Manaus, 1 de julho de 2025

O Município de Itaquatiara

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*Mario Ypiranga Monteiro

A Vila – Continuação (III)

Ora eram os regatões famelgas que provocavam distúrbios, ora os índios ainda não aldeados, principalmente os Mura e o Arara responsáveis por muitas das mortes ali verificadas. Extraímos os seguintes documentos dos Relatórios da Presidência da Província do Amazonas, volume primeiro, páginas 90-91, que se não relatam miudamente os fatos, provam pelo menos que eles foram de vulto:

Documento n° 15.

Portaria mandando reforçar o destacamento do ponto de Mataurá com um official inferior, um cabo, e deseseis soldados, da companhia de guardas policiaes de Borba, com vencimentos de soldos e mais vantagens que tem as praças de 1.” linha, sendo elles escolhidos, e designados na fórma do cap. 2. tit. 6.° da lei n. 602 de 19 de Setembro de 1850, e instruções que baixaram com o decreto n. 722 de 25 de outubro do mesmo anno, dando-se preferencia aos voluntários.

Documento no 16.

Officio ao dr. Chefe de policia para que expessa com bre vidade suas ordens aos subdelegados de policias dos lu gares do rio Madeira, afim de que se prestem a todas as diligencias, a formações de processos, e capturação, com toda a actividade e circunspecção, sendo descriminados dos bons dos maós, e punidos os malfeitores: fazendo re meter para esta capital os vagabundos, a terem applicação conveniente.

Documento nº 17.

Officio ao coronel comandante geral da guarnição, com portarias, neste sentido, ao comandante militar e da companhia de guardas policiaes de Borba, e a do ponto de Mataurá, para que de accordo um com outro, e ambos com o subdelegado de policia, empreguem toda a vigilância, e força á sua disposição, estabelecendo uma ronda fluvial em canoa bem armada, afim de serem capturados os salteadores da nação Mura, ou outros quaesquer malfeitores, os quaes devem ser punidos com o rigor das leis, e que os vagabundos sejam remetidos a esta capital para terem aplicação. Recommendando que essas diligencias sejam confiadas a officaes, ou officiases inferiores, que saibão com actividade, circunspecção e prudencia descriminar os bons dos mãos, e assim restabelecer a ordem publica, e a segurança individual, que nestes últimos tempos tem sofrido violentos ataques em diversos lugares do río Madeira.

Documento nº 18.

Portaria aos comandantes da companhia de trabalhadores da freguesia de Borba, para prestar os trabalhadores que forem precisos e exigidos para diligencias, que na data são recomendadas aos comandantes militares da mesma freguesia, e ao do ponto de Mataurá e subdelegados d’esses lugares; apresentando a folha dos seus jornaes vencidos. competentemente feitas e rubricadas pelos comandantes ou encarregados das diligencias ao collector respectivo, para que faça prompto pagamento aos ditos, na conformidade das ordens e instruções que já tem.

Documento nº 19.

Portaria, no mesmo sentido, ao collector de Borba para prestar os meios de fornecimento, e de mais objetos necessários aos comandantes da força militar e subdelegados dos lugares do rio Madeira em diligencias, procedendo aos pagamentos com toda a legalidade, e na forma das instruções que tem.

Documento nº 20.

Officio ao dr. chefe de policia, com outro do comandante do ponto de Mataurá no rio Madeira, e dois presos índios Muras, que ele remetteo, afim de que os mande pôr em toda a segurança e indique quaes as medidas que vae tomar, ou as que são precisas da presidência, para que sejão processados e punidos com a brevidade possível esses homens acusados de crimes com circunstancias tão agravantes.

O officio do comandante de Mataurá é o documento nº 21.

O documento n° 21, aludido, infelizmente não foi anexado a demais, por onde se pudesse avaliar a extensão das perturbações aos verificadas, quem nela tomou parte efetiva e qual o motivo. A verdade é que várias foram às anormalidades verificadas naqueles idos e algumas não sem pequena gravidade. Os ataques de índios esses eram constantes e fatais muitas vezes. As perturbações a que nos estamos referindo são do ano de 1852. As anteriores e maiores, em que tomaram parte os terríveis cabanos, serão contadas em seu devido lugar. Continuemos a transcrever os documentos, depois contaremos o que se passou realmente:

Documento n° 22.

Oficio do doutor chefe de policia á presidencia, dando conta de ter cumprido o que se lhe ordenou á cerca dos dous presos remetidos pelo comandante do ponto de Mataurá, e dando as necessárias providencias para a captura dos criminosos, e processos, ficando já instaurado o dos dois presos.

O que houve no Mataurá, no rio Madeira, num antigo distrito de Serpa, foi o seguinte, relatado pelo presidente da Província, João Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha no seu Relatório que, em seguida ao do Exmo. Sr. Presidente da Província do Pará, e em virtude da circular de 11 de março de 1848, fez sobre o estado da Província do Amazonas, depois da instalação dela, e de haver tomado posse, o seu 1.° Presidente, etc., em 30 de abril de 1852;

que também, antes da dita notícia, no rio Madeira alguns bandos de gentios das numerosas tribos dos Muras, tendo nestes últimos tempos cometido nefandos crimes contra pessoas inermes, chegaram a insurgir-se contra o seu próprio chefe principal (Tuxáua) só porque este quis impedir os excessos e desregramentos daqueles que, por esse motivo, o espancaram e o deixaram por morto. / Dois índios, dos autores desse atentado, vieram e se acham presos em processo, e a cerca dos outros dei prontas e enérgicas providências para que sejam capturados e punidos.

No documento nº 18, antes citado, há uma referência ao célebre Corpo de Trabalhadores. Creio ser necessária uma explicação a respeito. Não se pode negar que tanto durante o período colonial como no período posterior, as autoridades se desvelaram para com o índio, cercando-o de atenção e possibilitando a sua integração na vida social. Se não houve uma maior participação do índio na história, não é caso para incriminarem-se as autoridades da colônia ou do império. Na verdade as leis protetoras existiram e foram parcialmente cumpridas. Todavia, não se fiscalizou o cumprimento dessas leis, daí talvez certa precipitação do elemento amarelo na indisciplina, na desordem. O Corpo de Trabalhadores, por exemplo, foi uma organização perfeita para a época, que abrigava o elemento nativo a participar diretamente da responsabilidade que cabia às milícias: zelar pela ordem pública e privada. Esse Corpo foi criado pela lei provincial do Pará de 25 de abril de 1838 e modificado pelas leis de 24 de outubro de 1840 e 12 de junho de 1841. Compunha-se de 12 companhias, servindo na Capital, Moura, Tomar, São Gabriel, Serpa, Silves, Vila-Bela, Maués, Canumá, Borba, Alvelos e Ega. Tinha por fim chamar a obediência e ao trabalho todos os índios já domesticados, mestiços, e pretos livres ou libertos, que não se achassem em circunstâncias de ser alistados na Guarda Policial.

Serviu certamente, diz o conselheiro Herculano Ferreira Pena na sua Fala:

a uma grande necessidade da época, porque poupou a Sociedade muitas malfeitorias e agressões de uma grande parte da população mais grosseira e ignorante, que impossível seria conter na órbita do dever pelos meios de que dispunham as Autoridades Civis, achando-se a ordem pública ainda mal segura em suas bases, e ameaçada pela facção que desde o lutuoso dia 7 de janeiro de 1835 se insurgira contra a moral, contra a vida, e contra a propriedade de todo o Cidadão pacífici.

Refere-se o ilustre presidente da Província ao movimento da cabanagem, de característica nativista.

Nesses 1853 volta-se a falar na projetada rodovia para o rio Urubu, projeto que vinha acalentado desde 1847 quando o coronel João Henriques de Matos, então comandante militar, mandara abrir a picada. Essa estrada deveria seguir no rumo da Cachoeira Grande até encontrar a margem do rio Urubu. Depois o projeto foi abandonado, mas no tempo do governador coronel Ramalho Júnior, foi aberta nova picada até Itaquatiara, a fim de ser instalada a linha telegráfica. Em outubro de 1926, Luís Collins e Aquino de Sousa, abrem a picada Manaus-Itaquatiara, com 17 homens, tinham 3 turmas: uma de Manaus ao lago Jatuarana; outra deste lago ao rio Urubu; outra deste a Itaquatiara. Na administração estadual do Dr. Plínio Ramos Coelho, houve um trabalho ativo nessa famosa estrada. No momento em que escrevo 30 de setembro de 1957, a estrada está em franco progresso, partindo uma secção da sede do município e a outra de Manaus. A partir de Manaus já estão prontos 13 quilômetros entregues ao tráfego. O Departamento de Estradas de Rodagem terá a seu encargo apenas 21 quilômetros de rodovia franca, ficando o restante aos contratantes, cidadãos José Rodrigues Pereira e Edward Santana, que se encarregam do trecho inicial em Itaquatiara. Os trabalhos estão sob a direção do engenheiro Waldir Pimenta. É pensamento de o governo inaugurá-la em janeiro de 1958.

Desviamo-nos do nosso itinerário por causa da famosa estrada Manaus-Itaquatiara. Volvamos ao assunto perturbações da ordem pública, que estávamos ferindo antes. Falamos na abertura da estrada,

porque o assunto estava ligado de perto, àquele tempo, ao problema colonização e educação, pontos vitais do progresso da província. De fato, todos os presidentes estavam interessados nesse problema, não somente afeto à capital, mas também às demais vilas e lugares. Assim é que o projeto da estrada Manaus-Itaquatiara, visava igualmente levar a civilização por dentro das brenhas até ao rio Urubu, sempre de sinistra memória, evitando o internamento das populações indias e chamando à civilização os povos deambulantes. Além do mais, pela falta de transportes fluviais, a estrada serviria para alguma coisa, pelo menos para a localização de colonos imigrantes ao longo dela.

Os ânimos andavam tão exaltados naquela região, que em 1860, em abril, os africanos empregados na colônia Itaquatiara, ao norte da Vila, revoltaram-se e acometeram furiosamente aos brancos e índios, armados de paus e instrumentos cortantes, sendo dominada a revolta pelos próprios moradores auxiliados pela força de linha. Em 1865, a 31 de junho, verificou-se outro distúrbio, este de maiores consequências, pois que não somente feita vítimas como abalou o crédito moral de pessoas injustamente apontadas como autoras ou coautoras, além do desassossego imposto à população durante vários dias. Desses acontecimentos dá conta pormenorizada quase o Dr. Antônio Epaminondas de Melo no Relatório com que passou a administração provincial ao vice-presidente Dr. Gustavo Adolfo Ramos Ferreira:

Durante a minha viagem para Manaus, ouvi as narrações que faziam á (sic) bordo sobre o assalto que alguns crimi nosos déram à Villa de Serpa, morte a ferimentos que sí praticaram. A própria família do ex-Delegado da dita Vila historiou-me por sua vez aqueles acontecimentos. Chegan do à Capital, chamei a mim o respectivo processo, li-o, bem como toda a correspondência das autoridades, trocada com a Presidencia até então. Destas peças oficiais resultava a evidencia de que o ex-Delegado Raimundo Carlos Ferraz, e ex-Sub-delegado Evaristo Rodrigues de Lima, não só não tiveram valor para reagir contra os criminosos assaltantes, mas, o que é de lamentar profundamente, entregaram-lhes o armamento e munição. A demissão que meu antecessor dera a esses agentes policiais, provava igualmente que eles não se haviam portado bem durante o conflito. Não podia eu, pois, satisfazer-me com essa mera exoneração e orde nei ao Chefe de Policia que os prendesse e processasse. O Governo Imperial aprovou o meu procedimento. A relação do Maranhão anulou o primeiro processo de Ferraz (úni co que recorreu da pronúncia), pelo fundamento de ser o Chefe de Policia incompetente para processá-lo na Capital, visto que em Serpa eram a residência dos delinquentes e o foro do delito. Ordenei ao Chefe de Policia que mandasse fazer novo processo pelas autoridades de Serpa. Fez-se e foi pronunciado Ferraz, sendo absolvido no Júri. O Pro motor Público apelou. Tal é o estado desse processo. Os outros criminosos foram condenados e absorvidos pelo Júri. / Destes, os que não tinham isenção legal do serviço da guerra, foram recrutados, e aqueles ficaram cumprindo a pena na respectiva prisão. / Por falta de segurança man dei removê-los da Cadeia de Serpa onde estavam para a da Capital, nessa ocasião evadiram-se os presos por negli gencia do carcereiro é da guarda. Respondem legalmente pela culpa, no juízo competente, e tenho repetido ordens para a captura dos fugitivos, que ainda não puderam ser apanhados, por causa da grande enchente dos rios, que lhes facilita o homizio. Na noite do atentado de Serpa, seus habitantes deixaram-se possuir de terror pânico, excepto o Alferes Antônio José Servulo Martins (leia-se invés de Servulo-Serudo), que mostrou sangue frio e dedicação pela ordem pública, conseguindo que os criminosos se retirassem. Transmitindo ao Governo Imperial a narração verídica dos acontecimentos, em resposta foi nomeado o dito Servulo (leia-se Serudo), Cavalheiro da Ordem da Rosa, pelos serviços relevantes que prestou. / Ao passo que procurava reprimir com a lei esses delinquentes, tive igualmente de proceder com energia contra os esbanjado res dos dinheiros públicos.

Historiando os acontecimentos da noite de 31 de junho de 1865, mísio Jobim, no seu livro Itaquatiara, página 41:

A 31 de junho de 1865, por noite, viu-se a população despertada por um movimento desusado. Na calma da noite, quando fodes dormiam, um grupo de indivíduos malfeitores sublu apa sem serem pressentidos, e Invadina vila, ao som de imbores, gritos subversivos e tiros, atacando o quartel a cadeia, antes de romperem na atorda dos tamboris e dos tiros. Tão anormal acontecimento despertou, como era natural, um grande sobressalto nas famílias e nos habitantes, sem que, no momento, pudessem atinar do que se passava, Grave, porém era o desenrolar dos sucessos, dados os gritos, os assassínios, os baques, as correrias e os insultos dos atacantes, que se supôs, a princípio serem paraguaios que tomassem a cidade de assaltos (Entre parêntesis, Itaquatiara a esse tempo não era ainda cidade, pois que somente recebeu esta predicação em 1874). Não só caiu assassinado o português Francisco Pereira Coelho, como foram presos e seviciados André Pereira da Silva e José Fernandes. Por todos os ângulos da cidade (sic) ouvia-se o estrépito dos tiros de bacamarte, e o barulho surdo de portas postas abaixo. / Passada a primeira impressão de medo e supondo se que fossem paraguaios com que estávamos então em guerra, surgiram as primeiras reações. / Tão audacioso cometimento devia ser obra terrível de malfeitores e de inimigos da situação política reinante. / Tomando armas e saindo para a rua, o capitão da Guarda Nacional Antônio José Serudo Martins, reunindo-se ao cabo José Maquiné, com um grupo de homens, empenhou-se em luta sendo que o cabo José Maquiné, foi logo retirado do combate, por ter recebido uma bala na perna. A contra ofensiva, tomada em meio da confusão geral, teve completo êxito, porque, depois de se travarem alguns conflitos, os invasores puseram-se em fuga precipitadamente, indo uns se esconder nas matas próximas, outros fugindo no rumo do rio Urubu, e outros se dirigindo para o Jatapú. / No dia seguinte organizaram-se escoltas, que deviam seguir direções diferentes, no sentido de capturar os facinoras. A força do capitão Serudo Martins prendeu alguns deles, trazendo-os para a vila. Por estes serviços considerados de relevância, foi Serudo Martins condecorado com a medalha de “Cavalheiro da Ordem da Rosa”.

(Continua na próxima semana)

*Mário Ypiranga Monteiro (1909-2004). Amazonense de Manaus, historiador, folclorista, geógrafo, professor jornalista e escritor. Pesquisador do INPA, membro da Academia Amazonense de Letras e do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas. É o autor que mais escreveu livros sobre História do Amazonas, com quase 50 títulos.

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