
*Vinícius Alves da Rosa
Um estudo da comunidade do barranco de são benedito, em Manaus, e do sagrado coração de jesus do lago do Serpa, em Itacoatiara – Am
4 ETNOGRAFANDO OS QUILOMBOS RURAL E URBANO: A VIDA RELIGIOSA E OUTROS ASPECTOS DO COTIDIANO
Este capítulo tem por propósito descrever as narrativas quanto à vivência religiosa tanto no Quilombo de Manaus quanto no Quilombo de Itacoatiara. No bojo desta etnografia analítica resultante das pesquisas de campo, descreverei as festas, os ritos, os gestos, os sentimentos, ou seja, a efervescência religiosa entre outros aspectos ocorridos no cotidiano de tais territórios quilombolas rural e urbano, respectivamente, localizados no Estado do Amazonas.
Foi etnografado, como método da pesquisa qualitativa, também as expressões culturais das novas etnias presentes nos quilombos supracitados. Para além de intencionalmente romper com a usual lógica classificatória acerca do urbano-rural-urbano, o que não é um dualismo geográfico, mas sim conceitual. A pretensão foi refletir consoante os dados construídos na execução da pesquisa, analisando-os etnograficamente sob o ponto de vista da realidade dos dois quilombos enfocados.
Em ambas as unidades sociais, estabeleceram-se contatos no decorrer dos anos. Em primeiro lugar, no caso específico do quilombo urbano que se deu ao longo do biênio 2016-2018, por ocasião da realização de meu mestrado, a posteriori, e de 2020 a 2024 registram-se diversas situações de pesquisa realizadas nos respectivos territórios quilombolas. Trata-se de dados coletados tanto do ponto de vista da religiosidade quanto dos conflitos agrários, temas estes articulados como um construto das vivências de situações objetivamente materializadas no cotidiano rural e urbano dos quilombos investigados.
Conforme fora discutido em capítulos anteriores, reitera-se, destacar esses marcos simbólicos, já devidamente interpretados com o rigor acadêmico, levando-se em conta a observação direta e sistemática. Portanto, numa relação dialógica entre o campo e a produção científica, ambos assentados nas análises críticas e suas relações com as fontes primárias das pesquisas. Neste aspecto, para o aprofundamento da análise discursiva, entram em cena os referenciais teóricos sobre os construtos epistemológicos de raízes quilombolas, devidamente situados. Isto faz referência tanto na área das Ciências da Religião quanto naquelas questões das vivências referidas ao cotidiano, seja da vida privada ou de situações coletivas e culturalmente construídas.
Assim entendido, a exigência teórica flui como um dado exposto a partir de realidades advindas do cotidiano vivenciado na Amazônia brasileira e suas especificidades próprias dos contextos da cidade e do campo, conforme as reflexões científicas elaboradas a serem discutidas nas seções subsequentes.
4.1 Inserção no campo de pesquisa
A primeira incursão no território Quilombola Sagrado Coração de Jesus do Lago de Serpa, no município de Itacoatiara/AM, se deu em 28 de fevereiro de 2018, juntamente com a professora Dra. Maria Magela Mafra de Andrade Ranciaro, tarefa por ela realizada na condição de pesquisadora junto ao Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia – PNCSA.
Naquele momento, dedicava-me aos estudos e a escrita da dissertação, com vistas à conclusão do curso de mestrado pela Universidade do Estado do Amazonas-UEA. A visita fora solicitada pelos próprios quilombolas junto ao PNCSA54, onde sou colaborador, desenvolvendo atividades de pesquisas acadêmicas voltadas para a investigação dos quilombos na região da Amazônia.
A viagem de Manaus a Itacoatiara, ensejava dirimir as dúvidas sobre a realização de uma Oficina de Mapas e do curso de GPS (Sistema de Posicionamento Global), ambos a serem realizados na comunidade, dada a importância e discernimento de técnicas elementares para capacitação dos agentes sociais. A propósito, as lutas do movimento organizativo centravam-se em reivindicações perante o INCRA e ao Ministério Público Federal – MPF, quanto à titulação fundiária do território quilombola.
Os contatos posteriores com os quilombolas itacoatiarenses sucederam-se em 23/02/2019, em virtude de uma reunião realizada na cidade de Manaus, no quilombo urbano do Barranco de São Benedito, no bairro Praça 14 de Janeiro. Após esses momentos, outras oportunidades de diálogo com os quilombolas do Lago do Serpa ocorreram durante as atividades da Oficina denominada “Fortalecimento Institucional e Coletivo”, naquele momento organizada pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – CONAQ, em Manaus, no período de 06 e 07 de julho de 2019.
Em Itacoatiara – AM, para adentrar o território étnico com o propósito de realizar a pesquisa para a qual este estudo se volta, a interlocução foi possível mediante o apoio do professor Dr. Claudemilson Nonato de Oliveira, quilombola e pesquisador de temas relacionados à história e cotidianidade do quilombo do Serpa. Naquela ocasião, em 19 de agosto de 2020, a referida visita aconteceu na residência do Sr. Raimundo João Rolin Leal, Secretário da Associação Comunitária Quilombola do Sagrado Coração de Jesus do Lago de Serpa.
Nas relações estabelecidas, os quilombolas da comunidade rural foram por mim informados sobre o propósito desse encontro, bem como tomaram ciência a respeito do início da pesquisa a ser desenvolvida em nível de doutorado, num prazo correspondente ao período de agosto de 2020 a julho de 2024. Trata-se das ações demandadas pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo – UMESP. Naquela oportunidade, estabeleceram-se laços de confiança e, cordialmente, com a devida receptividade, com os membros do quilombo do Lago do Serpa, que compartilharam informações preliminares acerca da história da comunidade quilombola de Itacoatiara.
Vale ressaltar que durante o estudo os sujeitos da pesquisa afirmaram a importância das universidades em desenvolver pesquisas que proporcionem maior visibilidade ao quilombo. As pessoas com as quais conversei integram 140 (cento e quarenta) famílias moradoras da comunidade Sagrado Coração de Jesus do Lago do Serpa, oficialmente as quais se autodefiniram como quilombolas. Dessa forma, foi possível estabelecer cordial relação com os presentes, fato da maior importância imprescindível para a realização de meu trabalho de campo e em cujo local registram-se 140 (cento e quarenta) famílias de remanescentes quilombolas, com relações sociais consolidadas entre si.
Em setembro de 2023, nos dias 20 a 23, estive in loco no Quilombo Sagrado Coração de Jesus, comunidade rural (em anexo, figura 21), época do ano em que os devotos da Padroeira dos quilombolas Nossa Senhora Aparecida navegam o Lago do Serpa, onde se localiza a comunidade supracitada -, cuja expressão de fé está envolvida pela intensa devoção, cuidado e energia.
Participei, no dia 22 de setembro, da procissão fluvial em devoção a este símbolo católico, cuja santa negra, conforme relatos descritos nos capítulos precedentes, trata-se de uma imagem que, submergindo as águas do Lago do Serpa, foi encontrada nas adjacências do quilombo. Essa narrativa é o marco de tal evento religioso, tradicionalmente coordenado pelas lideranças do quilombo. Na área do Lago do Serpa são realizadas anualmente três festas religiosas: a primeira em 07 de junho, procissão em devoção ao Santo Padroeiro Sagrado Coração de Jesus; a segunda em 22 de setembro, onde acontece a procissão fluvial em honra a Nossa Senhora Aparecida, a Padroeira dos quilombolas; e a terceira, a Padroeira Nossa Senhora Aparecida, imagem doada pelo já falecido, Manuel “Preto”, que fora curado de uma enfermidade
Retornei a esse campo de pesquisa para apreender as expressões de vivência a serem identificadas no território quilombola em Itacoatiara – AM. Sendo assim, de 26 a 28 de abril de 2024, foi possível realizar as entrevistas com as lideranças do Quilombo. Acessar as narrativas desses agentes sociais teve por perspectiva a construção de uma etnografia reflexiva acerca das relações de vivências no cotidiano rural.
Nessa data, observei a procissão em devoção ao Padroeiro Sagrado Coração de Jesus, da comunidade social Sagrado Coração de Jesus do Lago do Serpa, realizada em 07 de junho de 2024. De acordo com o Presidente da comunidade quilombola rural, o Senhor Ernando Soares de Macedo, o cortejo é realizado em terra firme, mais especificamente na comunidade do Lago do Serpa. Obedecendo-se, anualmente, à programação de três festas religiosas citadas acima.
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54 O Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA) tem como objetivo dar ensejo à autocartografia dos povos e comunidades tradicionais na Amazônia. Com o material produzido, tem-se não apenas um maior conhecimento sobre o processo de ocupação dessa região, mas sobretudo uma maior ênfase e um novo instrumento para o fortalecimento dos movimentos sociais que nela existem. Tais movimentos sociais consistem em manifestações de identidades coletivas, referidas a situações sociais peculiares e territorializadas. Estas territorialidades específicas, construídas socialmente pelos diversos agentes sociais, é que suportam as identidades coletivas objetivadas em movimentos sociais. Tais informações estão disponíveis In: Lima, Rosiane Pereira. Preservação digital e “divulgação” científica na Amazônia. Manaus: UFAM/Dissertação, 2017. Disponível em: http://tede.ufam.edu.br/handle/tede/6049. Acesso em: 06 out. 2022.
Continua na próxima edição…
*Vinícius Alves da Rosa é Quilombola do Morro Alto/RS, mestre, professor e teólogo, tem sua formação acadêmica pautada em uma sólida jornada de conhecimento. Sua expertise é ampliada por especializações em Metodologia do Ensino de Filosofia, em Ciências da Religião. Complementou sua trajetória com um Mestrado pelo Programa de Pós-Graduação e, por fim, obteve seu título de Doutor em Ciências da Religião pela (UMESP).
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