Manaus, 21 de novembro de 2024

Nuances da sustentabilidade: visões fantásticas da Amazônia – Abya Yala IV – Texto 4/6

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Abya Yala e a sustentabilidade transgressora: vida, utopias e esperanças

Abya Yala: em busca de uma identidade

“Abya’ Yala brasileira e pan-americana”, somos uma única entidade cultural e territorial. Minhas representações materiais e simbólicas continuam despertando crescente interesse nacional e internacional. Tenho participação estratégica nesta Era global da sustentabilidade. A compreensão da complexidade das minhas culturas e ecologias assim como a construção de propostas para preservá-las, conservá-las e desenvolvê-las com modelos sustentáveis, não estão limitadas pela minha natureza, mas pelas culturas, ou por fatores que delas dependem. A busca do meu desenvolvimento sustentável, que parece não ter fim, sofistica-se em mesma medida que os direitos de cidadania de minhas populações regionais transformam-se em sonhos inatingíveis. Mas, percebo que o capitalismo ainda não tem alcance heurístico para me transformar em commodity sustentável, conforme seus interesses econômicos. As ciências físicas, a química, a biologia, a geociências, as ciências humanas e as tecnologias, por limitações ontológicas, não conseguem apreender todos os meus mistérios e segredos. O mercado e as ciências econômicas continuam insistindo numa sustentabilidade dissociada de minhas concepções, transcendências e realidades existenciais.

Atualmente, consolida-se a possibilidade em se fazer uma “cartografia” minuciosa sobre as condições de funcionamento de meus ecossistemas, submetendo-os à vontade humana. Os pesquisadores inventam indicadores ecológicos para avaliar, prevenir mudanças e diagnosticar as condições operacionais de meus ambientes. Estes indicadores apresentam informações chave sobre a estrutura, o funcionamento e a composição do sistema ecológico, embora ainda não consigam apreender as suas complexidades. Os cientistas não compreendem que minhas naturezas têm funções múltiplas. Elas geram nossas alimentações e habitações, curam as nossas doenças físicas e espirituais, são protagonistas de nossas relações e transcendências entre o mundo material e celestial, e nos ensinam a interagir e compartilhar os sentimentos nobres. Os modelos analíticos da ciência moderna não têm alcance teórico ou empírico para apreender a complexidade de nosso mundo vivencial. Os nossos “ser, estar e relacionar” são mutilados e desfigurados em seus estudos e aplicações. Classificam o meu universo como sendo povoado por entidades orgânicas e inorgânicas, vivas e mortas. Os estudiosos e os meus agressores têm que compreender que todas as minhas diferentes partes são vivas e entrelaçadas entre si, pulsantes e em contínuas transformações.

Os governantes e os gestores brasileiros têm me negado o direito de reunir o conhecimento acumulado pelos meus povos numa Universidade Intercultural. Esta instituição poderia ser implantada no Estado do Amazonas, terra de minhas mães, e morada de mais de 70 povos indígenas totalizando mais de 490 mil parentes. Importante que ela esteja centrada em três pilares: o ensino e a pesquisa em nossas línguas, a valorização e respeito aos nossos territórios, e às nossas relações físicas e espirituais com as naturezas terrestres e celestes. Certamente, nossos povos têm conhecimento acumulado para compartilhar com a humanidade; podemos aperfeiçoar a gênese e o sentido da noção de sustentabilidade.

Em função do que apresentei neste e nos dois artigos anteriores, as tentativas em institucionalizar mecanismos que possibilitem monitorar as minhas naturezas, medir as tensões normais e antropogênicas a que as mesmas estão submetidas, apesar de apresentarem avanços técnicos, não tem sido eficazes como ferramentas de planejamento e administração de políticas públicas sustentáveis. A ausência de uma linguagem científica sistêmica e integradora que articule os processos da natureza aos da cultura, em todas as escalas, continua sendo o principal problema e entrave dessa dimensão da sustentabilidade. Em nossas próprias abordagens e linguagens, os meus povos indígenas conhecem as respostas para esta questão que dificulta a emergência da sustentabilidade plena.

Constato que, em geral, o discurso oficial e burocrático projeta o desenvolvimento sustentável numa dimensão essencialmente ecológica, dissociando-o da cultura e da tessitura social. No limite, quando ele imprime historicidade a esta noção, refere-se às “gerações futuras”, expressão ambígua e fluida e que se molda a todas as projeções temporais futuras. A pressão de segmentos da sociedade organizada dos países desenvolvidos induziu a criação do conceito “socialmente responsável”. Operacionalizar este conceito por meio das empresas e indústrias exige relatórios e atitudes, dando conta das consequências sociais e ambientais de suas atividades. Espera-se com esta iniciativa, diminuir os riscos e ampliar as suas contribuições para o aperfeiçoamento da sociedade e à preservação do meio ambiente. Mas, alerto que a falta de mecanismos de controle social sobre as empresas e a possibilidade de redução em seus lucros conspiram contra esta iniciativa técnica e política, que ainda se encontra ausente em minhas culturas e territórios. A crescente comercialização de produtos oriundos da destruição de minhas naturezas e ecologias ainda é incentivada por estes grupos empresariais, perenizando diversos processos destrutivos em meus domínios.

Acompanho, com interesse, a discussão sobre desenvolvimento sustentável. Fatores internos às políticas de desenvolvimento dos países industrializados, em conjunto com várias ações próprias do processo de expansão da cultura ocidental, contrapõem-se ao paradigma do desenvolvimento sustentável. A exportação de suas indústrias poluidoras para os países periféricos, a imposição de uma regulamentação ambiental inadequada aos países subdesenvolvidos e a posse e controle de grandes áreas territoriais em regiões tropicais, constituem exemplos relevantes e contraditórios. A despeito dos avanços da legislação ambiental nos países ricos, os seus governos continuam incentivando a transferência de suas matrizes industriais poluidoras e de seus lixos industriais, para os países subdesenvolvidos. Estes mesmos governos também demonstram uma postura complacente com os níveis de poluição de suas indústrias transnacionais nesses países periféricos.

Observo que a concepção autoritária desses governos e organizações não leva em consideração os aspectos culturais e sociais próprios das populações regionais em seus territórios nativos. Para os meus povos o espaço é considerado um conjunto inseparável de sistemas de objetos e ações, nos quais as dinâmicas humanas, faunísticas e florísticas de minhas regiões estão conectadas por feixes de relações, próprias das condições naturais e históricas pretéritas, presentes e àquelas que se projetam ao futuro. Uma ação preventiva mais eficaz e contínua nessas regiões, caso necessária, pode dar-se sem uma intervenção exógena, típica de processos de ocupação colonialistas que continuam ocorrendo em meus territórios.

* * *

Para ilustrar algumas nuances da noção de sustentabilidade que nos é imposta, farei breve exposição sobre alguns cenários etnográficos em meus domínios territoriais, signos e principal laboratório aberto às experiências ecológicas no mundo contemporâneo. A delimitação desta abordagem, na qual apresento um conjunto de “visões fantásticas de a Abya Yala”, me parece difícil e paradigmática.

Difícil, porque identifico poucos autores que têm conseguido apreender-me em forma fantástica e sofisticada, sem caricaturarizar-me, sem vulgarizar-me e simplificar os processos sociais e civilizatórios que dão sustentação aos fundamentos lógicos e históricos, próprios de minha ocupação e existência geohistórica. Paradigmática, porque a Abya Yala conhecida, da qual sou principal protagonista, é constitutiva de processos amplos, imbricados à cultura brasileira e universal.

Entretanto, identifico-me com algumas obras e autores, entre os quais destaco: A Invenção da Amazônia de Neide Gondim; Galvez: O Imperador do Acre de Márcio Souza; As Metamorfoses da Amazônia de Marilene Corrêa da Silva; Cultura amazônica: uma poética do imaginário de João de Jesus Paes Loureiro; Suítes para os habitantes da noite de Aníbal Beça; A Viagem das Ideias de Ernesto Renan, entre outros. Estas são referências importantes para que se compreendam os vieses literário, romanesco, sociológico, poético, ensaísta e antropológico que me engendram na história do pensamento brasileiro e universal. Estes autores apreendem os recortes antropológicos que permeiam minhas generosidades, solidariedades, grandiosidades, complexidades e minhas resiliências aos processos de apropriação e expropriação que indivíduos, grupos sociais, instituições transnacionais, governos e impérios, muitas vezes com a colaboração da própria ciência, têm impingido aos meus povos e às minhas populações tradicionais.

A presença das populações regionais, dos trabalhadores, da literatura, das artes, da história e das gentes que aqui já se encontravam, em condições de sujeitos, nas chegadas do “Velho Mundo” e do Estado brasileiro nesta região, constitui um marco referencial nas obras destes autores, o que contribui para torná-las fantásticas. Outra observação importante, de caráter mais geral, refere-se aos povos indígenas e às populações tradicionais enraizadas em meus territórios. Constata-se o expresso desejo dessas populações em ter acesso às políticas públicas municipais, estaduais e federais, um sonho ainda não-alcançável para maioria delas. Para ilustrar, tratando-se do estado do Amazonas, constata-se que até 2024, poucos municípios, à exceção de Manaus, tinham um cinema e/ou um teatro em funcionamento contínuo.

Caro leitor, também, o esclareço sobre a rapidez com que meus filhos e filhas indígenas apreendem e manejam o conhecimento organizado da civilização ocidental, em prol de suas coletividades. Eu também testemunho que os mesmos, apesar de viverem no “paraíso”, não nascem com o pecado original. Suas crenças e mitos são históricas, construídas e impressas em seus corações e em suas mentes em circunstâncias que lhe são afetas. A inserção de meus povos, como protagonistas, aos benefícios diretos da ciência e da tecnologia, constitui uma perspectiva humana presente em todas as minhas reivindicações sociais.

Pode parecer óbvio para maioria, mas observo que a presença da ciência e da tecnologia é tão marcante na vida daqueles que se encontram aos seus alcances, que a inexistência de memória histórica nos leva a banalizar as conquistas da humanidade neste campo de conhecimento – para ilustrar, pouco mais de 150 anos separam a invenção da eletricidade em nível de distribuição elétrica domiciliar e a atual tecnologia aeroespacial e cibernética, assim como a esperança de vida na Europa que durante o século 20, passou de 44 para 78 anos. No limite, é um direito de meus filhos, em condições de equidade e alteridade, decidirem como participar deste processo civilizatório; entretanto não se pode mais postergar essa dimensão social para eles.

Afirmo que a historiografia de a Abya Yala registra que embora generosos e hospitaleiros, os meus povos sempre resistiram às condições de subalternidade e escravidão física e espiritual, que os agentes do “Velho mundo” e o Estado nacional lhes impuseram. Nossas escolhas privilegiam um universo onde a magia confunde-se à ciência; o profano à moral; e a sabedoria à inteligibilidade. Há, também, coexistências conflituosas entre o nossos silêncio e autoritarismo; desprezo e o colonialismo; desconfiança e o preconceito; enfim, entre a visão alegre, prazerosa e coletiva de meus povos e a matriz privatista, desagregadora e individualista da civilização ocidental, opressora e arrogante.

Portanto, insisto que a minha grandiosidade geohistórica abarca uma multiplicidade de ambientes, economias e culturas imprescindíveis à legitimação da noção de sustentabilidade numa escala global. E, também, numa perspectiva que integra a relação entre as pessoas e a natureza, suscitando novas formas de inclusão e transcendências para a humanidade.

Abya Yala e a sustentabilidade transgressora

Minha sustentabilidade tem confrontos inconciliáveis com a da cultura ocidental, privatista e baseada no lucro e na acumulação infinita. Ela exige que se libertem os meus rios, demarquem os territórios de meus povos, protejam as minhas florestas encantadas, construam as seguranças de minhas faunas e floras, assegurem nossas educações e intercâmbios interculturais, esperem ser convidados para adentrarem em meus domínios, e parem de tentar me transformar em mais-valia no mercado de commodity. As milícias e os aventureiros continuam instrumentalizando o fogo e as intervenções da economia de mercado à minha destruição cultural e ecológica. Não acreditam que, também, estejam se auto-destruindo e eliminando a possibilidade de um futuro nobre às próximas gerações.

Antes de continuar minhas apreciações, peço-lhes licença para fazer breve apresentação sobre minha identidade socioecológica. Represento uma região sul-americana com condições climáticas caracterizadas por altas temperaturas, umidade e precipitação pluviométrica, e que abrange parte do Brasil, Peru, Equador, Bolívia, Colômbia, Venezuela, Suriname, Guiana e Guiana Francesa, totalizando cerca de 6,5 milhões de km2, dos quais cerca de 4,5-5 milhões de km2 se constituem de florestas primárias.

Meus territórios abrigam as maiores sociodiversidade e biodiversidade mundiais, em área contígua, um terço das reservas mundiais de florestas latifoliadas, um quinto da água doce da Terra, além de constituir-me uma entidade física relevante às estabilidades mecânica, termodinâmica e química dos processos atmosféricos em escala planetária. A minha parte brasileira − conhecida como Abya Yala brasileira ou Região Norte − é formada pelos estados do Amazonas, Acre, Pará, Amapá, Roraima, Rondônia e Tocantins.

A Abya Yala Legal, denominação que recebi a partir de 1966, abrange, também, a parte oeste do estado do Maranhão, a partir do meridiano 44o e parte do estado do Mato Grosso, totalizando 4.987.247km2, 58% da área total do Brasil e 40% da América do Sul, que corresponde a 5% da superfície terrestre sólida. Dessa área, cerca de 3,5-4 milhões km2 de meu território encontram-se com sua cobertura vegetal primária ou sem perturbação antropogênica significativa. Em meus nove estados habitam pouco mais de 32 milhões de pessoas, em torno de 3,5 milésimos da população mundial, dentre os quais 163 povos indígenas que totalizam cerca de 870 mil pessoas, ou 51% da população indígena brasileira. Informo que os dados sobre a minha cobertura florestal estão sendo revistos devida a intensa e rápida destruição e desmatamento de meus biomas nos últimos anos.

O Brasil é o primeiro país mundial em diversidade de plantas, peixes de água doce e mamíferos, o segundo na de anfíbios, e o terceiro na de répteis. Possui 55 mil espécies vegetais, ou 22% do total conhecido no planeta. Possui ainda 524 espécies de mamíferos, 517 de anfíbios, 1.622 de pássaros, 486 de répteis, 3.000 espécies de peixes, 10-15 milhões de insetos, além de milhões de espécies de micro-organismos. Ampla maioria desse patrimônio encontra-se localizada em meus territórios, o que corrobora para explicar a minha importância para os megaprocessos econômicos globais.

E a literatura especializada confirma que a ciência conhece menos de 10% da possível biodiversidade terrestre Estima-se que 40% dos medicamentos disponíveis na terapêutica moderna tenham sido desenvolvidos a partir de fontes naturais: 25% de plantas, 12% de micro-organismos e 3% de animais; além disso, um terço dos medicamentos mais prescritos e vendidos no mundo é proveniente dessas fontes. Se considerarmos as drogas anticancerígenas e os antibióticos isoladamente, esse percentual cresce, atingindo cerca de 70%, o que reafirma a minha importância geopolítica ao Brasil e ao Mundo.

Em sítios localizados em solo da floresta do Arquipélago das Anavilhanas, situado na região central de meu território no Brasil, e sujeito a alagações periódicas, encontrou-se uma população de 116.409 micro-organismos por m2, numa camada superficial de 0-10 cm de profundidade. Estudos recentes sobre a minha biodiversidade revelam a existência de cerca de 300 espécies de árvores com mais de 10 centímetros de Diâmetro à Altura do Peito (DAP), em cada hectare de minhas florestas, valor superior ao número total de espécies existente na Europa. É fantástico: pesquisadores têm registrado a existência de 500 bilhões de árvores distribuídas em mais de 15 mil espécies em meus territórios, correspondendo a 20% de todas as espécies existentes no planeta. Em levantamento fitogenético realizado numa parte da Reserva Florestal Ducke, área de preservação com 100km2 e situada próxima de Manaus, pesquisadores do INPA (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia) constataram a existência de 5.000 indivíduos e 1.200 espécies de árvores nesta Reserva, o que reafirma a presença de grande diversidade biológica em meu território, onde espécies novas ainda estão sendo descobertas.

Minhas comunidades interioranas e minhas naturezas são banhadas pelo rio Amazonas que drena mais de 7 milhões de km2 de terras, e possuí uma vazão anual média de aproximadamente 176.000m3/s, o que lhe confere a posição de principal rio em volume de água da Terra, superando o rio Congo na África (o segundo rio em volume de água) em cerca de quatro vezes, e o rio Mississipi umas dez vezes. Na época das águas baixas, o Amazonas conduz para o mar, cerca de 100.000m3/s; na época das enchentes, mais de 300.000m3/s. Minha bacia hidrográfica constitui uma região habitada com um dos mais altos índices pluviométricos do planeta, com totais médios na ordem de 2200 mm/ano. Isto representa um volume total de água na forma líquida na ordem de 12×1012m3 (doze mil, trilhões de litros) que essa região recebe a cada ano, resultando na maior rede hidrográfica do planeta. São mais de 2 mil grandes rios e 60 mil igarapés molhando e irrigando as mais de 500 bilhões de árvores que compõem as minhas florestas abençoadas, e que representam cerca de 15000 espécies arbóreas, pouco mais de 20% do total mundial.

Minha bacia hidrográfica, a bacia do Congo e a área em torno de Borneo, regiões irmãs e tipicamente tropicais, são extremamente importantes e eficientes na absorção de energia solar e na redistribuição planetária deste calor através da atmosfera. Estudos projetam que o processo de conversão de umidade em chuva em minhas atmosferas libera uma grande quantidade de calor equivalente a 400 milhões de megawatts, que correspondem à explosão de cerca de 5.580.000 bombas nucleares por dia, semelhantes àquelas que os norte-americanos lançaram na cidade de Nagasaki, na II Guerra Mundial, em 09.08.1945.

Destaco, também, minha participação nos processos básicos imprescindíveis para a estabilidade química da atmosfera terrestre. Os especialistas têm comprovado as minhas contribuições, em níveis regional e planetário, aos balanços atmosféricos planetários de dióxido de carbono (CO2), principal “gás estufa”, de óxido nítrico (NO) e de dióxido de nitrogênio (NO2), principais agentes responsáveis pelo grau de oxidação da atmosfera, e do óxido nitroso (N2O), gás, aproximadamente, 200 vezes mais estufa que o CO2. O Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC) projeta que em 2022 foram, efetivamente, emitidos para a atmosfera terrestre, cerca de 37 bilhões de toneladas de dióxido de carbono. Os territórios florestados e manejados por meus povos, comportam-se como “gigantescos aspiradores de ar”, participando dessa dinâmica, com uma absorção, para efeito fotossintético, em ordem de 500 milhões de toneladas deste gás por ano, correspondendo a uma absorção anual de uma tonelada de CO2 por hectare, nos seus 500.000.000 de hectares.

Estimativas realizadas por especialistas, baseadas na existência de uma média de 160 toneladas de carbono por hectare, constataram que os meus ambientes naturais estocam cerca de 90 bilhões de toneladas de carbono, 6% do total de carbono armazenado na atmosfera terrestre. Projetam, também, a participação efetiva destes ambientes na emissão dos compostos nitrogenados, em especial, dos gases óxido de nitrogênio, dióxido de nitrogênio e do óxido nitroso, que circulam na atmosfera terrestre. O grau de importância dos dois primeiros gases nitrogenados na estabilidade química da atmosfera, e do último na estabilidade climática planetária são problemas complexos e ainda objeto de estudos científicos por muitas equipes de pesquisadores que circulam em meus domínios.

Mas, a economia de mercado tem muita expectativa e projetos para o meu futuro. Sem a participação de meus povos e de minhas representações sociais e produtivas. Os seus estudos exploratórios indicam que a extração petrolífera, a bioindústria, a agricultura e o extrativismo, a indústria agroflorestal e pesqueira, a exploração dos polos minero-metalúrgicos com o adequado redimensionamento, a indústria naval, as tecnologias de novos materiais, o ecoturismo, e a indústria alimentar são arranjos produtivos factíveis à região. Estes estudos também projetam que criação de commodities ambientais, o uso de fontes energéticas alternativas, a gestão ambiental, o design e o pagamento dos direitos de propriedade intelectual aos meus povos e às minhas populações tradicionais, podem, em médio prazo, resultar numa projeção econômica anual, maior que US$ 6 trilhões. Este valor corresponde a 6 vezes o atual PIB brasileiro (referência em 2022). Entretanto, os registros oficiais assinalam um desmatamento de 22% (75 milhões de hectares) de minha área florestal total, no período de 1970-2022, área maior que o território da França. Os desmatamentos, o garimpo ilegal, as queimadas, as grandes fazendas para produção agropecuária e o uso inapropriado dos solos nas regiões tropicais são problemas com impactos em âmbito global, e que trazem grandes infortúnios aos meus povos e ecologias. E as queimadas continuam consumindo meus povos, floras e faunas.

E com um agravante: a privatização e a mega-grilagem de extensas faixas territoriais em meus territórios, atingem atualmente (referência em 2017) estimativas na ordem de 120 milhões de hectares, sendo 55 milhões no estado do Amazonas, conforme amplamente divulgado na imprensa brasileira. A minha potencialidade econômica cresce em mesma proporção de minha importância ao equilíbrio socioecológico planetário. Isto resulta na criação de novas formas de dominação e colonialismo, por lideranças científicas, políticas e empresariais, em meus domínios territoriais e culturais. A contínua degradação ecológica do planeta reverbera e aumenta a minha importância geopolítica aos processos globais. Esta questão, associada ao meu desenvolvimento sustentável apresenta-se como instigante desafio político contemporâneo.

A minha destruição cultural e ecológica coloca em perigo a perenidade da humanidade, e pode se tornar uma tragédia mundial. Conjuntura movimentada por tendências e prováveis cenários fantásticos relativos à continuidade de minha existência. Suscita novas transcendências, realidades e caminhos à humanidade. A minha sustentabilidade transgressora, necessariamente, assenta-se em meus diálogos e ações internas, assim como em minhas conexões globais e planetárias. Nos dois últimos textos mostrarei por que minhas transcendências ocupam um lugar especial neste quadro civilizatório.

Manaus, 04 de Outubro de 2024

Prof. Marcílio de Freitas

Texto adaptado do livro autoral “Nuances da sustentabilidade: visões fantásticas da Amazônia”.

Link para acesso: https://www.amazon.com/dp/B0CFCPFRPN

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