em 1991, a Right Livelihood Awards Foundation anunciou que o Prêmio Nobel Alternativo fora atribuído, entre outras entidades e pessoas, à Comissão Pastoral da Terra (CPT) e ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), a pessoa escolhida pela CPT para recebê-lo em Estocolmo, Suécia, foi Dom Jorge Marskell, que acompanhou ativamente a CPT durante anos, como coordenador e vice-presidente da entidade.

Os encarcerados também receberam atenção especial de Jorge, não porque justificasse seus erros ou os achasse isentos de culpa, mas porque os considerava também vítimas de uma sociedade sem compromisso com os mais pobres, os analfabetos, os portadores de deficiência mental, os oriundos de famílias desintegradas.

Ia visitá-los no presídio sempre que podia e levava-lhes uma palavra de esperança, porque acreditava no que Jesus disse: “Eu estava na prisão e foste me visitar” (MATEUS 25, 36). Tinha confiança na misericórdia de Deus, capaz de recuperar o pecador.

Para garantir assistência material e espiritual aos presos, iniciou a Pastoral Carcerária que chegou a ter umas quinze pessoas, orientadas pelo padre Dionísio Kuduavicz.

Antes de sua viagem para a cirurgia no Canadá, os internos conseguiram licença para participarem da missa na Catedral, fato que ocorria nas principais festas religiosas. Após a missa, o ônibus que levava os detentos parou na porta da casa de Jorge, que estava na cama, já bem doente. Como os internos quisessem despedir-se dele e não foi permitido que descessem do ônibus, Jorge levantou-se, foi até eles e cumprimentou-os um a um com um aperto de mão.

Neste capítulo não poderia deixar de inserir o artigo de Marília Menezes, das Irmãs

Adoradoras, pela sua beleza e profundidade:

Ele me conhece…

Tenho tido o privilégio de trabalhar nestes três anos mais recentes de minha vida – desde 1996, como Secretária da Prelazia de Itacoatiara, Amazonas, e por isso pude conhecer um pouco melhor o povo ou o rebanho do Bispo Jorge Marskell, que faleceu este ano, a dois de julho, após ter passado quase vinte anos como bispo desta Prelazia.

Conto, por isso mesmo, o seguinte: quando eu ia acolher, à porta da frente da ‘casa do Bispo’, as pessoas que desejavam falar com Dom Jorge, elas imediatamente me diziam: ‘Ele me conhece’, e, quando eu parecia surpresa, elas logo me contavam tal e tal ocasião de suas vidas na qual se tinham conhecido, e de como esse fato marcara suas vidas para sempre.

Certa ocasião, ano passado, eu disse a nosso querido bispo: ‘Dom Jorge, eu vou escrever um artigo sobre o Senhor, intitulado assim:

‘Ele me conhece’. Ele perguntou o porquê, e expliquei: É porque pessoas incontáveis que querem falar com o Senhor me dizem, como um direito recebido, e que elas adquiriram:

‘Ele me conhece’.

Notei ainda que esse fato de serem conhecidas, tinha uma reciprocidade, porque muitas pessoas costumavam dizer-me: ‘Eu o conheço muito bem’.

Quando nosso bispo já estava muito doente devido ao câncer que lhe roubou a existência após seis meses de cruéis padecimentos, ele não podia receber visitantes, por motivos médicos, como o fez, cada dia, durante cerca de uma hora, em Itacoatiara, durante um mês, até a véspera de sua morte. Uma senhora que veio vê-lo, com um menino, ficou desgostosa com essa proibição, e me pediu: ‘Por favor, Irmã, deixe-me entrar ao menos na porta do quarto dele. Logo que me enxergar, mesmo de longe, ele me chamará, porque ele me conhece’.

Hoje eu reflito: Essas pessoas que desejavam ver Dom Jorge dizendo ele me conhece e eu o conheço, não percebiam, talvez, o profundo significado desse ‘Conhecimento’.

De fato, essa frase ‘ele me conhece’ era e é, em relação a tantas pessoas que amavam seu bispo, e agora choram sua ausência, uma manifestação do grande amor de Dom Jorge por seu povo, ‘sua família’ – como ele disse em uma entrevista a um jornal de Manaus. Era e é um sinal de sua preocupação com seus problemas, um cuidado exis- tencial para com cada pessoa. Era e é um conhecimento baseado no amor de Jesus, o Bom Pastor que disse: ‘Eu sou o Bom Pastor: eu conheço minhas ovelhas, e as minhas ovelhas me conhecem’ (JOÃO 10, 14).

Termino este artigo como Dom Jorge gostava de fazer, isto é: com uma história: Durante a doença do nosso bispo, um jovem veio vê-lo. As visitas tinham sido muitas – cerca de cem pessoas, e tínhamos sido obrigados a suspendê-las, porque Dom Jorge estava muito cansado. O jovem insistiu comigo:

‘Irmã, deixe-me entrar para vê-lo, porque ele me conhece. Quando eu estava na pri- são, ele foi me visitar, conversou comigo, apertou a minha mão através das grades. Agora eu estou livre, e já estou trabalhando. Ele ficará feliz em me ver, porque ele me conhece’.

Os idosos e doentes também eram muito amados por Dom Jorge. Ele ia visitá-los em casa, levava a co- munhão aos que pediam e lhes ministrava a unção dos enfermos, colocando com carinho as mãos sobre suas cabeças.

Dom Jorge abençoa os idosos na Catedral de Itacoatiara – AM.
Fonte: Scarboro Missions – janeiro de 1999.

 

Dom Jorge dando a comunhão para um idoso enfermo.
Fonte: Scarboro Missions – janeiro de 1999.

Em uma das viagens a comunidades do Arari tive ocasião de acompanhar Dom Jorge em sua visita a uma mulher hanseniana.

Morava sozinha num tapiri de um só cômodo. No quarto só havia rede e no chão um pequeno fogão feito de tijolos onde ela mesma fazia sua comida. Seu único filho morava distante e não ia vê-la com a frequência devida.

A mulher tinha mãos e pés já deformados pela doença e eu pude ver, com admiração, Dom Jorge apertar sua mão e abraçá-la. Enquanto eles conversavam, o motorista do barco, Antônio, foi até a beira do rio para encher d’água uma lata grande, que trouxe e depositou no quarto.

Depois de breve oração, Dom Jorge abençoou-a e saímos em silêncio.

E os jovens? Também tinham um lugar especial no seu coração de pai. Vários deles, passados tantos anos, lembram-se ainda do interesse de Dom Jorge pela Pastoral da Juventude e como desse trabalho realizado com os jovens surgiram muitas lideranças que continuam atuando na sociedade e na Igreja.

Uma das coisas surpreendentes na vida de Dom Jorge era o seu hábito de visitar as famíias em suas casas. Depois de sua morte, até o dia de hoje, encontramos inúmeras pessoas que contam as visitas que recebiam do bispo. Só um imenso amor pelo seu rebanho é capaz de explicar como achava tempo para ir às casas, apesar do acúmulo de trabalho.

Menino segurando bacia com água retirada do rio para ser usada no batismo.
Fonte: Comunidade do Arari 1979.

 

Continua na próxima edição…

*Sylvia Aranha de Oliveira Ribeiro, nascida no Rio de Janeiro em 1930 e criada em São Paulo, formou-se em Filosofia e Pedagogia, obtendo um mestrado em Filosofia da Educação. Em 1977, mudou-se para Itacoatiara como missionária leiga, trabalhando na Prelazia com comunidades eclesiais de base e na formação de lideranças populares. É cofundadora da Associação Dom Jorge Marskell (desde 2001) e membro da Academia Itacoatiarense de Letras.

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