Manaus, 16 de abril de 2025

Os frutos da esperança

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Continuação…

Há no Amazonas hoje uma nova realidade. Com o plantio de mais uma semente de esperança, a economia da Amazônia Ocidental, que reúne os Estados do Amazonas, Acre, Rondônia e Roraima, ganhou novas dimensões com o projeto da Zona Franca, ao mobilizar o poder criador dos investidores voltado para a realidade da terra. Hoje vemos empreendimentos florescentes nos setores de criação de peixes e quelônios, no consumo de matérias-primas naturais da região usadas na indústria de alimentos, perfumaria e fármacos. O governador acreditava na criação de peixes. Um dia ele descobriu que havia em Rio Branco do Acre uma experiência da criação de peixes em cativeiro. Não teve dúvida, partiu para lá e confirmou a viabilidade do procedimento como alternativa de produção de alimentos sem arruinar o meio ambiente. E saiu pregando a boa nova. Muitos foram os seus ouvintes e muitos aplausos recebeu em suas manifestações. No entanto, poucos foram os que em verdade acreditaram no governador. E os que acreditaram viram florescer aquela semente de esperança e tambaqui, o pirarucu e o quelônio de criatórios abarrotam hoje a mesa dos amazonenses, a preços acessíveis ao bolso da população.

O tucupi, o açaí, o tucumã, a pupunha, as polpas de frutas como o cupuaçu, maracujá, a graviola, a manga, o limão, o caju, a acerola, a goiaba, que eram consumidos em porções limitadas decorrentes de atividade artesanal, assumiram escala comercial, enriquecendo as montras dos supermercados e a cozinha dos restaurantes da moda.

O Professor José Lindoso cultuava também a caboclitude, expressão criada por Álvaro Maia para definir o jeito de ser do caboclo do Amazonas. O Dr. Álvaro era um dos seus modelos de homem público, principalmente no reconhecimento dos valores da terra. O Professor Lindoso estava no Senado quando se deram as comemorações do sesquicentenário de adesão do Amazonas à Independência, dia 9 de novembro de 1973. Mobilizou a intelectualidade de então a celebrar a data e pronunciou um discurse na Câmara Alta do país sobre o evento.

Promoveu pelo Senado a uma reedição da Canção de fé e esperança, a conferência pronunciada por Álvaro Maia, na noite do dia 9 de novembro de 1923, no Teatro Amazonas comemorativa ao centenário dessa data.

Ainda como demonstração do esforço em fixar cada vez mais a individualidade do amazônida, por indicação do Conselheiro Djalma Batista, do Conselho Estadual de Cultura, que reclamou de o Amazonas não possuir ainda o seu hino oficial, o governador providenciou a elaboração do Hino do Amazonas. A letra do hino resultou de um concurso julgado pelo próprio Conselho, em que foi escolhido o poema de Jorge Tufic. Para compor a música, por sugestão do maestro Nivaldo Santiago, o Professor Lindoso convidou o compositor e maestro amazonense Cláudio Santoro, que realizou o trabalho com a maior alegria. No dia 1o, de setembro de 1980, na solenidade de abertura da Semana da Pátria e Semana do Amazonas, Praça do Congresso às 8 horas, o hino foi lançado pelo Governador. Nessa bela manhã, ante a multidão formada por jovens estudantes da rede de ensino de Manaus e o povo dos bairros reunidos nessa praça central da cidade, o Governador Lindoso lançou oficialmente o

hino. Assinalou que

o Hino é a expressão de tudo o que está dentro dos nossos corações. Ele fala, na musicalidade e na expressão de sua letra, de todos os nossos anseios, impulsionados pela nossa tradição, traduzindo a síntese do milagre da história na afirmação de uma nova nacionalidade.

Acrescentou ainda que

o Hino traz, entranhado nas suas expressões, na sua sublimidade, esse sentido profundo da harmonia de civilização que vamos construir com a própria natureza.2

Foi o momento de lançar mais uma semente de esperança no futuro do Amazonas.

Ao assumir uma cadeira na Academia Amazonense de Letras, José Lindoso não ia de mãos abanando. Levava uma bagagem intelectual composta de ensaios sobre Direito, Economia, Política, Educação e Amazonologia. Sua oratória era estruturada ao sabor das metáforas que lhe dotavam de genuíno conteúdo poético.

Desde jovem escreveu belos poemas em versos livres e disse num desses versos:

Tenho ânsias de conquista.

Os seus poemas em geral eram uma forma de colóquio com D. Amine, sua esposa e companheira de toda a vida:

Em plena juventude ele escreveu:

Poema que está no meu coração
Cantando em todas as gotas do meu sangue
Poema que é a minha vida
Meu grande Poema! Meu Amor!

A vida prosseguiu e chegaram os filhos e vieram os netos:

Já estamos no entardecer
da vida
O sol se põe e a luz
perde a sua força
Mas ainda ilumina o
nosso caminho.

Na solenidade de transmissão de cargo no Palácio Rio Negro, sede do governo, seu discurso foi dominado em grande parte pela poesia. Era um momento de grande emoção e nada melhor do que o poema para expressar essa alegria.

Fala do rio, o caminho por onde veio.

O RIO
No rio a gente pesca
No rio a gente se banha de cuia
No rio a gente mergulha
Do rio se carrega água para beber
O rio é caminho de ir
e de voltar também…
O rio é mistério e fonte de fantasia
afoga na maresia.
O rio é tudo pra gente viver…

O palácio precisava de obras de restauração. O Governador Lindos já havia autorizado como primeira providência da Secretaria de Obras, restauração do palácio. Seu gabinete de despacho, durante todo o governo portanto, foi transferido para o terceiro andar da Secretaria da Fazenda. Mas o palácio jamais deixou de ser o símbolo do poder do Estado, produto da emoção e do trabalho do povo. Um dos seus últimos atos como govenador foi entregar ao público o Palácio Rio Negro totalmente recuperado em suas linhas originais e urbanizado o seu em torno.

Diz o Governador Lindoso:

Palácio do seringueiro
amassado
sofrido
espoliado
Seringueiro que teve sede
de riqueza

e foi simplesmente logrado.

Anuncia a sua chegada naquela casa:

Chego ao Palácio Rio Negro
Sem encantamento
Com sofrimento
Com Esperança.

Prossegue analisando o palácio no seu discurso em forma de poema:

Este Palácio
Cofre vazio das Esperanças eu se acabaram
Mistério de vontades perdidas
de governantes do passado
Mistura de amor, de sonhos
com cheiro de intrigas
Cofre vazio de Esperanças que se acabaram
Tem um pouco de mistério
notícias de assombração.

Então o que ele acha que deve ser feito para salvar o palácio?

Deve ser exorcizado
lavado
benzido
por todos os santos e pelo Divino
Para que seja trincheira da Esperança
Guarida vigilante da Justiça
Encontro de todas as águas.

Até chegar a Manaus, o Professor José Lindoso empreendeu uma longa jornada. Veio do rio Mariepaua, afluente do rio Madeira, no município amazonense de Manicoré. Estava com 12 anos quando chegou a Manaus.

Fala dessa aventura em seu discurso-poema de transmissão de cargo:

VIAGEM
Vim de longe
na costa do rio
na montaria do sonho e da obstinação
A minha canoa fez viagem
carregada de Esperança
E foi puxada pela
sirga do sonho
nos estirões da vida
subindo o rio
vencendo correntezas.
Fiz o rio caminho
da incerteza, a certeza
do sonho, realidade.

Fico olhando no desenho gráfico do poema e me pergunto sobre a intenção do poeta em grafá-lo assim, em linhas sinuosas e irregulares.

Não desejava ele deixar aí, ainda, na cartografia da sua imaginação,

mancha gráfica do rio?

E vai o orador-poeta contando a sua história:

No sofrimento do meu irmão
preso no lago
perdido no mato
no igarapé dos escondidos
fui crescendo,
viajando na costa do rio
na mistura do sonho e da obstinação.

Aos 12 anos de idade já assistira e vivera muitos episódios da vide
dos seus irmãos ribeirinhos, enumerados nos seguintes versos:

No choro do menino
na barriga da mulher
na sezão do meu irmão
na agilidade do peixe
no voo do pássaro
no verde da várzea
No barro da terra
Na lama da várzea
na paciência do pescador de linha
no trabalho da roça
nas conversas do meu pai
nas crenças da minha mãe
ganhei força e determinação.

E volta a falar de sua viagem, figura presente com insistência em sua vida:

Vim de longe
na costa do rio
na montaria do sonho e
da obstinação
Guardei no coração a pureza
das manhãs lavadas de chuva

Olha a chuva, prezado leitor, caindo cruzada na configuração dos versos do poeta!

Aí teve início o seu aprendizado:

As lições da maresia forte
O vai e vem do rio
Cheia grande e seca
repiquete
parada do rio
Ciranda da vida.

O poema então se encerra com as linhas do plano de governo, numa síntese que só a arte poética tem o condão de expressar. Com palavras ditas, sem dúvida, em forma de poesia, a poesia herdeira de sua origem mais velha chamada magia. O que não percebemos, posto estarmos sempre aflitos em interpretar a ciência das coisas de um ponto de vista racional, é que a magia também possui a sua técnica, técnica anterior, muito anterior às técnicas da ciência, técnica desprezada por um tempo, mas resguardada para o uso do homem por meio da poesia.

O Governador José Lindoso, encerra o seu discurso com a seguinte estrofe:

A roça precisa de limpa
A panela está vazia
E vamos fazer um puxirum
Todo mundo dá um pouco de
boa vontade e de sonho
E com um feixe de esperanças
com sorriso de criança
Vamos trabalhar
e o amanhã será melhor…

Em verdade, pelo menos na história política do Estado, não se conhece outro governador que tenha pronunciado discurso de transmissão de cargo em forma de poema. Álvaro Maia, poeta reconhecido por uma vasta obra poética reunida em Buzina dos Paranás, não avançou no estilo. O que se sabe é do preconceito com que as lideranças políticas encaravam a atividade poética de qualquer autoridade em suas funções públicas. Poeta, nessa sociedade, era sinônimo de boemia e vida irresponsável. Não sei como está hoje. Nesse tempo a coisa andava muito complicada. Conta-se a história de um prefeito de cidade do interior amazonense que pleiteava junto ao governador Álvaro Maia, que removesse daquela comarca, o promotor Américo Antony, maldizendo que o homem vinha criando problemas na cidade, que até poeta o homem era. O interessante nessa história é que o indigitado senhor mal sabia que poeta era também o governador. Por causa desse tratamento corrente na época, muitos

poetas não gostavam de ser tratados como tais. O meu amigo e mestre Bruno de Menezes, por exemplo, quando algum desavisado o chamava de poeta, ele se apressava em corrigir com humor: poeta é quem chama Luiz Bacellar, quando chamado de poeta por algum peralvilho qualquer corrigia-o com uma palavrada monumental: “poeta é o (ia aí o palavrão). Mandou até imprimir um cartão com essa frase que era entregue imediatamente a alguém que viesse com história de chamar meu amigo de Luiz Bacellar de poeta.

O Governador José Lindoso não ligava para isso. Ao contrário, ele respeitava e prestigiava os poetas. Um dia dissera em casa solenemente aos filhos, que iria receber a visita de um poeta.

A meninada aprontou-se curiosa para receber aquela pessoa tão importante. Era ninguém menos, que o autor destas notas. E, sem dúvida, devem ter ficado desapontados

com o prosaísmo da figura…

Ora, mas foi exatamente esse entusiasmo para as coisas do espírito que impulsionou a ação do Professor José Lindoso em tudo o que fazia. Era em tudo o que fazia uma pessoa da convivência. Suas decisões de trabalho eram tomadas após exaustivas reuniões em que eram ouvidos todos os participantes da mesa de debates. Era efetivamente um professor, um parlamentar, mas sabia decidir e quando se determinava a tomar uma posição, qualquer que fosse, ninguém o demovia dos seus rumos. Nos debates preparatórios à convocação da Assembleia Nacional Constituinte, que promulgou a Carta Magna de 88, instrumento jurídico formulador de novos caminhos após o período autoritário do movimento militar de 1964, o professor escreveu e lançou pela Editora Saraiva, 1986, o livro intitulado Estado, Constituinte e Constituição.

Logo no primeiro capítulo desse livro, na parte intitulada Sociedade e convivência, ele define:

O homem vive convivendo. Ele mantém em tessituras, muitas vezes quase imperceptíveis e, outras vezes, reveladas de modo marcante, relações de dependência, de coordenação, de subordinação. O pai, nas relações com os filhos, o marido e a mulher, o empregado e o empregador, o chefe e o subordinado, o governante e o governado. Uma gama enorme de relações de matizes variados se desdobra, dinamizando a vida na sociedade.

Há o mau costume de os novos mandatários públicos não prosseguirem as políticas dos governos anteriores. Mas, felizmente, a grande virtude dos sistemas democráticos de governo é impedir que eventuais governantes pratiquem desmandos conduzidos pelo próprio bestunto. A rotatividade no poder, determinada pelas normas democráticas, redirecionam procedimentos bem-sucedidos e bem recebidos pela sociedade transfigurando-os. Pelo menos dois exemplos disso podem ser lembrados com relação ao Governo José Lindoso. No período das piracemas, isto é, da fartura de peixes nos rios amazônicos, cai o preço do pescado por excesso de peixes. Há tanto peixe que leva ao desperdício nas sobras diárias lançadas ao rio já apodrecidas. Há períodos, no entanto, em que o pescado rareia na época das entressafras e do defeso e os preços do pescado oscilam para cima. No intuito de resolver essa questão e pavimentar estabilidade nos preços do pescado, foi criado o sistema regulador dos preços. Era armazenado o excedente dos tempos de piracema e, na entressafra esses estoques de peixes protegiam os bons preços ao consumidor, sem desperdício. Para armazenar os estoques, o governo firmou convênio com a rede de frigoríficos privados do Estado, proporcionando, ainda, uma boa movimentação de dinheiro entre instituições da iniciativa particular. Mas o sistema foi desprezado pelos governos seguintes. Foi também distorcida a política do crédito direcionado em relação à lei dos incentivos fiscais da Zona Franca, na parte de responsabilidade do Estado. No original, o sistema reservava uma significativa parcela de recursos a ser aplicada em projetos de empreendimentos localizados nos municípios e dedicados à transformação de matérias-primas regionais. Isso também foi abandonado. A lei que determinava a aplicação dos recursos retidos na interiorização da economia foi alterada. E os recursos retidos foram assimilados pelo tesouro e usados como despesas correntes da administração.

Não ouvi jamais do Professor José Lindoso um comentário de amargura. Afastado no final do terceiro ano de governo por exigência da lei eleitoral, para disputar a sua volta ao Senado, vendeu um imóvel de sua propriedade para financiar a campanha. Mas o povo achou que ele não merecia tal reconhecimento. Fico imaginando, no entanto, se foi o povo ou a traição de supostos amigos e eventuais correligionários, insatisfeitos em pleitos contrários às determinações austeras, convictas e honestas do Governador…

A vida continuou. Pronúncia conferência na University Georgetown, em Washington, sobre o Desenvolvimento da Região Amazônica, ensina Direito Municipal na Universidade do Amazonas, recebe o Grande Colar da Ordem do Mérito do Estado do Amazonas, leciona Introdução ao Direito na Universidade de Brasília e dirige aulas de pós-graduação no Centro Universitário de Brasília (CEUB).

Na comemoração do centenário de seu nascimento pode-se conferir que o Professor José Lindoso estava certo na sua mensagem de esperança.

___________________

2 Sequência de citação do discurso publicado em Hino do Amazonas, Imprensa Oficial do Amazonas, 1981.

Continua na próxima edição…

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