Manaus, 18 de setembro de 2024

O Município de Itaquatiara

Compartilhe nas redes:


*Mario Ypiranga Monteiro

Prefácio: Acadêmico Francisco Gomes da Silva

O saudoso professor, jornalista e historiador Mário Ypiranga Monteiro, que também incursionou pela poesia, o folclore, a novela, o conto, o romance e o teatro, ocupou e ainda ocupa o imaginário dos amazonenses como um intelectual que viveu muito e muito produziu. Morreu aos 95 anos de idade deixando publicados mais de cem títulos, além de vários inéditos. Ao longo de tão prolixa longevidade existencial, científica e cultural, como um pregador que se penetra bem do espírito das Letras, participou de diversas entidades do ramo, no País e no exterior, a exemplo do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas e da Academia Amazonense de Letras.

Os inéditos do Mestre Ypiranga vêm sendo progressivamente editados, in memoriam, graças aos esforços de sua filha Marita Socorro Monteiro, que o substituiu no IGHA, e ao patrocínio de órgãos públicos e privados, como é o caso de O Município de Itaquatiara, agora lançado pela Academia Amazonense de Letras em parceria com o Estado do Amazonas e a Prefeitura de Manaus, como parte das festividades do centenário da Casa de Adriano Jorge.

Conheci o talentoso historiógrafo, sisudo, de escrita bonita e fala mansa, em meados de 1964. Eu acabara de chegar do interior cheio de juventude, carregado de sonhos. Fui à sua residência no centro histórico de Manaus. Na sala ampla do imóvel que ainda guardava resquícios do período áureo da nossa capital, por onde derramavam-se prateleirasabarrotadas de livros e papéis, conversamos sobre literatura, carência bibliográfica e ineficiência dos arquivos públicos. Conversa vai, conversa vem e ele diz. com toda simplicidade, que pretendia lançar um livro sobre a velha Serpa. Referidos escritos – como revelado na Apresentação desta obra – foram concluídos em 1957. Portanto, decorridos mais de sessenta anos, somente agora O Município de Itaquatiara vem a lume, antes tarde do que nunca!

A obra não revela em plenitude a História de Itacoatiara, e o próprio Autor adverte: “é apenas um subsídio” – um adjutório aos estudiosos da Amazônia, sobretudo aos que mostrarem interesse em conhecer a trajetória desse Município. Grande expressão do telurismo caboclo, Mário Ypiranga é o único pensador amazonense a adotar o substantivo indigenaItaquatiara (também, quando alude a Coari, escreve Quari). Destarte, ele jamais admitiu a forma vernacular Itacoatiara.

Ao discorrer, no primeiro capítulo, sobre a toponimia municipal,ensina:

Itaquatiara [..] guarda uma original história de civilizações pregressas que lhe deixaram, ao passar, colgadas dos barrancos e sumidas nas suas florestas, provas materiais [resíduos arqueológicos que atestam] pelo menos uma coisa: a estrutura básica de uma sociedade bárbara, fixada, que dominou de maneira vamos dizer estratégica, aquele cotovelo do Amazonas… […] Essa prova está, apenas, em dois fatos mais do que interessantes: as escrituras rupestres itaquatiaras e a formidável necrópole Miracanguera ou Muiracanguera. […] O nome [Itaquatiara] não foi posto pelo civilizado. Já existia real, definitivo, exprimindo toponimicamente a existência das pedras lavradas. O nome pegou na arqueologia moderna, com o sentido universal de sua etimologia: pedra pintada ou lavrada.

Relevante esclarecer: o termo Itaquatiara (do tupi i’tákwati’ara) foi aportuguesado quando da elevação da vila de Serpa à cidade, em 1874. O ponto de maior concentração das “pedras pintadas” 0 Sítio Itaquatiara – localiza-se no baixio que se estende ao longo da costa do Jauari, onde dormitam eternamente e são vistas somente no tempo da seca. O mesmo padrão de petróglifos encontra-se nos sítios Careta e Pedra Chata, no Baixo rio Urubu, e em Lages, próximo de Manaus. Tais gravações, presumivelmente datadas de 2 mil a 7 mil anos antesdo tempo atual, simbolizando pessoas vivas, faces de antepassados, espíritos, heróis míticos ou máscaras de rituais, talvez denunciem uma forma de comunicação entre membros de populações pré-históricas das atuais Silves, Itacoatiara e Manaus.

Tanto o Sítio Itaquatiara quanto o cemitério de Miracanguera pouco acima da cidade, junto ao Paraná de Arauató-reportam à traje tória milenar dos Aroaqui, valente e culta nação que habitou o norte do rio Amazonas, no largo trecho Uatumã-Urubu-Rio Negro, e se espalhou numa grande onda humana até as Antilhas. No decorrer do século XIX até meados do seguinte, ambos os sítios deram lugar a muitas pesquisas. Como já citado, entre os pesquisadores “da valiosa cerâmica de Itacoatiara”, estava o doutor Geraldo Pinheiro, promotor de Justiça do Município em 1953/1957 e antigo membro do IGHA. A época, ele conduziu vários cientistas nacionais e estrangeiros em suas visitas a Miracanguera e outros sítios arqueológicos na área urbana.

No segundo capítulo, sobre os primeiros viajantes, Mário Ypiranga alude a Cristóvão de Acuña, o cronista da epopeia de Pedro Teixeira que nos oferece “a primeira impressão da paisagem ainda virgem de ocupação branca”, ao passar em 1639 pelo território da atual Itacoatiara; e a Samuel Fritz, o jesuíta espanhol que ao descer o Amazonas, em 1689, nomeia alguns portugueses que, àquela altura, já moravam nas redondezas. Ambos, afirma o Autor, além de assinalarem “a descrição da paisagem”, conseguem “balancear as humanidades locais” referindo “o nome geral de todas as tribos que ocupavam a região”.

Ao reportar, no terceiro capítulo, a ocupação missioneira, o Autor atribui à parceria do poder civil com o poder religioso o sucesso da fixação definitiva do português no solo amazônico, e ressalta a preocupação da catequese na ereção dos primeiros núcleos, “conseguida com a simpática cooperação indígena” – e arremata:

É das aldeias missionárias que vão sair, com exceções raras, os municípios amazonenses. E Itaquatiara não fugiu à regra, embora, inicialmente, não tivesse a aldeia sido fixada no local em que se encontra hoje a sede municipal. Uma série de acontecimentos exigiu que a missão antiga se transferisse de um para outro lado.

O celebrado Mário Ypiranga arremata:

A primitiva localização da missão […] não está muito acertada pelos historiadores, os quais divergem entre si.

Na verdade, o núcleo que deu origem a Itacoatiara decorreu de uma missão itinerante. Condições de insalubridade e guerras intertribais forçaram a missão antiga a ser transferida de um para outro lado. Mestre Mário Ypiranga, certamente na intenção de subsidiar os interessados no tema, anotou no segundo capítulo, e repetiu duas vezes no quarto, opiniões de vários autores sobre as mudanças do referido núcleo urbano – opiniões que resumimos da seguinte forma: Itaquatiara. Provém-lhe o título de umas pedras que a vazante descobre em seu porto, escritas em hieroglificos. Foi a primeira vez fundada na foz do rio Mataurá, afluente do Médio Madeira. Do rio Mataurá se mudou para o rio Canumã. Do Canumã para o rio Abacaxis. Do Abacaxis para a margemdireita do rio Madeira, abaixo do Furo Tupinambarana. E daí para o lugar que ora ocupa, à margem esquerda do rio Amazonas.

Elucidemos os fatos: a ereção do primeiro núcleo, dirigida pelo padre Jódoco Perez, ocorreu em 1683, no rio Mataurá, território dos índiosIruri. Face aos motivos anteriormente expostos, a missão foi trasladada quatro vezes: em 1691, para Canumã; em 1696, para Abacaxis: em 1757, para o Baixo Madeira; e em 1758, para o Sitio Itaquatiara – “quando, conforme ensina Mário Ypiranga Monteiro, o domínio luso estava de fato e de direito assentado, com a criação da Capitania de São José do Rio Negro”. No ano seguinte, precisamente em 1° de janeiro de 1759, a aldeia foi elevada à vila. com o nome português de Serpa – “ato predicatório, disserta novamente o Autor, da autoria do governador Melo e Póvoas”. A transferência para o Sitio/taquatiara deveu-se à ingerência do capitão general Francisco Xavier de Mendonça Furtado que governava a Amazônia, à época.

No quinto capítulo, o mais extenso de todos, Mário Ypiranga perpassa pela vila de Serpa. Registra ligeiramente a preponderância dela sobre o Lugar da Barra, no período pós-independência do Brasil – situação que é invertida com a ascensão da futura Manaus, oficializada em 1833 como capital da Provincia, enquanto Serpa perde os foros municipais passando a mera freguesia. Sua decadência mais se evidencia ante a ação deletéria da Cabanagem (1835-1840). O capítulo sob referência decorre desde o iní cio da luta dos cabanos até quando Serpa readquiriu a autonomia política, em 1857. Todavia, entre a queda e a retomada da vila, ocorreram três fatos interessantes: a abertura, autorizada pela Câmara de Manaus, da picada que resultaria, cem anos depois, na Rodovia Manaus-Itacoatiara (1853); a visita dos cientistas Alfredo Russel Wallace e Henry Walter Bates (1849); e a instalação da Colônia Agroindustrial Itacoatiara (1854).

O sexto capítulo reporta à cidade, desde a tramitação na Assembleia Provincial do projeto que, transformado em lei, conferiu-lhe o título em 1874. “Os foros de cidade – anota o Autor, iriam dar a Itaquatiara maior força política, maior expressão social e um relativo progresso”. Rememora ainda a luta parlamentar pró-elevação do antigo termo à Comarca, vitoriosa em 1876, e emite comentários sobre a fisiografia municipal (distritos, limites com outros municípios, etc.) subsidiando o assunto com farta legislação.

O sétimo capítulo dirige-se a reconstituir o panorama sociocultural de Itacoatiara. Além de voltar ao passado, referindo que Serpa era “ponto obrigatório de parada de todos os comerciantes que subiam ou desciam o rio Amazonas, ou que viessem mesmo de Mato Grosso”, através do rio Madeira, o Autor ainda fala sobre “as primeiras manifestações de interesse para o ensino […] que só começam a aparecer a partir de 1850”. Lembra que a primeira escola primária criada, na então freguesia, tem a data de 1852. Que somente dez anos depois é criada uma cadeira de primeiras letras para o sexo feminino.

Itacoatiara foi o primeiro município do interior amazonense apossuir jornal. Diz, a respeito, Mário Ypiranga:

Quando se pensa que aquele município, tão próximo de Manaus, possuiu nada menos de cinco jornais, de 1874 ao princípio do século 20. fica-se a pensar que espécie de vírus atacou a mentalidade dos municípios [do Amazonas] ao ponto de esquecerem o glorioso passado.

Os melhoramentos de Serpa, depois Itacoatiara, segundo o Autor,

foram gradualmente aparecendo depois dos recursos econômicos terem possibilitado uma expansão social. Houve muitos avanços no aspecto urbano. Em 1872 foi instalada a Alfândega Imperial, e, do final do século XIX para início do seguinte, tratou-se da construção do novo cemitério.

Relevante acrescentar: a prosperidade de Itacoatiara, na primeira metade do século XIX, que coincide com o final da belle époque, era traduzida à época pelas construções e inaugurações. O mais visível da herança do chamado período áureo da borracha (c.1870-1910) são os prédios históricos que destacam a cidade no cenário urbanístico-cultural da Amazônia, conferindo-lhe o terceiro lugar no setor, antecipada apenas por Belém e Manaus.

Os dois últimos capítulos do livro correspondem à Cabanagem e à Batalha Naval de Itacoatiara. O primeiro foi um movimento nativo de guerra insurreicional que ocorreu em 1835-1840. Começou em Belém espraiando-se por toda a Amazônia e atingiu Serpa duramente. A então freguesia caiu em poder dos cabanos e ficou na maior penúria. Embora não atentando para a ordem cronológica (o evento é do século XIX!), Mário Ypiranga descreve-o com maestria. O segundo movimento político-militar teve influência da revolução constitucionalista de São Paulo, de 1932. Dois navios – Jaguaribe e Andirá – armados em guerra partiram de Óbidos/PA, “e vinham […] com disposições para varrer a ferro e fogo a capital, se Manaus resistisse”. Os revoltosos ocuparam Parintins e, com a mesma intenção, subiram o Amazonas em direção a Itacoatiara.

Conforme a dissertação do Autor, forte contingente militar, liderado pelos navios Baependi e Ingá, deixou Manaus e foi em socorro de Itacoatiara. No dia 24 de agosto de 1932,

em frente ao porto de Itaquatiara […] deu-se o contato entre as forças legais e os rebeldes […] A ação mais enérgica foi a do Ingá, manobrando em cima do costado do Jaguaribe, partindo-o ao meio. […] Para terminar, o Andirá foi acossado pelos canhões do Baependi, ficando também partido ao meio e afundado. […] Os náufragos foram recolhidos na medida do possível. Houve mortos e feridos.

E, aqui, aduzo eu: há 86 anos, os navios Jaguaribe e Andirá dormem no fundo do rio, defronte à cidade. Representam a prova material desse acontecimento nervoso e trágico que marcou a História da Amazônia.

O Município de Itaquatiara é um presente de duplo sentido. Ao editá-lo a Academia Amazonense de Letras, a um tempo só, materializa antiga aspiração de Mário Ypiranga Monteiro, posto que não pôde publicar a obra em vida, e homenageia a memória do saudoso confrade. Também oportuniza à população do Amazonas o fácil acesso ao importante trabalho sobre a trajetória municipal de Itacoatiara. Registro, afinal, uma feliz coincidência: encerro a lavratura deste prefácio justamente no dia em que Itacoatiara completa 335 anos de história!

Manaus, 8 de setembro de 2018

*Mário Ypiranga Monteiro (1909-2004). Amazonense de Manaus, historiador, folclorista, geógrafo, professor jornalista e escritor. Pesquisador do INPA, membro da Academia Amazonense de Letras e do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas. É o autor que mais escreveu livros sobre História do Amazonas, com quase 50 títulos.

 

Views: 84

Compartilhe nas redes:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

COLUNISTAS

COLABORADORES

Abrahim Baze

Alírio Marques