O contexto das disputas diplomáticas na segunda metade do século XIX, foram tensionadas pela sanha do comércio de escravos em diferentes lugares do mundo sob o manto da coroa britânica. Ante a esse contexto a Legação Britânica (representação diplomática) instalada no Rio de Janeiro fora informada por documentos emitidos pelas autoridades portuguesas em Luanda, em 20 de setembro de 1855, de que um palhabote (navio de dois mastros) de origem portuguesa saído da foz do rio Zaire, com um carregamento total de 250 africanos destinava-se ao litoral brasileiro, devendo realizar o seu desembarque entre o litoral de Campos e a Bahia, sendo sua previsão de chegada em torno dos dias 15 e 20 de outubro ( VEIGA, 1975).
Notificado o governo imperial expediu ordens a suas forças marítimas para que mantivessem um rigoroso cruzeiro naquela região. Embora a estratégia empreendida pela Marinha, no dia 11 de outubro de 1855 chega a Serinhaém (PE) um palhabote (navio de dois mastros) com 250 escravos proveniente de Angola. No dia seguinte o capitão da embarcação Augusto Cesar de Mesquita dirigiu-se até a residência do coronel Gaspar de Menezes Vasconcelos de Drumond próximo ao engenho Trapiche, pensando que lá era a propriedade do coronel João Manoel de Barros Wanderley. Quando o coronel Menezes abriu a porta, o capitão Mesquita informou-lhe que trazia de Angola a sua consignação – um carregamento de africanos. Após trocarem algumas palavras o capitão do navio ao perceber o engano que cometera, ficou a princípio trêmulo e aterrorizado, temor esse que passou horas depois, já que ele passara a noite na casa do coronel Menezes. No dia seguinte, logo cedo ao amanhecer, o capitão Mesquita fugira (FERNANDES, 2010).
No momento da apreensão do palhabote, que foi feita pelo comandante do destacamento do rio Formoso (não se sabe se foi em 12 ou 13 de outubro de 1855), estavam a bordo cento e sessenta e dois africanos, faltavam 88 deles. O capitão do navio Augusto César de Mesquita, o copeiro, o moço da câmara e alguns homens que faziam parte da tribulação já não se encontravam no navio quando a apreensão foi feita. Os escravos foram transferidos para a capital pernambucana no dia 24 de outubro, na corveta Itamaracá, pelo alferes Antônio Muniz Tavares. Quando chegaram ao Recife foram classificados com a nova denominação de: africanos livres e remetidos aos depósitos do Arsenal de Marinha e de Guerra e ao Colégio de Órfãos. Existiam nos Arsenais as Escolas de Aprendizes, que eram administradas pelo poder público. Os africanos livres iniciaram como aprendizes no Arsenal de Marinha, em profissões como: servente, marceneiro, ferreiro, pedreiro, cozinheiro, serrador, malhador, serralheiro, caldeiro entre outras (FERNANDES, 2010).
Os africanos livres apreendidos em Serinhaém e posteriormente transferidos para Recife, permaneceram nesta cidade até 1857. Neste mesmo ano um grupo de 50 destes divididos entre os de Serinhaém e os de outra apreensão ocorrida em São Mateus (ES) no ano de 1856, foram enviados à Amazônia para trabalharem na Colônia Agroindustrial Itacoatiara. Empreendimento ligado a Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas – CNCA administrada por Irineu Evangelista de Souza (Barão de Mauá), em
Itacoatiara na qual existia uma olaria, uma serraria, um estaleiro e uma grande área de terra onde praticava-se agricultura extensiva com plantações de café, mandioca, milho, cacau, manga entre outras culturas. O território da Colônia, estendia-se até as margens do Lago de Serpa.
Fala à Assembleia Legislativa Provincial (1857).
FONTE: Amazonas, (1857).
Dos 50 saídos dos Estados de Pernambuco e Espirito Santo, apenas 36 chegaram em Itacoatiara e foram remetidos para a Colônia Agroindustrial (provavelmente início de 1857) os quais trabalharam por vários anos em diversas atividades como: pedreiro, capina, servente, marcenaria, agricultura, e como serrador, calafate e oleiro. Dos que vieram para Itacoatiara, a grande maioria era homem, entre os 21 e 48 anos, as duas únicas mulheres eram lavadeiras. O comportamento deles era classificado como “mau” ou “péssimo”, além de serem considerados como “turbulentos e dados ao vício de embriaguez”. Eles foram confiados a Colônia para cumprir seu tempo de serviço enquanto aguardavam sua emancipação. Em 1860 a Colônia entrou em insolvência e foi vendida em leilão público. Suas instalações foram adquiridas pelos judeus de ascendência marroquina Marcos e Moises Ezagui que deram continuidade as atividades da Cia. ((BRITO, 2018, OLIVEIRA, 2019)
Escravos livres emancipados trabalhando na serraria da Colônia Agroindustrial Itacoatiara (1910).
FONTE: BITTENCOURT, Antônio Clemente Ribeiro.1910, p. 334.
Após a transferência da Colônia para a iniciativa privada, alguns escravos livres continuaram trabalhando nas suas instalações por muitos anos, sobretudo no estaleiro, serraria e olaria. Porém, o dinamismo econômico da Cia. declinou sobremaneira a ponto de parte dos escravos livres serem desligados em definitivo dos seus serviços e, sem outras alternativas buscaram refúgio no Lago de Serpa. O conhecimento do Serpa era notório, pois a sua ictiofauna abundante possibilitava fartura, e além disso, das suas matas colhia-se lenha para o abastecimento dos navios em reparo no estaleiro da Cia. No momento em que iam sendo dispensado do trabalho na Colônia retiravam-se para o Serpa em busca de sobrevivência, pois no espaço da cidade só se tinha acesso à terra por meio de compra. Sem serem assalariados o Lago ainda distante da cidade era a possibilidade de dias melhores.
O ajuntamento de negros nas margens do Lago possibilitou a construção do Quilombo de Sagrado Coração do Lago de Serpa (pretos carvoeiros do Lago de Serpa). Essa hipótese se transformou em tese, quando houve o cruzamento da relação dos nomes dos escravos livres apreendidos no palhabote em Serinhaém (PE), com os nomes dos escravos livres residentes em Itacoatiara. A lista contendo os nomes dos 361 não foi encontrado até o presente momento. Entretanto, comparando os 179 nomes do Arsenal de Marinha do Recife com a relação de africanos livres do ano de 1857 residentes em Itacoatiara, foi possível identificar 07 nomes (FERNANDES, 2010).
A prova material desse achado está registrada no acervo da Cúria Prelatícia de Itacoatiara. No ano de 1857 foram batizados na Matriz de Nossa Senhora do Rosário pelo Pe. Francisco de Paula Cavalcanti Albuquerque os escravos livres: Paulo, Bernardo, Estevão, Rodolfo, Jeremias, Filizardo e Augusto. Todos apenas com o primeiro nome, sem referência de sobrenome. Mas, será que tudo isso não passa de uma grande coincidência? Dificilmente. Para ano de 1857 em Itacoatiara a classificação de escravos considerados livres era muito raro, e pode-se dizer que até mesmo na recém criada Província do Amazonas (CÚRIA PRELATÍCIA, 1857; POZZA NETO, 2011).
Certidão de batismo do africano livre Paulo de junho de 1857
Fonte: Acervo da Cúria Prelatícia de Itacoatiara (1857)
Além da relação de nomes impresso na certidão de batismo, muito embora o largo espaço de tempo decorrido (1857), podemos concluir que no Território do Quilombo de Serpa aparecem nomes de famílias como: Lourenço, Cesário, Leal, Macedo e Melo. Alguns destes idênticos à relação de nomes do Recife, tais como: Lourenço e Cesário. Ademais a família de negros mais numerosa do Quilombo de Serpa são os Sabino. Na relação do Recife existem 02 Sabino. Mas é praticamente impossível descobrir qual dos dois Sabino buscaram refúgio nas terras do Serpa. Atualmente, João Sabino (Chapéu de Couro) é um exímio pedreiro de profissão. Mas, era na música que sempre destacava-se como na execução do cavaquinho, além dele, Francisco Sabino (Chicão) de sorriso largo tocava no maracá. Por décadas animaram tocando e cantando nos encontros, iniciavam da alvorada às noites alegres dos arraiás para os devotos de Sagrado Coração de Jesus, bem como, durante o trajeto do andor na procissão fluvial de Nossa Senhora Aparecida.
Além dos Sabino, Lourenço Melo no violão e o Ernando Macedo no pandeiro formavam um conjunto musical fazendo apresentações em aniversários, festas religiosas e profanas. Lourivalda Macedo do Nascimento, era considerada uma lenda pelos quilombolas, pois dedicava-se como parteira. Das suas mãos veio à luz mais de 100 crianças, fazia o trabalho gratuitamente de casa em casa no Lago e terra firme. São muitos os depoimentos de pessoas simples, mas, guerreiras no seu dia a dia. Personagens na história de vida desse Quilombo que vai sendo recriada por gerações de negros e negras sempre com muita esperança e fé.
Apesar de toda essa trajetória dos antecedentes de quilombolas do Lago de Serpa discorrida até aqui, muitas perguntas ainda estão sem respostas. Por exemplo: Qual o nome dos 36 escravos livres que chegaram a Itacoatiara? E quantos vieram de Pernambuco e do Espírito Santo? Em qual ano os pioneiros refugiaram-se no Lago? Que relações mantinham com a população da cidade? Quantos permaneceram trabalhando na Colônia, mesmo após um grupo refugiar-se no Serpa? São muitas as incógnitas ainda sem respostas. Entretanto, essas dúvidas que ainda pairam sobre nossas cabeça, vão sendo respondidas a partir do aprofundamento de pesquisas e estudos sobre um dos Quilombos mais bem documentados da Amazônia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMAZONAS. Fala dirigida à Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas em o 1.o de Outubro de 1857, pelo Presidente da Província Ângelo Thomaz do Amaral, Rio de Janeiro, Typ. Universal Laemmert, 1858.
CÚRIA PRELATÍCIA DE ITACOATIARA. Certidão de batismo de africanos livres para o ano de 1857.
BRITO, Roberta Kelly Lima de. Vapores de Mauá: A Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas (1852-1871). 2018. 183 f. Dissertação (Mestradado em História) – Universidade Federal do Amazonas, Manaus: 2018.
FERNANDES, Cyra Luciana Ribeiro de Oliveira. Os africanos livres em Pernambuco: 1831- 1864. 2010. 121 f. Dissertação (mestrado em História). Universidade Federal de Pernambuco – CFCH, Recife, 2010.
POZZA NETO, Provino. Ave libertas: ações emancipacionistas no Amazonas Imperial. 2011. 166 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2011.
OLIVEIRA, Claudemilson Nonato Santos de. A kipá e o cocar: a rede intercomunitária judaica na estruturação urbana de Itacoatiara. 2019. 213 f. Tese (Doutorado em Sociedade e Cultura na Amazônia) – Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2019.
VEIGA, Glauco. O desembarque de Serinhaém.. Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. Vol. XLVII. Recife, 1975.
Nota de Rodapé
1 Dois escravos livres dos 36 embarcados para Itacoatiara faleceram na viagem (AMAZONAS, 1857)
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