Continuação ….
Educação
A escola do rio e da floresta
III
Mas não é demais pensar num sistema educacional voltado para a região e seu desenvolvimento. A vida é dinâmica, o mundo das ideias muito mais, ao contrário da geografia que se altera devagar e quase sempre em consequência da ação do homem. Na Amazônia esse fenômeno ocorre num processo infinitamente mais lento. Verifica-se uma dinâmica invertida. Ela se dá muito mais por obra da natureza dos rios e das várzeas que proporcionam a surpresa de estar em frequente transformação. Mas, apesar das alterações observadas ao longo da história, na sua formação geológica, a paisagem amazônica nos fundamentos permanece a mesma. Estadistas e cientistas sabem que o presente e o futuro da região residem na floresta e nos rios, como aconteceu no passado remoto e mais recente. Nos primórdios da história do homem na Amazônia, foi-se construindo um corpo de ideias formado pela concepção dos seus primeiros habitantes, em duelo com a natureza. Depois, foi a ação do colonizador europeu que chegou à região implantando uma nova cultura. Daqueles e destes ingredientes gerou-se a cultura amazônica.
O processo educativo aplicado à região deve levar em conta essa realidade, se desejarmos ser felizes.
É necessário, portanto, que a escola prepare profissionais servidos pela visão de um novo humanismo, humanismo que, enfim, nada mais é do que o reencontro com aquela tradição mitológica e, mais recentemente e do ponto de vista mais racional, com o que pensavam os primeiros responsáveis pelos negócios do Estado amazonense, na origem do seu processo legislativo, de que também cuida este livro.
Nos primórdios da história educacional do Amazonas, primeiro pensou-se em formar profissionais do serviço público, para servir na máquina administrativa provincial, carente de servidores que pudessem tocar os setores mais comezinhos da atividade estatal. Em seguida, a preocupação dos governantes foi preparar professores e operadores do setor primário da economia, considerado o extrativismo como atividade agrícola, incluindo nela a pesca.
Havia, portanto, uma preocupação dos administradores públicos com o desenvolvimento socioeconômico regional no funcionamento do Estado do Amazonas, então Província, desde o início. Mas isso tudo pouco mudou.
Dos diagnósticos produzidos pelos professores-alunos do Proformar conclui-se por uma situação original de carência dos meios de vida. Original porque a pobreza, responsável por tantos males, como, por exemplo, a evasão escolar, o baixo índice de participação das famílias nos movimentos da escola e a criminalidade, flagrada entre adolescentes e jovens, campeia num ambiente rico em perspectivas de crescimento, tendo em vista plantar-se essa população na mais célebre floresta do globo terrestre, banhada pela maior bacia hidrográfica do mundo, detentora da mais rica biodiversidade do Planeta.
Se o homem de hoje ainda está pobre nesse mundo, é por falta de preparo e de habilitação para lidar com ele sem devastá-lo. O primeiro habitante da região não conhecia pobreza, porque sabia lidar com esse mundo e ainda não se tinha afligido com as questões das teorias econômicas, das leis de mercado e ideias tais, trazidas pelo europeu. Não se vê nada de pobreza nas narrativas e lendas, fontes da história e da arte desse povo. Ele desconhecia os elementos formadores do mundo dos negócios fundamentados na moeda. Com a chegada do europeu a prática da moeda instalou-se no seio da Civilização Amazônica e fundou o capital que não funciona sem essa relação, conforme leciona um renomado historiador da economia moderna:
O dinheiro só se torna capital quando é usado para adquirir mercadorias ou trabalho com a finalidade de vendê-los novamente, com lucro.45
Chegou, então, a ideia de pobreza que reside na baixa qualidade de aparelhamento técnico do herdeiro do adventício que, paralelamente, não percebe a riqueza sobre a qual vivia tão encandeado estava, pelo fulgor das luzes faiscadas da vã cobiça despertada pelo colonizador. Nem aprendeu a lidar com esse dado novo, as relações da moeda com o mercado e coisas tais. Só a educação, como instrumento de formação de um processo crítico, dirigida para a experiência desse espaço geográfico, dessa economia, é capaz de transformar esse homem da marginalidade em que circula em elemento produtor de uma boa qualidade de vida, considerando-se, ainda, o sentido de proteção desse mundo, de que muito depende o bom desempenho dos ecossistemas globais.
Numa síntese das questões de educação levantadas neste trabalho, pode-se inferir quanto à inquietação dos intelectuais, educadores e políticos, sobre uma filosofia de educação voltada para a transformação da realidade. Muita coisa precisa mudar em termos de concepção de vida na região. Vigora, ainda, por exemplo, muito equívoco sobre a alimentação na Amazônia. Intelectuais da envergadura de um Josué de Castro46, por exemplo, incorreram nessa visão preconceituosa. Vejam o que ele afirma numa página citada por Djalma Batista.47
A análise biológica e química da dieta amazônica revela um regime alimentar com inúmeras deficiências nutritivas. Tem-se de logo uma impressão de sua impropriedade na sua extrema pobreza, ou mesmo ausência, de alguns alimentos protetores: da carne, do leite, do queijo, da manteiga, dos ovos, das verduras e das frutas. Tem-se outra imagem de sua insuficiência na sua exiguidade quantitativa. É uma alimentação parca, escassa, de uma sobriedade impressionante.
Quanto preconceito, partido de um pensador clássico brasileiro, mas sem vivência na Amazônia… Toda gente sabe que a vocação amazônica não é a pecuária, atividade econômica devastadora de áreas florestais nobres quando forçada na região, que produz a carne, o leite, o queijo, a manteiga, etc. reclamados por Josué de Castro na dieta do amazônida. Nem por isso, nem por falta desses produtos deixa de ser tão pobre a dieta nativa do amazonense, isentando-o dos problemas do raquitismo que é o sintoma elevado a último grau da escassez de alimentos em determinadas populações. O raquitismo é um mal jamais identificado no homem da Amazônia, até antes da adoção dos alimentos produzidos pelo boi.
Nunes Pereira48, um caboclo que viveu metido pelos matos amazonenses, pesquisando e estudando a sua realidade, durante mais de meio século, lista no universo de milhares de castas, o mínimo de 19 espécies de peixes nobres, do pirarucu ao acari, do pacu ao tambaqui, da pirapitinga à matrinxã, do curimatã ao jaraqui, da jatuarana ao jandiá, do tamuatá ao aracu, do tucunaré ao jacundá, enfim do grande peixe-boi, etc., todos eles ricos em poder alimentício e de carne muito menos tóxica ao organismo.
E os frutos da floresta, a castanha, o tucumã, o açaí, o patauá, o buriti, a bacaba, o piquiá, o uixi, o mari, a pupunha, as inúmeras espécies de bananas?
A castanha, por exemplo, é um dos raros espécimes vegetais a possuir em sua composição química forte conteúdo proteico, além do selênio. Está provado, e nem é preciso citar a fonte de informação, de que duas castanhas verdes possuem o mesmo conteúdo alimentício de um ovo de galinha. E os ovos de tartaruga, as ovas de peixes, a carne de caça, o que se dizer disso como fontes de proteínas?
Não bastasse isso, é necessário informar que o pirarucu, o tambaqui e o tucunaré ganharam hoje o mercado brasileiro e estão compondo a pauta da Agência de Promoção e Exportação do Brasil (Apex-Brasil) desde 2008. O açaí também é consumido em todo o país e já começa a interessar mercados heterogêneos do oriente e do ocidente, inclusive de gigantes das indústrias de bebidas americanas que encontraram, nessa frutinha preta de sabor amargo, propriedades alimentares privilegiadas.
Nem se pode acusar o amazônida, quando alimenta este pensamento, de predador por sua ancestral atividade extrativista, posto estar pondo em prática hoje os grandes e bem-sucedidos projetos de piscicultura e criação de bichos de casco, procedimento resultante de uma nova postura conquistada pela tecnologia, produto do conhecimento da realidade, fruto da educação. Quem sabe se nessa direção já não se esteja às vésperas de reorganizar o ambiente da floresta amazônica em estações de caça, a fim de que se possa usufruir de sua vocação, como repositório de fontes permanentes de alimentos, preservando-lhes as espécies, ao contrário de simplesmente proibir-lhe a prática?
Nada disso mudou e tudo isso foi sempre assim. O homem, biologicamente, também não mudou. Se se transformou no processo natural de mudança, não deu para transfigurá-lo. O que tem mudado é seu
comportamento, suas atitudes, a postura em face da natureza e de sua realidade, fatores que só poderão ser aprimorados e multiplicados por meio dos métodos educacionais e os sistemas de ensino.
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45 HUBERMAN, Leo (Newark/USA 1903 – 1968), jornalista e escritor. – História da Riqueza do Homem, pg. 167, tradução de Waltensir Dutra, 15ª. Edição, Zahar Editora. Rio de Janeiro 1979.
46 CASTRO, Josué (Apolônio) de (Recife/PE 1908 – Paris 1973), médico, professor, cientista social, político e escritor.
47 BATISTA, Djalma (da Cunha), (Tarauacá/AC 1916 – Manaus/AM 1979), in O complexo da Amazônia, análise do processo de desenvolvimento, 2.ª Edição, página 80, Valer Editora. Manaus 2007.
48 PEREIRA, (Manoel) Nunes (São Luís do Maranhão 1893 – Rio de Janeiro 1985) Panorama da alimentação indígena – Comidas.
Continua na próxima edição…
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