*Francisco Calheiros
Continuação…
Parte IV
Luzes e goteiras
As comemorações de Natal e Ano-Novo passaram como as anteriores. Sem nenhuma novidade. Comércio e lucro. A terra estava adubada. O primeiro dia de expediente do novo prefeito foi de visita ao mercado central e a algumas escolas da Zona Leste. A situação era triste. O patrimônio público lembrava as áreas destruídas por terremotos. Tudo exigia ações no mais curto espaço de tempo possível. Uma multidão se aglomerou à porta da prefeitura tentando uma vaga no quadro funcional do município. Um cartaz foi afixado em quase todas as repartições: emprego só por concurso.
Nesse interim, uma comissão da OAB, secção do Amazonas, visita o presídio e acena com a possibilidade de acompanhar mais de perto a situação de presos à espera de julgamento. Era apenas uma possibilidade. Como diz o povo, antes tarde do que nunca. O problema é que eu seria um dos últimos da fila. Cheguei bem depois, apesar de já estar ali havia mais de um ano.
A minha passagem pelo setor de emergência do Hospital 28 de Agosto foi melancólica. O médico precisava escolher entre um pai de família e um presidiário. O ex-aluno cometeu um erro: eu não merecia aquele privilégio. Reconheci Juarez. Era o melhor da sua turma no Colégio Padre Pedro Gislandy. Só não gostava de Literatura; interessava-se, todavia, pela Língua Portuguesa e tinha uma boa redação. Mas ele errou em ter-me escolhido. Eu não poderia ter tido nenhum privilégio na chamada fila da morte. Os tiros que levei foram uma tentativa de queima de arquivo. O colete usado por mim foi um presente do promotor Francisco:
– Use sempre que possível – disse-me em uma de nossas últimas conversas. Você contraria muitos interesses, e o sistema prisional brasileiro não ressocializa nem dá segurança. O máximo que faz é preservar para a morte. Isso mesmo. Em alto e bom som: preservar para a morte. E quando o faz.
E foi assim que naquele sábado eu me preparei todo para a visita de Carol. Usei a única calça que ainda tinha alguma utilidade. Fiz a barba. Usei um resto de desodorante. E, para parecer mais atlético, resolvi usar o até então inutilizável presente. A fila de visita ocupava todo o quarteirão paralelo ao presídio. Eram homens e mulheres, mães e esposas, filhos e adjacentes, que, no sétimo dia, estavam ali, como de costumes, com as mais diversas intenções, de simples visita à entrega de armas e drogas.
“Ela não pôde vir”, foram as palavras de um homem entre as grades da cela. Logo a seguir
disparos rompeu o silêncio daquele afastado quarteirão. Se não fosse o presente do promotor Francisco, seria um homem morto. Dos cinco tiros, os letais foram de encontro ao colete. Três se alojaram, digamos assim, em partes recuperáveis do corpo, exceto o que atingiu minha cabeça de raspão. Era um homem baixo, de sotaque italiano, com a barba por fazer. Em frações de segundos, ele sumiu pelo corredor à esquerda, enquanto os guardas de plantão se aproximavam. Lembro-me de poucas coisas. Acordei na sala de emergência daquele pronto-socorro, aonde cheguei como um detento que esperava a condenação. Aos prantos, Carol exortava os médicos a que me atendessem. O ex-aluno, repito, errou em me tirar do corredor da morte. Mas era quase impossível não atender as súplicas daquela mulher. Na ala da enfermaria, ali, a dois metros do meu leito, um policial armado fazia minha segurança. Foi-me uma grande vergonha sair dali algemado e escoltado por uma viatura da polícia militar.
No momento em que ia sendo jogado para camburão, pude ver a distância a professora Ofélia e Carol parecia mãe e filhas. Juntas, abraçadas, Carol em pranto. Um homem cuja fisionomia não me era estranha estava dentro um carro estacionado. Vi quando o sujeito saiu do veículo e aproximou-se das duas. Abraçou Carol de forma paternal. Custou-me lembrar quem era aquele homem, mas o que um promotor fazia ali, acompanhado de mais dois homens, na porta de um pronto-socorro, esperando um detento voltar ao presidio? Tínhamos quase a mesma altura, uma aparente fisionomia. Ele, no entanto, era um pouco mais obeso, quero dizer, um pouco mais gordinho do que eu.
No final da Rua Recife, um caminhão velho e sem placa atravessa na frente da viatura. O impacto foi suficiente para jogar o pequeno veículo contra a sarjeta. Aproveitando-se de estado de choque em que se encontravam os agentes, alguns homens arrombam com uma barra de ferro o porta-malas da viatura, retiram-me de lá e colocam-me dentro de um corcel também sem placa. Acompanha-os o motorista do caminhão.
Sentia-me, minha filha, personagem de um daqueles repetidos filmes norte-americanos. O velho corcel pega a Estrada da Ponta Negra, cruza o Lírio do Vale, E ali pelas proximidades do Campo do Buracão, e segue rumo ao Santa Etelvina. Era alta hora da madrugada. Passamos por bares e cenas de banditismo. Era naquele cenário em que se fundamentavam as estatísticas do dia seguinte do Instituto Médico Legal. O portão de madeira do velho barraco abriu se para nós. Fomos guiados por uma senhora a um quartinho em um terreno depois da cerca. Parecia um depósito. O que havia de humildade, existia de limpeza. Tudo preparado previamente. Sangrava muito. O olhar cansado, meio fundo com secreções saindo pela boca. O meu estado era mesma deplorável; pude ver, vagamente, um vaso de flores sobre a mesa, um bloco de rascunho e livros de poesia de Pablo Neruda e Ferreira Gullar. Aquela senhora, minha filha, ara Irmã Helena, famosa líder das invasões de terra em Manaus, uma mulher odiada pela especulação imobiliária e constantemente ameaçada de morte. O certificado de conclusão do supletivo, ao lado do vaso de flores, era de tua mãe. Os enjoos começavam a deformar os contornos de um belo corpo que tantas vezes me alimentou, ainda que de mau jeito em uma cela de prisão, ainda que em circunstâncias desfavoráveis para dois amantes.
O novo prefeito estava tendo muito trabalho para executar um plano de obras e atender as inúmeras reivindicações. O povo estava com razão. Era preciso exigir. Era preciso fazer valer seus direitos. O Estado, somente para lembrar mais uma vez Carlos Heitor Cony, existe para promover o bem-estar social. Isso impôs ao prefeito mudar o velho hábito de seus antecessores: governar dentro de um gabinete. Às cinco da manhã, quando os primeiros coletivos passavam a circular pela cidade, ele já era visto pelos canteiros de obras. Numa de suas andanças, quebrou o braço ao cair em uma vala de um igarapé. O primeiro grande feito foi aprovar na Câmara Municipal o Plano de Cargos e Salários do Magistério, ainda que com o voto contrário de muitos vereadores. Os professores passaram a se orgulhar da profissão. Até hoje os profissionais da educação nunca mais receberam um salário como aquele. Entra e sai prefeito e a miséria continua, o desestímulo aumenta, a descrença na profissão que escolhi cresce cada vez mais. O meu sonho é que tu sejas médica, conquanto tenhas que tirar plantões e deixar meus futuros netos aos cuidados de uma babá.
Estava sendo muito difícil reconstruir uma cidade que levou anos sendo destruída. As insatisfações populares cresciam todos os dias. A Zona Leste pedia água, o centro da cidade clamava por segurança, a Zona Norte parecia não pertencer ao País. A vontade de acertar era muita. Os erros, por sua vez, também se sucediam. Na ausência do prefeito, o vice, o advogado com cara de rato, recebeu uma passeata de estudantes com uma tropa de choque da Polícia Militar. A moçada não queria nada em demasia: apenas que a linha de integração que fazia o percurso nos limites do campus universitário se estendesse até a Bola do Coroado. O interino não quis conversar e mandou, como se diz vulgarmente, largar o cacetete em estudantes portando bandeiras de partidos políticos. Eram estrelas e foices sendo levadas pelo vento. Ainda me custa aceitar a ideia de que o poder corrompe a personalidade. O Secretário Municipal de Meio Ambiente exonerou-se por não aceitar uma ordem superior: retirar algumas árvores de oitizeiros da Getúlio Vargas, esquina com a Sete de Setembro, para a construção de uma passarela. Muitas ações passaram a ser repudiadas pela população.
Fui vítima de um atentado. Aquele sujeito com sotaque italiano entrou naquele sistema carcerário para me tirar a vida. Fui salvo pelo presente do promotor. Era um arquivo vivo. Até aquele presente momento, tinha ficado na defensiva. Foram fugas. Foram ameaças. Foram incêndios. E até mortes. Sempre pensei em vingar o meu irmão. Mas como? As normas de uma organização criminosa não podem ser desrespeitadas. Quem o faz paga com a própria vida. Agora, no entanto, precisava de partir para o ataque. Aquela era a grande oportunidade. O olhar de tua mãe sempre foi de proteção. Tu crescerás longe de mim. Aquele vestidinho cor-de-rosa com bordados será uma joia vestindo um tesouro. Serás fotogênica. Terás por esses motivos uma tendência para modelo. Já imagino, entretanto, tu em um consultório médico, vestida de branco, com um telescópio pendurado no pescoço. Se um dia puder, chamar-te-ei de Teteia.
Com a recuperação dos heróis fabricados pelo cinema, acordei-me disposto. Lia Neruda e divagava sobre Gular. O vaso de flores, o certificado, um copo de Nescau, desta vez com açúcar, tudo fazia parte da minha paisagem. Uma atitude não me saía da cabeça: precisava de ser o tiro. Destarte estava decidido a não ser mais o alvo. Era uma noite de sábado quando as visitas se sucederam: Juarez apareceu com uma enfermeira do hospital e trouxe consigo alguns medicamentos. Não era só enfermeira, pelo que pude observar. Para meu espanto, fiquei sabendo que Elizabete era prima de Carol. Conheci finalmente a pessoa que tanto influenciou tua mãe a concluir o supletivo e a cursar uma faculdade. Sempre achei as mulheres vestidas de branco algo meio divino, verdadeiras ninfas do Tejo ou de alguma ribanceira de rio.
As revelações me deixaram meio abatido. Nunca podia imaginar uma coisa daquela: ser irmão do promotor Francisco. Mas era. E ele sempre soube, acompanhou de longe minha luta sindical, a nossa tentativa de livrar o sindicato dos professores das mãos de alguns partidos políticos que usavam a categoria para eleger pessoas do seu conluio. Mas era. E, aos poucos, as coisas foram-se encaixando. Certa vez recebi um livro que falava em mudar de profissão. Só li a capa. Nunca abri sequer em outras páginas. Nas proximidades do Natal, e isso há mais de cinco anos, recebi um vade-mécum. Por alguns dias fiquei encucado com aquele presente.
Falou-me do nosso pai, do serviço escravo naquela olaria e revelou muito pouco sobre sua mãe. Era uma professora da capital. Foi fruto de um relacionamento extraconjugal com Maria do Rosário. Hoje aposentada vivendo em uma casa nas proximidades da balsa do São Raimundo. Suas viagens à capital eram constantes e foi nesse intervalo de tempo que o teu tio foi concebido. Casou-se também com uma professora que morreu de derrame cerebral assistindo à medíocre programação da televisão brasileira das tardes de domingo. Os meus amigos do Bar da Francisca também não deixaram de aparecer. Quase todos me fizeram uma visita. O Fernando era uma espécie de líder. Foi dele a ideia do caminhão velho atravessado na frente da viatura. Foi, entretanto, de Gonzales, o filósofo, o traçado de todo o ritual. Marcos Pontes não mudou seu jeito engraçado de ser e ainda me deu de presente uma fita pirata sobre a última novidade do cinema. O certo é que estavam ali com um sentimento de vingança. Formariam, disse Fernando, um pequeno exército para reagir às ofensivas daquela organização, que, pelo que se via, tinha o claro propósito de riscar do mapa todos aqueles que desobedeceram às ordens. E parece que eu era o primeiro de uma extensa lista. O promotor ouvia tudo calado, meio pensativo, como se quisesse falar alguma coisa.
– Ainda estou na ativa – confessou-nos. O anúncio de sua aposentadoria, nesse caso, não por idade, uma vez que tínhamos quase a mesma idade, sendo eu um pouco mais velho, por uma invalidez orquestrada, foi uma orientação da Polícia Federal para confundir a infiltração da máfia nos vários setores da administração pública. O Ministério Público aliou-se à PF para deflagrarem uma forte reação àquela organização criminosa. O Tribunal de Justiça do Estado estava sob suspeição. A Assembleia Legislativa do Estado recusava-se a abrir um processo de impedimento do governador, que, de forma bizarra, usava a máquina pública para estampar sua cara nos veículos de comunicação; enfim, os setores da administração pública estavam corroídos. Uma intervenção federal estava sendo apontada como a saída para os caoses em que o Estado havia se transformado. O grupo político, ainda não totalmente recuperado da reprovação popular, já traçava alianças para as eleições gerais, quando o País, depois de um estado de exceção, preparava-se para eleger novamente o seu Presidente da República. Um metalúrgico apresentava-se como candidato das esquerdas. Sua barba por fazer, anunciava uma caravana pelo País. Talvez conhecendo mais de perto a realidade, pudesse apresentar um programa de governo que fosse ao encontro das reais necessidades do povo brasileiro. Os jornais falavam de um jovem político do Estado de Alagoas, com pinta de galã de cinema, uma mistura de Francisco Cuoco e Tarcísio Meira. Moral da história: os grupos políticos estavam muito mais interessados em perpetuar-se no poder do que resolver de verdade a situação de miséria em que se encontrava a população. O interior do Estado entregue às baratas, cidades administradas por políticos conservadores, transformando os municípios em feudos, humilhando agricultores e expulsando quem se opusesse ao seu regime. Mas isso ainda seria coisa a ser registrada pela história.
Eles falavam do presente. O promotor Francisco (nunca me acostumei a chamá-lo de irmão) ouvia tudo calado, calado e pensativo. O seu silêncio era algo que incomodava. Tinha uma carreira brilhante; não podia, então, envolver-se em nenhuma milícia. Fez apenas algumas perguntas, anotou alguns dados, pediu licença e saiu. No portão, foi interpelado pelo irmão do finado Ernandes. Paulo queria de alguma forma ajudar e com essa disposição poder vingar a morte de Galalau. Passou ao promotor alguns papéis e conversaram por alguns minutos. Por último, um aperto de mão. Já era alta hora da noite quando Fernando, Marcos Pontes e Gonzales saíram no velho corcel. Paulo seguiu junto. O destino só fiquei sabendo no dia da minha sentença. Ao contrário do que sempre imaginei, a Vara Criminal estava praticamente vazia. O juiz fumava que nem um desesperado e ainda tirava gracinha com os fumantes passivos sob sua jurisdição. Carol chorava que nem uma criança. O magistrado era decano. Uma vez sonhei com a minha absolvição. Mas conforme já disse, foi só um sonho.
Continua na próxima edição…
*Francisco Soares Calheiros (1968-2020) foi um poeta e servidor público de Itacoatiara, Amazonas, conhecido por sua dedicação à educação e ao próximo. Nascido em uma família humilde, mudou-se para Manaus na adolescência, onde enfrentou dificuldades financeiras, chegando a dormir debaixo de uma ponte. Trabalhou em diversos “bicos” até conseguir ingressar na universidade. Inicialmente, sonhava em cursar Medicina, mas optou por Letras, influenciado pelo poeta Thiago de Mello. Calheiros foi um dos fundadores do Fecani-Festival da Canção de Itacoatiara e atuou como jurado no concurso de poesia do festival. Foi servidor público e dedicou-se a melhorar a educação, muitas vezes usando recursos próprios para reformas e compra de livros. Publicou três livros e deixou seis manuscritos prontos para publicação. Na área do Direito, destacou-se por conseguir o medicamento Zolgensma para pacientes com Atrofia Muscular Espinhal (AME) no Amazonas. Infelizmente, faleceu antes de ver a pequena Isadora, por quem lutou, receber o tratamento.
Fundou a Academia Itacoatiarense de Letras em 2009, Ele e sua esposa, Olívia, realizavam “viradões” de estudos para ajudar alunos de Itacoatiara a se prepararem para vestibulares, trabalho que ele fazia voluntariamente. Sua vida foi marcada por um profundo compromisso com a educação e a cultura, sempre buscando ajudar os mais necessitados e contribuir para o desenvolvimento de sua comunidade.
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