Manaus, 1 de julho de 2025

O Município de Itaquatiara

Compartilhe nas redes:


*Mario Ypiranga Monteiro

Ocupação Missioneira

A fixação definitiva do português no solo amazônico decorre de uma série de atos de emergência, sábios atos que revelam o interesse político-econômico de Portugal na Amazônia. A começar pela própria viagem de Pedro Teixeira, que reputo uma como deliberada réplica à insinuação espanhola na bacia e terminando pela criação da Capitania de São José do Rio Negro, não poucos foram os atos intermediários de consolidação dos domínios. Todavia, vale ressaltar que a empresa civil corria parelha com a empresa religiosa, e não fora esta, talvez o processo de fixação do homem a terra não tivesse um resultado tão positivo, De fato, não surpreende a ninguém a preocupação máxima da catequese na ereção dos primeiros núcleos de condensação humana, conseguida com a simpática cooperação indígena.18 É das aldeias missionárias que vão sair, com exceções raras, os municípios amazonenses. Itaquatiara não fugiu à regra, embora, inicialmente, não tivesse a aldeia sido fixada no local em que se encontra hoje a sede municipal. Uma série de acontecimentos exigiu que a missão antiga se transferisse de um para outro lado, e a maior razão foi sem dúvida a inquietude do elemento nativo não catequisado, que deambulava derredor do futuro núcleo, principalmente os terríveis Mura, dominadores agressivos do rio Madeira.

Devemos aceitar inicialmente, como primeiros ocupantes desse trato de terra, aos padres missionários Manuel de Sousa e Manuel Pires, que em 1660 selaram amizade com os Aruaqui ea 31 de dezembro iniciava a construção de uma igreja consagrada à Santa Cruz. Não há notícia exata a respeito do local preciso dessa missão. O maior investigador da história dos jesuítas no Brasil, o eruditopadr Serafim Leite, passa de raspão sobre o assunto, apoiando nas conclusões do padre João Felipe Betendorf, que diz o seguinte:

Tendo, pois, sido mandado o Padre Manuel de Sousa por primeiro Missionário das tropas acompanhadas de algum Padre da Companhia de Jesus, logo que chegou do Gurupá para riba para as aldeias dos mais afastados dos Tupinambaranas e Aruaquiz, e começou, depois da doutrina e batismo, a levantar Cruzes em as aldeias, falta deste sinal do Cristianismo, etc.19

Depois dessa ocupação missionária, necessário se torna falar nas terríveis tropas de resgate, razão de ser delas, e responsáveis, de um lado, pela exploração dos rios e pacificação dos silvícolas, e do outro lado pela sinistra matança e captura de infelizes, que deviam satisfazer, no Pará e Maranhão, a gula dos particulares, dos administradores e das missões. A ocupação do trecho compreendido entre o rio Urubu e a grande ilha fluvial Tupinambarana foi realizada, não sem afrontas ao brio dos naturais, por essas famosas tropas, e a menos conhecida delas é a chefiada pelo cabo Domingos Monteiro, por alcunha

“o Pucu”,20 o qual por volta de 1667 desceu trezentos índios, distribuídos entre a população do Maranhão, e não totalmente entre os habitantes do Pará, com seria crível.21

E assim, fiados da crônica, vamos limitando o âmbito de ocupação das tropas de resgate e dos missionários em torno do trato que seria, logo mais, a aldeia, a vila, a freguesia e a cidade de Itaquatiara. Seguiremos, no entanto, passo a passo, os sucessos que determinaram a fixação definitiva do homem. Em 1663 Antônio de Arnau Vilela, no comando de outra tropa de resgate,22 investe o rio Urubu (Baçururu de Acuña, Bararuru e Bocururu de outros cronistas) e é morto pelos Aruaqui23 que lhe armam corajosa cilada com a apresentação ao cabo-de-tropas, de suas próprias mulheres trazidas amarradas em fingimento de escravas. Não era de boa índole aquele sargento-mor Arnau Vilela. Ao contrário, dono de péssimos antecedentes, e muito requerido pela justiça de Belém, à causa de suas tropelias e motins. Era natural de Évora, Portugal, e pai de onze filhos. Foi nomeado cabo-de-tropa, posição que ambicionava a fim de servi-la aos seus interesses particulares. Depois de muito vaguear, cerca de três anos a fio pelos matos, foi dar ao Madeira e contra as ordens do governo português, ao rio Urubu, onde florescia a missão de Saracá (atual cidade de Silves). Ali a sua desmedida ambição teve fim. Fim trágico, digno dos seus péssimos desígnios. Recebido com simpatia pelas humanidades locais, manteve com elas, a princípio, boas relações de amizade e de paz, recebendo em troca grande cópia de escravos fornecidos pelos Guanavenas, Caboquenas e Bararurus. Não sopitando a ambição, atacou aldeias, fazendo inúmeros prisioneiros entre os vários elementos amigos e afins da nação Aruaqui. Faz-se oportuno lembrar que há esse tempo a missão de Saracá era dirigida pelo mercedário frei Raimundo das Mercês. Arnau Vilela caiu morto ao levantar da cama, alvoroçado com a nova de que os Aruaquis traziam-lhe, como, aliás, haviam prometido excelente partida de escravas fêmeas. Vingou a sua morte, em 1664, o sanguinário Pedro da Costa Favela ou Favila, pernambucano de origem, perpetrando pavoroso massacre entre os Guanavena e Caboquena. O balanço foi o maior de que reza a história das carnificinas locais: trezentas aldeias incendiadas, setecentos índios mortos e quatrocentos escravizados, foi o preço de uma expedição punitiva que vingava um foragido da justiça reinol! Escaparam da emboscada dos Aruaquis frei Raimundo das Mercês e entre uns poucos o autor do Noticiário Maranhense, João de Sousa Ferreira.24

Fletindo a crônica para a região sul, salienta-se, como rio-eixo. o Madeira, conhecida antes pelos nomes de Grande e Caiari. É lábil a opinião do padre Acuña, quando insinua que os Tupinambás imigraram da costa brasileira, pelo interior, alcançaram o Madeira e localizaram-se numa hermosa Isla que tiene sesenta de largo y conseguientemente más de ciento de circuito.25 Evidentemente trata-se de um erro do bom padre Acuña, mas de um erro que contém, pelo menos, um mérito: ser uma afirmação, das primeiras, do parentesco desses índios com os tupis. O clássico erro de Acuña foi preservado pela etnografia germânica que teve defensores em Carlos Frederico Phelipe Von Martius, Carlos Von den Stein e Paul Ehrenreich.26 Atualmente, com o americanista-suíço Alfred Métraux, modificou-se essa opinião. Ao contrário da tese de Acuña, os Tupis (de que os Tupinambás são oriundos) erradicaram se de uma área cujo centro de dispersão era limitado ao norte pelo Amazonas, ao sul pelo Paraguai, a este pelo Tocantins e a oeste pelo Madeira.27 Ocorreria uma pergunta curiosa: que levou o padre Acuña a classificar essa numerosa familia indígena, a não ser ouvindo referências a um éxodo muito remoto? Diz ele que vieram de Pernambuco, saindo derrotados há muitos anos, fugindo do rigor com que os Portugueses os sujeitavam28. Todavia, não foi ele quem denominou a ilha. O vocábulo tupinambarana significa nem mais nem menos do que falso tupi, ou se quiserem, semelhante ao tupi e assim já vem em Bettendorf.29

Nessa ilha, consoante a lição do padre Serafim Leite, tentaram os jesuítas fundar missões, desesperando-se do objetivo por vários creio que pela insalubridade e pelos frequentes assédios do gentio. O mesmo declara o padre João Daniel no seu Tesouro Descoberto no Máximo rio Amazonas. E o padre Bettendorf no seu famoso roteiro de viagem, repete:

Umas cinco jornadas pouco mais ou menos pelo rio das Amazonas acima estão os Tupinambaranas. Estes estavam em uma ponta alta sobre o rio, onde em 1669, quando os foram visitar em minha companhia o padre Pedro Luís Goni e o irmão Domingos da Costa; mas pela grande praga de mosquitos (leia-se carapanãs) mudaram-se uma jornada pouco mais pela terra dentro sobre um belo lago ou rio que vindo pelos Andirazes,31 parte do rio das Amazonas, vai dar pelos Curiatós; aqui fizeram sua aldeia que o padre Antônio da Fonseca, primeiro missionário de assento, mudou mais pra riba, e acrescentou com índios novos chamados Pataruanas, fazendo sua residência com igrejas e casas 32 de Santo Inácio. Têm bela vista, bons ares, boas águas em comparação de outras, boas terras para mantimento, boas matas de caça e frutas, e boas paragens para peixe e tartarugas, desta residência se não visitou os Andirazes, pela banda de riba, e os Curiatós para a banda de baixo:.. em ambos os sertões, principalmente nos dos Curiatós não falta gentio. Têm os Andirazes em seus matos uma frutinha que chamam guaraná, a qual secam e depois pisam, fazendo delas umas bolas, que estimam como o branco o seu ouro, e desfeitas com uma pedrinha, com que vão roçando e uma cuia de água bebida, dá tão grandes forças; que indo os índios à caça, um dia até outro, não têm fome, além do que faz urinar, tira febres e dores de cabeça e câimbras. / Navegando umas duas para três jornadas por igarapé acima chega-se aos Maguazes, em cuja terra mandou o padre subprior José Ferreira fazer residências em o ano de 1696. Para lá foi por primeiro missionário o padre José Barreiros com o seu irmão secular, mas como: depois de lá assistir por tempo de um ano pouco mais ou menos, adoeceu, veio-se por doente para baixo; estão os Maguazes sobre um lago em terras mui doentias, e apartados em três aldeias, tão pouco distantes que todos os índios poderiam vir facilmente ouvir missa e assistir a doutrina em a do meio, onde estava o padre missionário. / Finalmente, uns três para quatro dias mais à riba está a aldeia do Abacaxis, a qual é bem povoada de índios; está perto da bocaina do rio da Madeira, cuja residência que havia nos Iruris se deixou por muito doentia; nesta aldeia no ano de 1696, mandou também o padre subprior José Ferreira fazer residência, sendo o primeiro missionário dela o padre João da Silva, natural do Maranhão, depois de ver uma prenda rica restaurada do Pará; bom sítio, aprazível, boas terras, bons área, muita caça e peixe.36

Temos na crônica do padre Bettendorf uma ideia geral e bem característica do que fora a ocupação missioneira no trato que corresponde mais ou menos ao atual município de Itaquatiara, salientando-se a região dos Abacaxis onde teve início. Para que não se estabeleça confusão sobre o topônimo Abacaxis, bem é que digamos logo que existiram duas aldeias com o mesmo nome: uma ficava como diz o padre, na boca do rio Madeira. A outra existia ainda, situada mais para dentro do Paraná do Urariá, que é limite atual entre os municípios de Itaquatiara e Maués, e que pertence a Maués. Qual delas teria sido a primitiva aldeia que deu origem à formação municipal, não é difícil reconhecer, sabendo-se que o cronista refere à proximidade das bocainas do rio Madeira. Corroborando a lição do padre Bettendorf, diz o padre Serafim Leite com muita propriedade:

Uns três para quatro dias, acima do sítio, em que o P Antônio da Fonseca fundara a aldeia dos Tupinambaranas, ficava a dos Abacaxis, perto da bocaina do rio Madeira’, intimamente ligada àquela. Mas a bocaina do rio Madeira não representa como se poderia crer, a boca do Madeira, ao entrar no Amazonas, mas a sua confluência com o Canuma.37

______________________

18 0 trabalho mais indicado para o conhecimento desse processo é o de Arthur Reis. A Conquista

Espiritual da Amazônia, com largos informes e interpretação lógica. São Paulo, s.d.

19 BETTENDORF. Op. cit., p. 118.

20 Pucu, em lingua geral ou nheengatu, significa comprido, lento, vagaroso, alusão sem dúvida,

estatura do soldado, pois que na qualidade de cabo-de-tropa não poderia nem ser lento nem vagaroso.

21 LEITE, padre Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil, Tomo III, p. 380-81, não diz mas o autor do Noticiário Maranhense, João de Sousa Ferreira, insinua que Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, no ano de 1667, o qual governando seis anos pacíficos e com temor de Deus se singularizou na restituição da Aldeia dos Conduris obrigando a quem lhe mandou do Gurupa a Maranhão por escravos sendo forros a que os tornasse a repor a sua custa em liberdade no sertão onde estavam servindo de estalagem e remeiros dos brancos com Igreja antes da expulsão dos Padres etc Esses Índios devolvidos ao local de origem internaram-se no mato e não sabem mais que fazer frecharia hervada para se defenderem dos Portugueses, p. 306, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 81 (1917), Rio de Janeiro, 1918. Por esse passo se avalia o perigo das célebres tropas de resgate, interessadas em escravizar e vender seres humanos, fossem em que circunstâncias fossem

22 Portanto Arnau Vilela vinha comandando antes outras tropas de resgate. A respeito dessa página sangrenta consulte-se Berredo, Anais, Históricos do Estado do Maranhão, 11, p. 179, etc. 3.ª edição,

Florença, 1905, e Bettendorf, Op. cit., p. 206.

23 Valente nação que dominava o trecho do rio Amazonas para o norte até a Venezuela inclusive, com preeminente ocupação dos rios Negro, Urubu e adjacências. Faziam parte desse grupo os Maiapenas, Guanavenas e Caboquenas.

24 FERREIRA, João de Sousa. Noticiário Maranhense, p. 306, cit.

25 ACUÑA, Op. cit., p. 167.

26 PINTO, Estevão, no prefácio à tradução da obra de Alfred Métraux. A religião dos Tupinanbás, p. 14

Brasiliana, São Paulo, 1950.

27 METRAUX, Alfred, Op. cit., loc. cit.

28 ACURA, Op. cit., loc. cit.

29 BETTENDORF, Op. cit. p. 36, passim.

30 Parte segunda, p. 175, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 3, Rio de

Janeiro, 1841.

31 Exato. É o rio e adiante o lago do Andirá, interessando aos municípios de Parintins, Barreirinha e

Maués.

32 Grifado no original.

33 Grifado no original.

34 Quando não fosse essa referência aos Maués, bastava à invocação do guaraná para ter-se a certeza que estávamos na região dos Mundurucus, tribo que não aparece referida.

35 Grifado no original.

36 BETTENDORF, Op. cit., p. 36-37.

37 LEITE, Serafim, Op. cit. III, p. 387. Quem olha para um mapa real da região, percebe logo que a primitiva missão de Abacaxis ficava na margem direita do rio Abacaxis, que Francisco Xavier de Mendonça Furtado chama rio Tupinambarana, no trecho onde começa o Paraná do Uraria, entre os rios Abacaxis e Madeira, formando a ponta austro-ocidental da ilha Tupinambarana.

*Mário Ypiranga Monteiro (1909-2004). Amazonense de Manaus, historiador, folclorista, geógrafo, professor jornalista e escritor. Pesquisador do INPA, membro da Academia Amazonense de Letras e do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas. É o autor que mais escreveu livros sobre História do Amazonas, com quase 50 títulos.

Views: 61

Compartilhe nas redes:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

COLUNISTAS

COLABORADORES

Abrahim Baze

Alírio Marques