Continuação ….
Literatura
“Terra Imatura”,
ensaio ou ficção 140
Almino Affonso levantou-me a questão do gênero e da forma com que deve ser considerado Terra Imatura, o livro clássico de Alfredo Ladislau sobre a Amazônia. Redargui-lhe que assim me propunha uma tarefa sobre a qual teria de me debruçar com atenção para atendê-lo, embora já se tenha conhecimento de tantos trabalhos lançados por estudiosos da matéria sobre o assunto. Incluí o tema no rol dos meus projetos literários, dentre os muitos que guardo ou esboçados em breves notas, ou já realizados, mas ainda inéditos, ou aqueles que me repousam na memória esperando o momento de expô-los no papel em letra de forma, como as sementes que o meu tio Luiz guardava para plantar um dia no verão da sua imaginação. Finalmente, esse dia chegou e decidi enfrentar os teclados e a tela do computador na elaboração das páginas com que ouso expender um juízo analítico sobre a questão, conforme as linhas que se seguem, no intuito, ainda, de atender à indagação do meu ilustre patrício.
A Literatura Brasileira, nos quinhentos anos de experiência, considerada a sua fundação com a carta de Caminha, mostra na essência a carga semântica acumulada pela perspectiva histórica do desenvolvimento da língua. Nesse período de tempo e do tempo sem tempo da formação do espírito humano, ela tem registrado momentos altos no surgimento de autores e no aparecimento de obras substanciais, desde os Sermões do Padre Antônio Vieira à poesia de Gregório de Matos, da prosa exemplar de João Francisco Lisboa ao exemplo genial de Machado de Assis, desde o fenômeno daqueles livros que mais se aprofundaram na interpretação do povo brasileiro nos seus mais distantes confins, como Os Sertões, de Euclides da Cunha, e o Grande Sertão-Veredas, de João Guimarães Rosa.
Considerada a questão do ponto de vista das letras amazônicas, não se pode excluir dessa avaliação o conteúdo mitológico gerado pelos povos da floresta, desde tempos imemoriais, representado pela influência legendária de que não conseguem livrar-se os escritores que cogitam de interpretar a paisagem e o homem amazônicos, como é o caso de Alfredo Ladislau e seu livro.
Ao longo deste trabalho lançarei breve exame sobre Pelo Sertão de Afonso Arinos, Tropas e Boiadas, de Hugo de Carvalho Ramos, Inferno Verde, de Alberto Rangel, e À margem da história, de Euclides da Cunha, tecendo algumas considerações sobre Os Sertões e o Grande Sertão-veredas, obras fundamentais de nossa cultura, assemelhadas quanto às peculiaridades dos espaços geográficos onde se desenrolam os acontecimentos narrados. Nelas se agitam as velhas questões do bem e do mal, do conflito da presença de Deus e do Diabo nos atos humanos e a luta pela afirmação da vida numa terra nova e árida. Ambas se aproximam também na concepção estética, porque, não obstante terem sido lavradas em prosa trazem, na essência, genuíno conteúdo de poesia, tal a tensão emocional com que foram realizadas. Ainda no talhe estilístico observam-se, nas duas, aspectos únicos da extrema personalidade com que seus autores as escreveram.
Em Euclides da Cunha é o modo grandiloquente com que revela as suas emoções, apoiado em vocabulário culto e, em grande escala preciosista, ao mesmo tempo em que se arrima na fala rudimentar do jagunço; em Guimarães Rosa é o rendilhado de uma prosa essencial mente poética, guardando no traço marcas do mergulho do autor nas origens da nossa língua, cravejada de termos tópicos tratados no texto com o aprumo de um consumado mestre do idioma. Sabe-se que a linguagem de Guimarães Rosa sustenta-se num acurado conhecimento da gramática de várias línguas, sem o que ele não teria construído uma obra realmente tão original.
São escritores que fascinaram a sua geração e enfim acabaram por arregimentar em seu rastro inúmeros imitadores, encandeados pelo brilho de uma prosa altamente criativa e mágica. Esse que é, enfim, o destino de toda obra fundamental em todas as épocas da história. No tempo da Divina Comédia de Dante, por exemplo, surgiram vários poemas alegóricos escritos nos moldes do cantar do genial florentino. Na idade de Camões também apareceram inúmeros poemas épicos à maneira de Os Lusíadas. O gênio é que determina a diferença para distinguir o imitador servil do discípulo de escola, este que passa a existir para multiplicar o poder de transformação que toda obra de arte traz em sua gênese.
Muda, no entanto, nas duas obras, a visão de mundo, desde a forma de expressá-la e do estilo da prosa, até por uma questão de época dos dois lançamentos. Os Sertões de Euclides, lançado em 1902, nas suas origens era uma vasta reportagem. Após o tratamento artesanal que imprimira ao texto, o grande artista o converteu num amplo ensaio, ou, quem sabe, num largo poema sobre a vida brasileira desenrolada nesses mundos ásperos e agressivos, numa linguagem predominante mente épica. O Grande Sertão-Veredas, de Guimarães Rosa, lançado 54 anos depois, em 1956, eram nos seus começos meras anotações, realiza das pelo autor-médico em missão de oficial do 9.º Batalhão de Infanta ria de Barbacena (MG), na vivência da paisagem e no levantamento da fala do tabaréu. Com esse material compôs o seu maravilhoso romance, pura prosa de ficção, enfeixado num livro inconsútil e de linguagem essencialmente lírica.
Descompassa da prosa de Os Sertões de Euclides a prosa do Grande Sertão de Guimarães Rosa. Se aquele é grandiloquente, escrito com o esquadro de uma rija estrutura gramatical e léxica, este é essencialmente coloquial, lavrado num discurso despojado dos timbres da retórica tradicional. Mais à frente mostrarei alguns trechos da prosa de Euclides, para que se compare com a conversação de Rosa no seguinte trecho do Grande Sertão:
O senhor… Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensina. Isso que me alegra, montão. E, outra coisa: o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro – dá gosto! A força dele, quando quer – moço! – me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. (…)
Em Guimarães Rosa os jagunços Riobaldo, que é o narrador em primeira pessoa, e Diadorin são fictícios, indivíduos de fábula, portanto; em Euclides da Cunha, Antônio Conselheiro e o coronel Moreira César são personagens da história. Mas todos eles, estes e aqueles foram transfigurados pelo ânimo criador daqueles dois sinaleiros das letras brasileiras. Em suas mãos o sortilégio da literatura converteu os personagens da história em figuras de ficção, e os elementos de ficção em individualidades do mundo real, influindo no comportamento da sociedade dos vivos.
No desenvolvimento da Literatura Brasileira a prosa de ficção consolidou-se nas formas do conto, da novela e do romance. Escolhi para as reflexões neste trabalho mais demoradamente o conto.
Na transição dos séculos XIX e XX, fatos novos marcaram as nossas letras. Os escritores que se ocupavam em sua maioria com os temas da vida urbana, ou do ambiente bucólico, experimentado nas fazendas de café e de açúcar e nos embates com que se foi construindo a civilização brasileira, a exemplo de A Moreninha de Joaquim Manuel de Macedo e A escrava Isaura de Bernardo Guimarães, finalmente descobrem o interior do país, os campos, as florestas e os rios, e passam a revelar aquela realidade em seus livros. Junto com essa atitude que influiu no fazer literário do ponto de vista do conteúdo, do ponto de vista formal influiu no surgimento de escritores ocupados com a prática do conto.
O conto já se tinha afirmado como forma de arte literária moderna. Machado de Assis já o elevara ao ponto culminante interpretando a vida urbana e o aprofundamento psicológico das suas personagens. Mas a paisagem e o homem do interior, a paisagem e o homem dos cafundós do mundo brasileiro, ainda não tinham sido objetos da ação criadora de um escritor de pulso nas formas da prosa de ficção.
Uns poucos pioneiros apenas se realçavam àquela altura nessa linha de interpretação da nossa nacionalidade. Entre estes se pode considerar Afonso Arinos que publicava Pelo Sertão, Histórias e Paisagens, e Hugo de Carvalho Ramos que vinha à luz com Tropas e Boiadas, uma das mais autênticas manifestações da chamada literatura regionalista, somando com a obra copiosa de Simões Lopes Neto, na mesma época. Mas o conto do sertão não atingira ainda os níveis de excelência alcançados por Machado de Assis na interpretação do meio urbano e dos temas universais gerados pelos conflitos da alma humana
Em Pelo Sertão, que o próprio Afonso Arinos rotula de contos em nota de abertura escrita em 1898, a página mais célebre é o Buriti perdido, que, por fim, não pode ser considerado um conto no sentido com que se concebe essa forma no gênero da prosa de ficção. O Buriti Perdido é, a despeito de toda a beleza que a consagrou como uma das páginas antológicas de nossas letras, um poema em prosa, forma que o nosso grande escritor encontrou para celebrar um dos mais nobres exemplares da flora brasileira.
Dão partida ao texto quatro exclamações entremeadas por uma interrogação com que o autor exalta a bela palmeira, começando com a seguinte exortação:
Velha palmeira solitária, testemunha sobrevivente do drama da conquista, que de majestade e de tristeza não exprimes, venerável epônimo dos campos! No meio da campina verde, de um verde esmaiado e merencório, onde tremeluzem as florinhas douradas do alecrim do campo, tu te ergues altaneira, levantando ao céu as palmas tesas, – velho guerreiro petrificado em meio da peleja!
Logo a seguir Afonso Arinos revela em seu entusiasmo a forma eleita para realizar essa bela página:
Tu me pareces como o poema vivo de uma raça quase extinta, como a canção dolorosa dos sofrimentos das tribos, como o hino glorioso de seus feitos, a narração comovida das pugnas contra os homens de além!
Observe-se que ele se refere neste andamento a poema, canção, hino, todas formas de poesia, e, quando se reporta à prosa, fala em narração comovida, expressão que igualmente se coaduna aos domínios do poema em prosa.
Hugo de Carvalho Ramos aproxima-se, a seu modo, da linguagem do conto, embora revele, ainda, a postura lírica despertada pelo soberbo panorama da geografia onde circulam os seus personagens. Leia-se o seguinte excerto de Nostalgias, de Tropas e boiadas:
Era pelas férias, em tardes luminosas de que já não tenho notícias, pelos meses calorentos de dezembro a março, quando o murici e a corriola, amadurecidos, embalsamavam o chapadão. Passava a correr, saltando córregos, a
tua espingarda ou outra qualquer ao ombro, às vezes só, quase sempre acompanhado dum moleque, o Manuel ou o Raimundo do agregado, baixotes e barrigudinhos, que se incumbiam da longa fieira de peixes quando de retorno.
Diferente de Afonso Arinos cantando a solidão da palmeira sertaneja como se lê em seguida:
Junto de ti, à noite, quando os outros animais dormem, passa o canguçu em montaria; quando volta, a carne da preia lhe ensanguenta a fauce e seu andar é mais lento e ondulante.
Vêem-se nos exemplos citados uma clara diferença entre a poesia e a prosa, mesmo tratando-se da prosa de ficção tão bem ensaiada em Hugo de Carvalho Ramos. Entra em debate a questão da prosa literária. A prosa de ficção e o poema em prosa, em que se identifica o valor conotativo, a riqueza em força semântica sob o império da metáfora. Ao contrário da prosa denotativa do ensaio que em Euclides da Cunha ganha reflexos peculiares em Os Sertões.
Olhando-se a questão desse ângulo, é o caso de indagar: seria o livro de Euclides um longo ensaio ou um amplo poema em prosa? Quem sabe qual seria a intenção do autor ao compô-lo? Diz, ele próprio, em nota preliminar, que intentou com o livro esboçar, palidamente em bora, ante o olhar de futuros historiadores, os traços atuais mais expressivos das sub-raças sertanejas do Brasil. Mas, em verdade, o que realizou foi um verdadeiro poema. Apura-se que a energia e o ardor com que Euclides da Cunha se volta para o tema, infunde à prosa, daquilo que seria uma análise de conteúdo antropológico da realidade brasileira, de sentido denotativo, portanto, o calor de uma verdadeira epopeia sobre a formação da nossa nacionalidade. Nem se levem em conta os equívocos do enfoque científico euclidiano quando se refere às sub-raças explicitadas mais à frente de sua nota preliminar como sendo o jagunço destemeroso, o tabaréu ingênuo e o caipira simplório.
Essa visão descuidada da formação do homem brasileiro, de conotação racista e completamente contrária às teorias modernas da formação étnica dos povos, constituía uma postura corrente na época do mestre de Peru versus Bolívia, mas nem por isso capaz de afetar a grandeza da obra, como não afetou à Comédia de Dante a concepção cosmológica do universo fundamentada no princípio geocêntrico hoje caduco, mas dominante em toda a Idade Média. Talvez aquela postura teórica arruinasse o valor desse monumento intelectual se enfim se consumasse nas linhas do ensaio propriamente dito, compêndio frio de ciência acadêmica. Mas não, o livro transcendeu esses limites, graças à força da linguagem, o singular entusiasmo com que foi escrito e a paixão do autor ao lançar no papel as suas frases repletas de emoção.
Veja-se como o livro se inicia:
O planalto central do Brasil desce, nos litorais do Sul, em escarpas inteiriças, altas e abruptas. Assoberba os mares; e desata-se em chapadões nivelados pelos visos das cordilheiras marítimas, distendidas do Rio Grande a Minas.
Descrevendo o palco principal dos acontecimentos imprime Euclides da Cunha:
É natural que seja Monte Santo, desde muito, uma paragem remansada, predileta aos que se aventuram naquele sertão bravio. Não surgia pela primeira vez na história. Muito antes dos que agora o procuravam, outros expedicionários, porventura mais destemerosos e, com certeza, mais interessantes, por ali haviam passado, norteados por outros desígnios.
A figura de Antônio Conselheiro desenha-se com a descrição ás pera do seguinte perfil que transcrevo em largo espaço no escopo de melhor mostrar o retrato esboçado:
O asceta despontava, inteiriço, da rudeza disciplinar de quinze anos de penitência. Requintara nessa aprendizagem de martírios, que tanto preconizam os velhos luminares da Igreja. Vinha do tirocínio brutal da fome, da sede, das fadigas, das angústias recalcadas e das misérias fundas. Não tinha dores desconhecidas. A epiderme seca rugava-se-lhe como uma couraça amolgada e rota sobre a carne morta. Anestesiara-a com a própria dor; macerara-a e sarjara-a de cilícios mais duros que os buréis de esparto; trouxera-a, de rojo, pelas pedras dos caminhos; esturrara–a nos rescaldos das secas; inteiriçara-a nos relentos frios; adormecera-a, em transitórios repousos, nos leitos dilacerantes das caatingas…
O escritor aprofunda-se na análise, não se contenta em descrever a figura desse carismático líder do sertão, mas intenta infundir sangue e movimento ao personagem com a convicção de quem tivesse convivido com ele, sentado a sua mesa tosca para confraternizar sobre os senti mentos e compartilhar da sua comida frugal e insípida, experimentar o diálogo do sofrimento e das privações na esperança da salvação da alma.
Esse caráter, no entanto, não é uma virtude somente realçada em Os Sertões, mas um modo de ser que se apura para reafirmar, mais do que em nenhum outro, que em Euclides da Cunha é uma verdade insofismável a máxima de Buffon, velha, mas sempre atual, de que o estilo é o homem. Na primeira parte de À margem da história, por exemplo, no capítulo intitulado Na Amazônia – Terra sem história, ele se expressa como segue, referindo-se aos fenômenos da região:
Parece que ali a imponência dos problemas implica o discurso vagaroso das análises; às induções avantajam-se demasiado os lances da fantasia. As verdades desfecham em hipérboles. E figura-se alguma vez em idealizar aforrado o que ressai nos elementos tangíveis da realidade surpreendedora, por maneira que o sonhador mais desensofrido se encontre bem, na parceria dos sábios deslumbrados.
E essas razões, essas forças, concluíram por influir em toda uma geração de escritores amazônicos, em destaque para o Inferno Verde de Alberto Rangel, cujo prefácio constitui um ensaio de 22 páginas assina do pelo próprio Euclides da Cunha, e Terra Imatura de Alfredo Ladislau, motivo deste trabalho. Mas Rangel, no subtítulo do seu livro teve o cuidado de classificá-lo como sendo composto de cenas e cenários do Amazonas, vazando-o, no entanto com uma elocução que transborda os limites da prosa ou do ensaio ou da crônica, com as ondas a bater e quebrar nas largas praias da poesia.
Veja-se esta passagem de O tapará, primeiro capítulo do livro:
À hora do meio dia ensoalhado, a floresta é pavorosamente muda; à noite, ela é wagnerianamente agitada de todas as vozes. Vozes que vão do clamor insano d’almas errando em assomo de desespero e de dor, aos murmúrios vagos de uma só rabeca, em smorzando delicadíssimo.
Observe-se até no preciosismo vocabular o gosto pelo inédito quando em vez de ensolarado diz ensoalhado e, no lugar de morrendo, escolheu smorzando, uma expressão buscada na terminologia musical, já que se refere à rabeca
A grandiloquência euclidiana enfim determinou o destino dos escritores amazônicos do período de transição dos séculos XIX e XX. Os mais brilhantes permaneceram em lugar privilegiado nas estantes dos amazonólogos, e os meros imitadores se perderam no limbo do fraseado apenas empolado, carente de grandeza humana e indigente de talento…
Terra Imatura é um dos clássicos da Amazônia. Segundo os estudos biobibliográficos de Afrânio Coutinho, que classifica o autor como cronista, a obra, seu único livro, o livro da sua vida, portanto, foi realizada por volta dos 33 anos dos 46 da sua laboriosa existência. Nasceu no Ceará, cidade de Guaramiranga, 1888, e morreu em Belém do Pará, em 1934. Era bacharel em Direito, tendo exercido, certamente em comunidades amazônicas, as funções de Promotor de Justiça e Juiz de Direito. Terra Imatura, que ele elegeu para título do livro, é, em verdade, o primeiro tópico da coletânea, datado da cidade paraense de Alenquer, ocupando apenas 14 das 234 páginas dos 13 capítulos que compõem o volume da edição que consulto, a terceira trazida a lume em 1933, pela Civilização Brasileira, do Rio de Janeiro. O décimo capítulo, A gênese das Amazonas, é dividido em duas partes, Icamiabas e Teco-imás.
Terra Imatura começa com uma amostra do que seria a índole e o estilo do livro:
Os dias na Amazônia morrem sempre gloriosamente aureolados, envoltos num estranho esbanjamento de luz. Nas suas rápidas transições para as noites cálidas e deslumbrantes, quase que não existe a tristeza empolgadora das penumbras crepusculares. E muitas vezes, noite já feita, os poentes conservam-se ainda fortemente iluminados, como se a própria claridade vesperal ficasse embevecida, presa da fascinação dos reflexos que ela mesma produzira.
Nesse panorama, na cidade de Santarém, sentados num banco da Praça da Matriz, dois filhos da região, Aiúna e Arianda conversam sobre as coisas da Amazônia, como que preparando o leitor para a apreciação dos temas que serão abordados ao longo do livro. Lá pelo meio do diálogo, deslumbrados com a atmosfera que os envolve, afirma Aiúna:
– Não é assim, Arianda. A poesia transcendental em que se alcandoram essas geniais concepções sobre a nossa formação geológica, não pode perturbar a surpreendente documentação científica em que elas se baseiam
Já pelo meio da conversa, cada vez mais emocionado, um personagem afirma ao outro:
Não penses que o descalabro da nossa goma elástica tenha surgido como um simples caso fortuito em nossa vida regional. Não. Representou, antes de tudo, um golpe traiçoeiro que a fatalidade cósmica nos desfechava, por isso que não era chegado ainda o dia da Amazônia. E o resultado foi este: seus novos e esperançados visitadores, os sertanejos do Meio-Norte, desalentados, viram-se compelidos a abandoná-la, retomando, numa jornada inglória de venci dos, o caminho do antigo habitat.
A seu modo Alfredo Ladislau registra nesse passo do diálogo o episódio da crise da economia da borracha que se acentua por volta de 1910 e é vista por ele como um golpe traiçoeiro que a fatalidade cósmica nos desfechava. A verdade corrente hoje, porém, é de que a desvalorização da goma elástica deu-se em decorrência da produção dos seringais de cultura da Malásia, enquanto na Amazônia a coleta era feita em meio à floresta multifoliada, na linha do extrativismo tradicional. A árvore da borracha é nativa da Amazônia e foi aclimatada em terras do Oriente, num processo de pirataria ecológica entendida hoje, no mundo globalizado, como intercâmbio biótico que tem permitido também o trans plante de espécies de outros continentes para a Amazônia, a exemplo da fruta-pão, originária das Ilhas Mollucas na Ásia, segundo pesquisa de botânicos do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, e da juta, espécie originária da Índia, China e Java, trazida pelos japoneses, por volta de 1936, sob a liderança do patriarca Ryota Oyama que se radicou em Parintins e, na Colônia Agrícola do Andirá, Paraná do Ramos, realizou as primeiras experiências alcançando êxito após muito trabalho e persistência. Na Malásia, igualmente, a seringueira foi objeto de plantio racional. Mas todas as tentativas de cultivo adotadas na Amazônia não tiveram sucesso. Nem o plantio sistemático, nem o enriquecimento dos seringais nativos através do plantio de mudas entre as árvores da floresta. Talvez a esse episódio tenha Alfredo Ladislau indigitado com o timbre de fatalidade cósmica.
No entanto, o diálogo adotado no primeiro capítulo do livro não possui caráter de prosa de ficção, a prosa de ficção predicativa do conto, que se assinala por densos exercícios de cena e fabulação. No texto de Alfredo Ladislau esse diálogo, a despeito de ser realizado por figuras
fictícias, estabelece apenas uma técnica narrativa de que o autor lançou mão no fito de gerar clima coloquial entre o narrador e o leitor. Tanto é assim que daí por diante, nos outros capítulos do livro, deixam de com parecer personagens de ficção e diálogos. Só nas páginas à frente, no sexto capítulo, aparecem dois personagens, que parecem apresentar–se como pessoas do relacionamento do autor em suas andanças pelo interior da região, pois confessa explicitamente conhecer dois homens, Possidônio e Miguel Felício, que bem representam o dualismo de com portamento de tipos característicos, o caboclo e o nordestino de que vou me ocupar a páginas em frente.
Para encerrar esse primeiro capítulo do livro, Alfredo Ladislau prossegue na restauração da imagem do fim do dia, no mesmo tom colorido e empolgante com que o inicia em legítima água-forte:
A fímbria longínqua do horizonte acabava de comungar a hóstia esbraseada do sol. Todo o quadrante do poente rebrilhava em púrpura como um estranho espelho de cinábrio, e as últimas nuvens dissolvem-se, vagarosamente, envoltas em violentos clarões de incêndio. Veio a noite.
A partir daí, na sequência, o livro todo se constrói em textos situados nos limites do ensaio, da crônica e do poema em prosa. Afinal a crônica brasileira converteu-se no jornalismo como gênero literário, mas, também, como pequeno ensaio ou poema em prosa.
Assemelha-se ao ensaio propriamente dito, a parte em que fala da presença de Euclides na Amazônia, mas sem resistir à expressão metafórica quando afirma que Euclides da Cunha percebia, ao apreciar a região, entre as
(…) positivas deduções científicas, a mistura com a névoa sutilíssima das lendas, – espécie de poeira atômica do mistério, – flutuando na penumbra das florestas virgens, o itinerante pressente um balbuciar de histórias fantásticas, que o amedrontam.
Busca interpretar as inúmeras águas da região, a natureza das estradas líquidas que cortam a planície, as águas dos lagos e lagunas e dos rios que nos encontros se casam e ficam maiores. Retimbra Alfredo Ladislau:
Os trêmulos veios d’água, então, precipitam-se, afervora dos, por essas valas e, contornando os longos relevos, per tentam o contacto com os aprofunda paludes, sem os poderem alcançar ainda.
Alfredo Ladislau, ao examinar o homem nos domínios da selva, nem por demonstrar tanto entusiasmo por tudo o que vê e sente, consegue libertar-se das crises de pessimismo que afetaram os amazônidas do seu tempo, num comportamento que sugere a dúvida de que não acreditavam no futuro, na competência dos estudiosos ao desvelar os mistérios da região. Dominado por tal sentimento, Ladislau já afirmara que a Amazônia era uma grande vítima das suas próprias grandezas, concebendo com a frase de sonora retórica, uma enorme contradição, levando-se em conta a circunstância de que as grandezas exaltam, mas nunca vitimam. E assim mostra-se incrédulo nas conquistas da tecnologia, no esforço criador dos estadistas, educadores e empresários que agem na transformação do meio, nas ações que pudessem mudar os rumos da nossa qualidade de vida. E afirma:
O caboclo, que nasceu na região e conhece, desde os primeiros clarões do entendimento, a força robusta da sua poderosa inimiga, entendeu por bem apegar-se ao recurso acomodatício de não entrar em luta com quem ele já sabe que o derrotará inevitavelmente.
Conquanto assuma tal postura depressiva, é com raro entusiasmo que Alfredo Ladislau examina o comportamento do nordestino e do amazônida. O nordestino curtido pelo trabalho de gerações num solo árido, que o deixa quase sempre pobre e faminto, e de contínuo ágil, esperto no anseio de crescimento em bens materiais, e o amazônida contemplativo, lento, satisfeito com a riqueza da terra que o abençoa com a fartura de frutas da floresta, a abundância piscosa dos rios, os inumeráveis espécimes de animais nativos, aves e quadrúpedes, produtores de alimentos. Mas no seu ânimo não se exime de registrar um protesto quando afirma:
É nessa avultada e piscosa riqueza da Amazônia onde a ganância dos desfrutadores incontentáveis acarreta, com mais frequência, inconcebíveis e incalculáveis desbaratamentos.
Prossegue nessa análise pondo em confronto o comportamento e as atitudes de Possidônio e Miguel Felício, o caboclo e o sertanejo.
O caboclo escolhe para morar a beira do rio porque o peixe é o seu alimento preferido. O sertanejo sobe à terra firme e prefere alimentar-se da carne de caça. Aquele é dado a ficar cismando horas perdidas a contemplar as águas serenas no cair das tardes, mas este não é capaz de acocorar-se por alguns minutos que sejam sem que se ponha em movimento em atividades que lhe ocupem o corpo. O sertanejo fala pelos cotovelos e a palavra brota-lhe fácil e clara da boca; o caboclo é tartamudo e o som da sua voz é quase imperceptível, surdo e desencorpado. O sertanejo diz o que pensa agrade ou desagrade o interlocutor, já o caboclo guarda para si o ponto de vista que possa afetar o pareceiro, mas, desconfiado do ataque à traição, guardando quase sempre o pé atrás para a desforra quando for preciso. O sentimento estético do caboclo é mais acentuado, com as mãos trabalha a cuia pitinga e a deixa coberta de floreados ornamentos, tece os paneiros e as cestas de palha com desenhos caprichosos e costura as tarrafas com agilidade superior, fazendo que Alfredo Ladislau conclua numa síntese perfeita quanto às origens étnicas de cada um: Em tais revelações artísticas, o sertanejo do Nordeste, misto de holandês e cigano, – fica plenamente subjugado pelo asiático da Amazônia.
Esta observação de Alfredo Ladislau sobre o caráter do amazônida veio comprovar-se mais tarde com a implantação da indústria de montagem do Parque Industrial de Manaus, que converteu a habilidade manual do operariado nativo em índice de nacionalização, constituindo-se, esse fato, num dos fatores preponderantes do sucesso desse vitorioso modelo de desenvolvimento regional.
Não ficou imune aos mistérios da lenda. Em verdade poucos são os escritores amazônicos que logram eximir-se do envolvimento com a tradição lendária da região. Talvez nenhum tenha conseguido livrar-se do envolvimento medular com essa realidade. Afinal de contas o acervo lendário levantado por etnógrafos nacionais e estrangeiros, na linha de um Koch-Grünberg, um Barbosa Rodrigues e, contemporaneamente, um Nunes Pereira, para citar apenas três dos grandes mestres no gênero, é o produto de mais de 40 mil anos (na avaliação de Betty Meggers) da presença do homem nas Américas. As lendas repassadas dos anciãos para os jovens nas culturas de origem mnemônica constituem o
acervo espiritual desses povos, a ciência e a poesia, as leis e a orientação ética, o seu desenvolvimento intelectual, enfim.
Do meio do livro em seguida, desde o capítulo intitulado A psicologia dos lagos, envolvendo O trabalho das múmias, O devorador das manadas, A gênese das Amazonas, O juriti-pepema, O muiraquitã e A vitória-régia, Alfredo Ladislau mergulha nos peraus e labirintos da lenda, chamando a atenção para a tendência que o homem da Amazônia tem pelo culto da mitologia originária das águas e à prática de uma atemorizante ofiolatria.
Salienta, no entanto, que até nisso o tapuio, o caboclo amazônico assemelha-se aos seus irmãos originários do centro da velha Catai, isto é, como era conhecida na Idade Média a antiga China. O culto às entidades aquáticas, à Mãe-d’Água, aos ofídios gigantes conhecidos por vários nomes, como Boiúna, Boioçu e a mais popular Cobra-Grande, fascina o homem do rio.
Salienta que a floresta amazônica não é povo ada dos espíritos lendários que dominam os outros povos da terra. Diz ele que nas nossas florestas no lugar dos bandos de faunos e dríades, sátiros e centauros, os aborígines inventaram apenas o Curupira e o Mapinguari. O homem é verdadeiramente um animal do rio. A floresta alta é quase inalterável. Ao contrário do rio e da floresta que o rodeia nas várzeas. A movimentação das águas nas vazantes e nas enchentes afeta visivelmente a vida do homem e é no rio que está a sua mais efetiva fonte de alimentos. Não é por outra razão que o amazônida elaborou o universo de sua mitologia mais rica dentro do rio, no perau dos encantados onde reina a Iara e seu séquito, na Cobra-Grande assustadora das noites escuras e silenciosas, nos botos sedutores e nas inúmeras entidades invocadas pelos curandeiros nas suas sessões de tratamento.
Enfim, por mais que nos esforcemos em encontrar no livro traços de ensaio científico, em Terra Imatura só encontramos literatura castiça, na linha do impressionismo que dominou as tendências estéticas do período.
Surgindo nas artes plásticas e muito desenvolvido na música, para a literatura o impressionismo transplantou o gosto pela nomenclatura da música e da pintura. Levou ao anseio pela construção de grandes painéis e a alusão às formas musicais, como a peroração de Adriano Jorge que imprimiu a famosa frase de que a paisagem é uma sinfonia que nos entra pelos olhos, e de Alberto Rangel, referindo-se à floresta nas noites da Amazônia: ela é wagnerianamente agitada de todas as vozes.
Mas o impressionismo em literatura desviou para o texto as virtudes da melodia e o predomínio da metáfora para expressar as emoções. A literatura, em verdade, como ocorre acontecer com as outras formas de arte, às vezes é um retrato da realidade ou uma transposição dessa realidade, ato de transformação pela transfiguração de uma para outra realidade. O impressionismo conferiu ao texto valores situados acima da transposição metafórica, animando-o com os poderes da imaginação.
A Amazônia de Alfredo Ladislau, amigo Almino Affonso, jamais foi ou é a Amazônia da geografia, mas sim a Amazônia concebida pela imaginação poderosa de um artista que teria produzido se não fosse escritor, uma ampla obra musical, um painel, uma coreografia, um drama ou um fabuloso conjunto arquitetônico, e que, sendo escritor e poeta, a imortalizou num largo poema em prosa, superando os preconceitos paracientíficos do seu tempo e a visão carente de esperança ao especu lar sobre o futuro da terra.
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140 Este ensaio saiu na abertura de uma edição de Terra Imatura, de Alfredo Ladislau, de responsabilidade da Valer Editora, de Manaus, em 2007.
Continua na próxima edição….
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