Manaus, 28 de outubro de 2025

Os frutos da esperança

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Continuação…

O livro de Ruas

Roberto Mendonça, no trabalho incansável de restaurador de documentos, decidiu levantar os textos escritos sobre o belo poema de L. Ruas, Aparição do Clown, e reuni-los nesta coletânea que tenho a honra de apresentar por sua indicação. Aproveito a passagem para lembrar em poucas linhas a figura de poeta e homem de pensamento do Pe. Luiz Augusto de Lima Ruas. Foi um dos luminares do Clube da Madrugada e não me pejo em usar essa palavra tão desgastada pelo uso indevido ao me referir ao seu perfil humano, visto tratar-se em verdade de pessoa que iluminava o ambiente por onde circulou, ao presidir os rituais da igreja com rara devoção, nas salas de aula e nas reuniões boêmias da cidade, com o carisma de sua simpatia, o vigor da inteligência e a expressão de um grande talento. Certo dia encontrei o Pe. Ruas na secretaria da Paróquia dos Remédios, entre uma e outra missa de domingo, a escrever o hino de uma nova paróquia implantada na periferia de Manaus, por solicitação de um jovem sacerdote seu ex-aluno que assumia pela primeira vez a função. O poeta não me espantou com a letra, mas o que me surpreendeu foi ele estar escrevendo também a melodia. Solfejava a harmonia e grafava na partitura as notações musicais. Noutra vez, ao proferir longo panegírico na Catedral de Manaus, em memória de um de seus irmãos de sacerdócio recentemente desaparecido, num texto escrito, não se ouvia sequer um sussurro de enfado entre os presentes, menos por se estar no interior de uma igreja, mas pelo magnetismo que emanava daquela peça de oratória bem escrita e bem pronunciada, tão presentes se observavam na composição as virtudes desse austero gênero literário.

Neste livro olha-se o poema de L. Ruas sob vários modos e múltiplos ângulos. André Araújo aprecia-o com as bênçãos da emoção. Não analisa, nem tenta interpretar os motivos da obra, sua forma e elocução.

Entrega-se à leitura para usufruir da atmosfera dos versos do poeta, numa atitude mais criadora do que analítica do fenômeno literário. Ao contrário do Pe. Raimundo Nonato Pinheiro que se atém a examinar aspectos gramaticais da dicção, da modernidade de expressão consagrada no texto. Entre o raciocínio luminoso do filólogo que se observa no ensaio do Pe. Nonato, e a emoção empolgante e por vezes obscura da prosa do mestre André, o leitor pode aprender sobre os vários sentidos do poema. Na sua visão impressionista, já ao encerrar o ensaio. O sociólogo André Araújo revela:

Tenho para mim que esse poema canta a excelsa angústia humana, representada na figura exótica do clown, que sendo homem é ser exótico e sui generis. É por isso que sentimos, em todo esse poema, os mistérios das asas, o profundo das quilhas, o ignoto das velas, o triste ridículo do palhaço, a incerteza da volta no vôo ao infinito, a estrutura geométrica da dança […].

E o Pe. Raimundo Nonato, na sua apreciação gramatical:

Não suponha o leitor que o talentoso sacerdote […] já se exprima em prosa concreta ou poesia concreta. Nada disso. Preferiu um meio termo: conservou a sintaxe, mas aboliu as notações sintáticas e as maiúsculas. Sabemos que as notações sintáticas são os sinais ou símbolos que auxiliam a compreensão do escrito, determinadas pelo sentido e pela necessidade de respirar, São os sinais de pontuação. O padre Ruas, salvo engano de minha parte, só conservou no poema o ponto e o ponto de interrogação.

Pergunto eu: não seria esse mais um recurso de linguagem usado pelo poeta para marcar a estrutura e a simbologia do seu texto?

Mas o poema de L. Ruas foi também estudado por intelectuais de gerações mais próximas, formados com a especialização dos estudos acadêmicos, servidos pelos suportes técnicos das ciências literárias contemporâneas, figurados nos ensaios de Tenório Telles e de Rogel Samuel enfeixados nesta coletânea, em análises orientadas pelo raciocínio, mas não isentas de sensibilidade. Diz o professor Tenório, no estudo introdutório à segunda edição do poema:

Ao analisarmos a estrutura, percebemos se tratar de um roteiro de iniciação aos mistérios insondáveis da existência. Expressão de suas preocupações místicas, o livro reproduz simbolicamente o itinerário do Cristo na terra, a promessa de redenção do mundo; a busca do homem, um palhaço no palco da vida, à procura de sua verdadeira face, sua tentativa de reencontro com o divino […].

O professor Rogel Samuel explica o sentido do poema:

O mito que nasce da descoberta é o de Narciso. E o de Eros e Psiquê. A descoberta do clown é a descoberta de si. O ver-se no espelho da face do outro levanta desde logo a questão reflexa do igual, que se recolhe no lago. […] o seu corpo de barro, seu corpo de estrelas, entre o céu e o chão se fundem no alegre riso e triste pranto. O tempo é de metamorfose no lago da lua, tempo mítico do luar.

Encerrando o opúsculo vem o texto de Jorge Tufic, poeta da mesma geração de Ruas e que com ele conviveu nas tertúlias do Clube da Madrugada. Diz o poeta de Menina de olhos verdes:

O clown de Ruas é o ator ou o dançarino do universo que ele consegue libertar das amarras sociais e dos preconceitos irremovíveis, um corpo astral de silêncios e coisas que se transformam, ao menor toque de um bastão luminoso. Basta dizer que até hoje ninguém soube interpretá-lo, seja como texto, seja como fosse a partitura volátil de uma confissão transbordante, plena de movimentos em busca de uma unidade de sons e palavras, afinal conquistada.

A intenção de Roberto Mendonça foi atendida. Mostrou que o poema Aparição do clown de L. Ruas ao ser visto de vários ângulos afunilou o olhar na síntese de uma única imagem. A imagem do poeta que por fim é o motivo do seu próprio canto, à maneira de um pensador da poesia que constatara de que a musa do poeta é o próprio poeta. O poema é como se fosse um diálogo insistente estabelecido com ele próprio. O mais é o surto do processo criador que a obra de arte propicia. Lembra-me de uma lição que me repassara o amigo Ruas, em nossas andanças pelas noites de Manaus. Como falávamos de Charles Chaplin e Arthur Rimbaud, concluiu ele com seu jeito de ser claro e simples: Chaplin e Rimbaud eram gênios e um gênio não se analisa, sobre um gênio se cria.

Ele estava coberto de razão.

Sobre Aparição do clown se cria.

Manaus, Chácara Lili, 22 de setembro de 2009.

Continua na próxima edição…

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