Manaus, 1 de julho de 2025

Sagrada e popular

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*Raquel Carneiro

Em versões para diferentes grupos e denominações, a Bíblia alimenta um mercado livreiro vigoroso e se expande em aplicativos e edições eletrônicas.

No princípio era o verbo, diz o Evangelho de São João. Mas o verbo estava em grego, hebraico e aramaico. Para chegarem às línguas modernas – entre elas, o português -, os textos sagrados que formam a Bíblia passaram por um sinuoso caminho de edições e traduções, que se estende pelos séculos e não se encerrou.

É, sobretudo, uma trajetória de expansão e popularização, que agora se consolida em novos meios eletrônicos: o livro sagrado conta com inúmeras versões on-line e até aplicativos como o YouVersion (veja o quadro na pág. 91), que conjugam o texto com funções de uma rede social No Brasil, no ano passado, pelo menos 9 milhões de novas Bíblias circularam, atendendo leitores cristãos das mais variadas denominações, nos mais variados formatos – de bolso, de estudo, para jovens, para mulheres, e por aí vai. Para os que buscam não apenas a sabedoria teológica e a inspiração religiosa, mas também acesso a uma das fontes primárias da literatura e da cultura universais, há nas livrarias uma nova e cuidadosa tradução dos quatro Evangelhos, a cargo do português Frederico Lourenço (leia a entrevista na pág. 92), professor da Universidade de Coimbra que está se dedicando a traduzir toda a Bíblia – trabalho especializado, que vem complementar e não competir com as traduções tradicionais adotadas pelas massas de fiéis. E, embora ligada sobretudo ao mundo judaico-cristão, a Bíblia tem alcance mundial: as Sociedades Bíblicas Unidas, organização que compila dados sobre a divulgação internacional do livro sagrado, contabilizam traduções integrais em 648 línguas, que alcançam mais de 5 bilhões de leitores. O número de habitantes do planeta que, por falarem dialetos minoritários, não contam sequer com traduções parciais do livro é estimado em apenas 250 milhões. O verbo, definitivamente, está entre nós.

A tradição atribui a personagens bíblicos a autoria de alguns dos livros sagrados: Moisés teria escrito a Torá, ou, como a chamam os cristãos, o Pentateuco, coleção dos cinco primeiros livros do Antigo Testamento; Davi teria composto os Salmos; discípulos de Jesus, a história do mestre tal como relatada nos Evangelhos. Essas atribuições, porém, são na melhor das hipóteses indefinidas. A Bíblia que hoje conhecemos é uma obra de incontáveis autores anônimos, que por séculos se manteve viva e pulsante pela divulgação oral e por meio de manuscritos. Foi o primeiro livro a ser impresso pela tipografia moderna do pioneiro alemão Johannes Gutenberg, em 1450, e desde então se consolidou como um produto de massa. No Brasil, é parte de uma vigorosa indústria de livros religiosos – segmento que, segundo o Sindicato Nacional dos Editores de Livros, representou 20% do mercado livreiro nacional no ano passado, atrás apenas dos títulos didáticos (48%). Para algumas editoras evangélicas, como a Mundo Cristão e a Thomas Nelson, a Bíblia traz entre 20% e 30% da receita anual. Na católica Ave-Maria, é responsável por 60% dos resultados. A Bíblia é tipicamente vendida (às vezes, distribuída) em igrejas e templos, e por isso não consta em listas de bestsellers computados em livrarias.

Entre formatos para atender fiéis de grupos bem específicos, há no mercado até a Bíblia do Motociclista e uma para os skatistas (as diferenças estão sobretudo na decoração da capa). No campo mais conservador, mas também com uma grande variedade de tamanhos, capas e cores, vigoram as chamadas Bíblias de Estudo – calhamaços com encadernação de luxo e profusas notas de rodapé, que custam em torno de 200 reais. Em geral, é a Bíblia que o fiel tem em casa, para leituras devocionais mais aprofundadas. Aplicativos bíblicos, muitos deles gratuitos, são mais funcionais para o uso na rua e na igreja.

A popularização do texto digital afetou, sobretudo, as edições em papel mais baratas e portáteis. E a crise bateu no mercado em geral. Dos cerca de 9 milhões de Bíblias que circularam no Brasil em 2016 – o que inclui a venda da obra física, e-books, down1oads de aplicativos e livros distribuídos em ações de evangelização -,6,7 milhões vieram da Sociedade Bíblica do Brasil (SBB), que atende a maior parte do público evangélico. Nos anos anteriores, os números eram mais robustos: 7,6 milhões de exemplares em 2015 e também em 2014. A queda de 900000 unidades doeu, mas não foi um grande abalo. Qualquer livro na casa dos milhões é um milagre no Brasil. Para fins de contraste: um dos maiores best-sellers recentes de livraria, Ágape, do padre Marcelo Rossi (não por acaso, um livro religioso), vendeu 10,3 milhões de exemplares – mas isso ao longo dos sete anos desde o seu lançamento.

Bem mais modesta foi a circulação de Novo Testamento – Os Quatro Evangelhos, o primeiro volume de livros bíblicos traduzidos por Frederico Lourenço: 6000 exemplares desde que a Companhia das Letras publicou a obra no Brasil, em abril. Trata-se de um esforço raro na língua portuguesa: uma tradução crítico-histórica, preocupada não com a doutrina teológica, mas com o rigor filológico, com a maior exatidão possível de cada termo traduzido. O projeto de Lourenço – um dos convidados da Festa Literária de Paraty, que começa no dia 26 – prevê a tradução completa da Bíblia na língua grega. Inclui-se aí todo o Novo Testamento, cujos 27 livros foram compostos originalmente em grego – e que serão completados ainda neste ano com o volume Apóstolos, Epistolas, Apocalipse. Há ainda outros sete livros do Antigo Testamento escritos em grego e aceitos apenas pela Igreja Católica: Tobias, Judite, Macabeus 1 e 2, Eclesiástico, Baruc e Sabedoria de Salomão. O restante do Antigo Testamento virá da chamada Septuaginta, tradução grega usada por judeus helenizados a partir do século III a.c. Quando finalizada, será a Bíblia mais completa em português com tradução direta de textos originais – boa parte das traduções hoje usadas pelos brasileiros passou antes pelo espanhol, francês ou latim. As introduções e notas do tradutor enriquecem o conhecimento do mundo bíblico e lançam luz sobre certos termos. Uma curiosidade: consagrou-se que a profissão de José e de Jesus foi de carpinteiro. A palavra grega téktôn, porém, significa construtor, e abrangia então uma série de atividades, da de pedreiro à de marceneiro. Tratava-se do que hoje é chamado popularmente de “faz-tudo”. Mais controverso é o episódio do evangelho de Mateus que alude aos “irmãos” de Jesus. No fim do século IV, São Jerônimo, autor da Vulgata – a tradução latina das Escrituras que por séculos foi a única autorizada pela Igreja Católica -, cravou a ideia de que a palavra grega seria vaga e assim poderia designar “primos”. Não, esclarece Lourenço na introdução, adelphoi significa apenas “irmãos”. O tema é especialmente delicado para a devoção católica à Virgem Maria: se Jesus tinha irmãos, sua mãe obviamente não se manteve sempre virgem.

Jerônimo ainda é lembrado por um tropeço pitoresco na sua tradução do Êxodo: diz que Moisés tinha “chifres” de luz sobre a cabeça ao descer do Monte Sinai com as tábuas da lei. A palavra hebraica para “chifres” também pode significar “raios”. No português atual, convencionou-se dizer que o rosto do patriarca hebreu resplandecia. Justiça seja feita ao santo autor da Vulgata: a tradução do Livro dos Livros é tarefa árdua pela extensão e pela complexidade. “A tradição pesa na tradução. Cada palavra é cheia de sentido não só a partir do original, mas das leituras que as pessoas fizeram ao longo da história”, diz Erni Seibert, diretor de comunicação e ação social da SBB.

Entre os católicos, a Bíblia mais popular e reputada é a Tradução Oficial da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. A SBB, evangélica, tem três versões populares: Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH), Almeida – Revista e Atualizada e Almeida – Revista e Corrigida. A NTLH é adotada por igrejas modernas, repletas de jovens, enquanto o tronco Almeida reina entre o público pentecostal e neopentecostal, como a gigantesca Assembleia de Deus. A tradução leva o nome de João Ferreira de Almeida, que, no século XVII, deixou a Igreja Católica, fugiu de Portugal e começou a primeira tradução do Novo Testamento para o português. Trabalhou primeiro a partir do espanhol; depois, tomou como base a versão em latim de Erasmo de Roterdã. Desde a primeira publicação do Novo Testamento de Almeida, em 1681, o texto vem sendo revisado e atualizado. ”A língua muda. E a mudança faz com que o texto precise ser revisitado. Não é que um está errado e outro certo. O caso é que uma tradução atende uma geração, mas não atende outra”, diz Seibert. Embora Almeida não tenha conseguido traduzir todas as escrituras, a Bíblia que leva o seu nome é a tradução mais “clássica” que se conhece na língua de Camões.

Além da variedade de traduções em português, o Brasil conta com versões em algumas das línguas nativas, disponíveis até no app YouVersion. É uma iniciativa atacada por certos antropólogos e indigenistas, que julgam o trabalho missionário uma forma de impor aos índios uma cultura alheia. O esforço dos tradutores, porém, abarca o entendimento de sutilezas conceituais das línguas indígenas. “Quanto mais distante dois povos são, mais desafiadora a tarefa da tradução”, diz Martin Ka’egso Hery, missionário de origem alemã que participou da Bíblia em caingangue, língua da tribo indígena que leva o mesmo nome. Os conceitos linguísticos do grupo, expressivo no sul do país, foram decisivos em uma mudança relevante. O título “Antigo Testamento” foi adaptado para uma frase que, em português, seria algo como “O primeiro falar de Deus conosco”. “A palavra ‘antigo’ para o caingangue remete a algo usado, sem utilidade. Portanto, .seria um exercício nada fácil para o grupo ter um livro novo, com uma mensagem atualíssima para os dias de hoje, mas com o título ‘A Palavra Velha de Deus”’, diz Ka’egso, alcunha indígena adotada pelo missionário. Segundo a SBB, incentivadora de traduções indígenas, dos mais de 180 dialetos falados em tribos rio país, 39 contam com o Novo Testamento e cinco com a obra completa.

 

 

APPSAGRADO

o VouVersion, a mais popular
versão da Bíblia em forma de
aplicativo para smartphones. inova
na maneira como as pessoas se
relacionam com as Escrituras, ao
fundir seu conteúdo com a dinâmica
de uma rede social. Confira seus
números e curiosidades

278 MILHÕES- de downloads no mundo

17 MILHÕES – de downloads no Brasil

1083 – línguas disponíveis Idiomas mais populares:inglês, espanhol. português brasileiro, coreano efrancês.

Também oferece uma versão da Bíblia para crianças e traduções em línguas índígenasnacionais. como caingangue, guajajara. xavante e guarani mbya

2,5 MILHÕES de capítulos da B(blia são lidos ou ouvidos pelos brasileiros por diao versículo mais acessado e  compartilhado no Brasil em 2016:

“Eu é que sei que pensamentos
tenho a vosso respeito. diz o Senhor;
pensamentos de paz e não de mal.
para vos dar o fím que desejais”
(Jeremias 29:11)

 

Entre adaptações, traduções e revisões, a Bíblia amplia seu público sem por isso comprometer sua mensagem. No século XVI, quando Martinho Lutero facilitou o acesso às Escrituras em versão na língua vulgar – no caso, o alemão -, a Igreja Católica proibia a leitura por leigos e só aceitava a versão latina de São Jerônimo. A progressiva liberação da Bíblia nos idiomas modernos cresceu em paralelo com uma indústria moderna – a imprensa. A popularização do texto bíblico prossegue hoje nos meios tecnológicos. As Bíblias on-line, em versões para todas as denominações cristãs, não são novidade. A ampliação dos aplicativos, porém, começa a mudar até a rotina de igrejas e templos: alguns pastores e padres já aceitam o celular em cultos e missas, pois isso permite a consulta rápida e fácil de trechos da Escritura.

De 2015 a 2016, as Bíblias digitais, entre aplicativos e e-books, apresentaram um crescimento de 390% nas versões evangélicas produzidas pela SBB. O público católico também vem se adaptando ao livro virtual. A CNBB está desenvolvendo uma versão digital, enquanto a editora Ave-Maria comemora o bom desempenho de seu e-book. “O digital não afetou a venda do papel. Só agregou outro público, amante de tecnologia”, diz Carlos Augusto de Carvalho, gerente comercial da casa.

Uma busca por “Bíblia” em lojas virtuais, como a App Store ou o Google Play, traz dezenas de opções do texto sagrado, com funcionalidades, conteúdo extra e cores variadas. Há versões infantis, com desenhos e jogos. O aplicativo mais popular é o YouVersion, que, desde seu lançamento, em 2010, teve mais de 17 milhões de downloads no Brasil. Além de seis traduções do texto da Bíblia para o português brasileiro (na versão evangélica, não constam os sete livros gregos aceitos pelos católicos no Antigo Testamento), o aplicativo oferece planos de leitura diária. Tem ferramentas de compartilhamento de versículos – ou seja, é a Bíblia das redes sociais. A criação dessa ferramenta foi da Life.Church, organização evangélica americana que busca inovação tecnológica. “Percebemos um grande engajamento dos usuários brasileiros com o aplicativo”, celebra o pastor Bobby Gruenewald, fundador do movimento. “Por dia, são completados em torno de. 5 000 planos de leitura e lidos ou ouvidos mais de 2,5 milhões de capítulos em português.”

Nos Estados Unidos, há até uma Bíblia LGBT. A Queen James Bible – alusão à tradução mais canônica em inglês, a King James – traz na capa uma cruz com as cores do arco-íris, símbolo gay. Os poucos versículos que condenam a homossexualidade foram alterados, para furor de cristãos mais conservadores. Entre revisões como essa, atreladas às causas de minorias, popularizações por meios tecnológicos e revisões críticas como a tradução de Frederico Lourenço, atesta-se um fato: a Bíblia é um livro inesgotável.

*Jornalista escritora. Matéria na Revista Veja nº 2538 de 12/07/2017.

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