Manaus, 7 de setembro de 2024

Vim de igarité a remo (Ensaios e memória)

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Continuação ….

Notas sobre Álvaro Maia

I

No lugar onde eu nasci não existia luz elétrica. Na década de trinta do século passado os meios de comunicação eram precários. O rádio estava engatinhando, ainda não chegara por aquelas bandas, e a televisão era matéria de futurólogos. As notícias de fora chegavam de navio, nos regatões que negociavam com o meu pai. Nas conversas com os comandantes e práticos e os caixeiros viajantes, meu pai ia se informando sobre os acontecimentos da vida econômica, social e política do país e do mundo. Na esfera internacional, os fatos gerados pela II Guerra Mundial ocupavam a maior parte daquelas conversas. Na política interna vivia-se o auge do Estado Novo. As figuras de maior destaque, nas lideranças do governo, eram o ditador Getúlio Vargas e o interventor Álvaro Maia. A ideologia do Estado Novo assentava-se no ideal de um governo forte e de exaltado conteúdo nacionalista. Os cidadãos eram estimulados a cultivar o patriotismo. Meu pai, em resposta a esses desafios, celebrava em sua propriedade, plantada às margens do Paraná de Serpa, abaixo da cidade amazonense de Itacoatiara, a festa da Semana da Pátria que envolvia os dias 5 e 7 de setembro.

Ele mantinha em nossa casa, com apoio da administração estadual que fornecia o professor, uma escola primária para atender as crianças da redondeza. Mandava erguer o Altar da Pátria, complementando procedimentos escolares e cumprindo recomendações do governo. O Altar da Pátria constava de uma alegoria configurada na composição dos símbolos nacionais, construídos em formas ampliadas, ante o que os cidadãos da beira do rio, os alunos da escola e seus pais, reuniam-se para celebrar o espírito de nacionalidade, cantando o Hino Nacional.

As partes mais destacadas da programação, após o hino, eram os discursos, proferidos por um dos alunos da escola e por meu pai. Ele se demorava em exaltar as figuras de Getúlio Vargas e Álvaro Maia, pondo em realce as qualidades de orador, poeta e pensador, do grande líder amazonense.

Junto com os sons da floresta e do rio, dos pássaros, dos peixes, e o lendário que a vida misteriosa da Amazônia suscita em nosso espírito, foi plantada em minha memória a figura de Álvaro Maia. Na minha concepção de menino sua existência misturava-se com as entidades lendárias de nossa terra. Sobrevivia na minha lembrança como verdade e mito.

Mais tarde, na cidade de Parintins, tive oportunidade de vê-lo, pessoalmente, mas à distância. Nas terras dos bois-bumbás Garantido e Caprichoso, aportara Álvaro Maia, nas helênicas jornadas em que se converteram as suas viagens pelo interior da Amazônia, na vitoriosa pregação política visando o governo do Estado. Sempre cercado de muita gente, companheiros de viagem e lideranças locais, nem no palanque tive ensejo de me aproximar do homem. Mas, pelo menos, aclarou-se no meu entendimento que Álvaro Maia não era uma lenda. Talvez o que jamais poderia acontecer é que um dia eu conseguisse dele aproximar-me.

Em Manaus, entre muitas atividades a que me dediquei, por uma época tomei conta de uma casa de comércio do meu pai, mercearia e bar, instalada na esquina das ruas Costa Azevedo com 24 de Maio. Nesse tempo, Álvaro Maia exercia o cargo de Presidente da Caixa Econômica Federal no Amazonas. Residia na Praça de São Sebastião. Todos os dias, na hora do almoço, ele passava pela mercearia, sempre de terno claro e gravata a cores discretas, cumprimentava, com um gesto de cabeça, os freqüentadores do bar, e seguia o seu caminho.

Um dia, como a loja estivesse sem fregueses, ele parou e eu pensei que fosse comprar alguma coisa, mas não. Parou só para conversar. Descobriu o meu interesse por literatura e sobre o tema puxou conversa. Daí passei a freqüentar a sua casa, ali perto. Falou-me dos seus métodos de trabalho. Mostrou-me um poema que estava escrevendo sobre as pedrinhas da praça de São Sebastião. Contou-me que todo ano, em determinada época, passava uma temporada com sua mãe no sítio Goiabal, localizado no rio Madeira, em Humaitá, onde abastecia o espírito em conversas com os caboclos seus irmãos.

Aí, então, concluí que Álvaro Maia não era nem mito, nem, tampouco, um homem inacessível. Era a simplicidade em pessoa, mais encantadora, ainda, considerada a importância da sua vida, as funções que exerceu, as assembléias nacionais e internacionais de que participou, atuando ativamente, com os assédios de que foi alvo, cercado de áulicos, papagaios de pirata e dos oportunistas de plantão.

II

Álvaro Maia nasceu a 19 de fevereiro de 1893, no seringal Goiabal, no rio Madeira, município de Humaitá, de pai cearense e mãe amazonense. Veio criança para Manaus, onde fez o curso primário, e o secundário no Ginásio Amazonense, hoje Colégio Estadual do Amazonas. Fez o curso de Direito na Faculdade de Direito do Ceará, e na Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro, colando grau em 1913.

Toda a sua atividade estudantil, em Manaus, Fortaleza e Rio de Janeiro, então Capital da República, foi vivida em paralelo com as atividades intelectuais nos domínios da criação literária e na imprensa. Ao longo dos anos, já na maturidade, foi colaborador permanente dos Diários Associados que publicavam, em jornais de circulação nacional, seus artigos, ensaios e crônicas, a convite pessoal do jornalista Assis Chateaubriand, fundador e diretor da potência que foi aquela rede brasileira de jornais, rádio e televisão.

Aos 11 anos de idade estréia nas letras com o soneto Cabelos Negras, publicado no jornal estudantil Curumi. Aos 25, figura entre os 30 fundadores da Academia Amazonense de Letras.

A revista Redenção, dirigida por Clovis Barbosa, escolheu-o, por meio de concurso público, príncipe dos poetas amazonenses, com 21 votos, sendo seus concorrentes Jonas da Silva, que obteve 7 votos, Raimundo Monteiro, 6 e Francisco Pereira, Genésio Cavalcante e Heitor Veridiano, 1 voto cada. Contava, então, 32 anos.

Só aos 50 anos de idade estréia em livro, volume reunindo crônicas publicadas durante a campanha de produção da borracha, sob o título de Na vanguarda da retaguarda. Treze anos depois sai Gente dos Seringais, enfeixando crônicas sobre a vida na Amazônia. Dois anos mais tarde, lança três livros: Buzina dos Paranás, poesia; Nas Barras do Pretório, justificativa de sua vida pública e da sua ação política; e o romance Beiradão.

Em 1963 dá uma guinada em sua produção literária, convertendo o estilo, habitualmente, solene, herança da atmosfera parnasiana e simbolista experimentada na mocidade, em uma postura coloquial de períodos curtos e a incorporação de termos tópicos, sem desprezo dos neologismos telúricos. Vem à luz, nessa nova linha do seu labor artístico, os livros de crônicas e relatos da vida ribeirinha, intitulados Banco de Canoa e Defumadores e Porongas.

Em 1968, pouco antes da sua morte, lança Tenda de Emaús, livro de divagações espirituais, onde o escritor concentra o legado da sua crença e os fundamentos da sua esperança na vida eterna.

Só aí, dois anos antes, é que Álvaro Maia assume a presidência da Academia Amazonense de Letras, instituição que ajudara a criar a 48 anos.148

III

A vida política de Álvaro Maia foi tumultuada. Nem sempre coroada de vitórias, mas orientada por uma coerência exemplar. Logo aos 25 anos, insatisfeito com o panorama que se descortinava nos horizontes da nossa vida pública, sem qualquer aceno de mudança, lança-se, pela oposição, candidato a deputado federal, sem nenhuma possibilidade de êxito, e é derrotado. Mas não esmorece.

Aproxima-se o 9 de novembro de 1923, centenário de adesão do Amazonas à independência do Brasil. Uma instituição chamada Mocidade Amazonense promove-lhe os festejos comemorativos e elege Álvaro Maia para falar em seu nome. Deu-se a solenidade no Teatro Amazonas, e aí profere o célebre discurso intitulado Canção de fé e esperança.

Segundo Djalma Batista, depois dos famosos discursos-libelos de Heliodoro Balbi, a Canção de fé e esperança foi o documento decisivo da vida política do Amazonas.

Álvaro Maia cresceu ainda mais no conceito dos homens de bem. Após a Revolução de 30, foi chamado ao poder como Interventor Federal. Ficou no cargo até 1931.

Redemocratizado o país, em 1934 é votada a nova Constituição. Em 1935, por escolha da Assembléia Estadual, juntamente com Alfredo da Mata, vai para o Senado Federal, assumindo, logo depois, também por eleição indireta, o cargo de Governador Constitucional do Estado do Amazonas. Com o golpe político do Estado Novo, a 10 de novembro de 1937, é nomeado Interventor Federal, mantendo-se no poder até a queda de Getúlio Vargas, a 29 de março de 1945

Junto com Waldemar Pedrosa, Álvaro Maia foi eleito Senador da República, nas eleições de 2 de dezembro desse mesmo ano. No Senado assumiu a presidência da Comissão de Diplomacia e fez parte da Delegação do Brasil a uma reunião da ONU, em Paris, em 1948. Nessa ocasião apresentou trabalho sobre genocídio.

Em 1950, volta ao Governo do Estado, após vitória memorável numa disputa que teve como concorrente o Senador Manuel Severiano Nunes. Foi eleito na mesma ocasião em que Getúlio Vargas conquistou pelo voto direto a Presidência da República.

Antes do término do mandato, desincompatibilizou-se para disputar eleição ao Senado. Foi derrotado. Seguiram-se mais duas eleições perdidas. Mas não desistiu. Na quarta vez sua candidatura saiu vitoriosa, vindo a morte encontrá-lo no exercício do mandato de Senador da República.

Álvaro Maia exerceu inúmeras atividades como advogado e professor, tendo praticado o magistério em Manaus e no Rio de Janeiro, lecionando Instrução Moral e Cívica, Português-Lusitano e Português-Brasileiro, e aposentou-se, em 1966, como Presidente da Caixa Econômica Federal.

Faleceu na madrugada de 4 de maio de 1969, em aposentos do Pavilhão Santana, da Santa Casa de Misericórdia de Manaus, e está sepultado no Cemitério de São João Batista, em Manaus.

IV

Do ponto de vista do pensamento, o que chama a atenção em Álvaro Maia, é a coerência do seu comportamento de homem público e de sua postura de escritor. Desde os primeiros passos na militância política, Álvaro Maia defendeu a valorização do homem da terra, com a mesma força com que fez ressurgir em sua obra, em prosa e verso, o amazônida autêntico.

Mas não cultivava um regionalismo estreito. Vejamos o que diz em um trecho de sua Canção de fé e esperança:

Os amazonenses não sonham muralhas para o Amazonas. O sectarismo não encontra adeptos aqui. Desejam que homens de todos os climas selecionados procurem estes rios, purifiquem a raça e abram sulcos para as sementes. Pensem que esses homens, nacionais ou estrangeiros, têm direito às posições pelo esforço desenvolvido, que é a recompensa natural do trabalho. Querem apenas pudor, querem brio, querem competência, – palavras incolores e vagas, que passaram a ser verdadeiros milagres.

Na medida em que avançava nos anos, senhor da sabedoria que é feita de experiência, Álvaro Maia foi depurando o seu estilo, no anseio de interpretar a vida e os sentimentos do homem da Amazônia. Na introdução de Banco de Canoa, seu livro mais expressivo quanto ao aspecto da amazonidade, esclarece o mestre:

Essas narrativas e historietas, colhidas entre os seringueiros nos bancos de latadas e canoas, são verídicas ou produtos da imaginativa popular. Devo algumas à retentiva de Manoel de Souza Rodrigues, chefe da estação do D.C.T., de Humaitá, e a veteranos do Madeira. A linguagem foi um pouco modificada e atenuada nas expressões fesceninas, inerentes aos primeiros exploradores e aos atuais moradores. Falharia à verdade se torcesse suas palavras e pensamentos. Demais, é um livro de crônicas seringueiras, destinadas a seringueiros e operários da selva. Espécie de folclore pioneiro – caboclitude para imitar negritude, qualidade comum às atitudes e às condutas dos caboclos do interior.

A poesia, a Literatura, é um fenômeno lingüístico, mas, também, um fenômeno político. Este entendimento da questão está bem visível na obra de Álvaro Maia. Na medida em que firmava a sua posição em defesa da identidade do homem amazônida, a sua palavra, a sua prosa e a sua poesia, ganhavam os contornos de amazonidade que observamos, por exemplo, neste soneto:

Árvores e ventos

Folhas de alma verdor, selvas convulsionadas, que ergueis ao céu longínquo os galhos retorcidos, cessai por um momento esses longos bramidos, esse réquiem de angústia, esse bater de enxadas…

Em lutas de titãs, as árvores zangadas lançam em redemoinho os corações feridos: no clamor da procela há tremendos rugidos, no barulho da mata há furiosas risadas/

No arremesso brutal de um braço turbulento, em trovejante tropel, a torva ventania rasga, vivaz e viva, o velário violento…

– Ah! como me recorda esse quadro assassino o vão surto de ideal que tenho todo o dia! Ó floresta, és vida! ó vento, és o destino!

Escrito em alexandrinos bem equilibrados, há, no soneto, achados surpreendentes como “árvores zangadas”, para mostrar o embate dos ventos na floresta durante os temporais, no primeiro verso do segundo quarteto. No terceiro verso do primeiro terceto, em “rasga, vivaz e viva, o velário violento”, o poeta alarga a imagem na música sugerida pela aliteração em v. Enfrenta o pleonasmo “vivaz e viva”, tradicional na língua portuguesa desde o momento em que, no canto V dos Lusíadas, Camões escreveu, também para expressar a emoção ante os prenúncios de uma tempestade no mar: “vi’, claramente visto, o lume vivo”. Aventura-se na aproximação do “velário”, – que significa o local onde se concentra a luz das velas nos templos ou tumbas, – com os amplos reflexos dos relâmpagos em uma tempestade amazônica.

Observam-se, ainda, nesse poema, traços daquela tendência que os especialistas chamam de panteísmo, corrente filosófica florescente a partir do século XVIII e que, no século XIX, marcou os movimentos artísticos românticos. No romantismo, a música, a pintura, a poesia, que se manifestavam no homem como produto da centelha divina, levaram os artistas, músicos, pintores e poetas, a se ocuparem, em suas obras, dos fenômenos da natureza, das paisagens e seus elementos, como expressão do divino.

Castro Alves, o grande poeta romântico brasileiro, canta em O vidente:

Então, num santo êxtase, escuto a terra e os céus.

E o vácuo se povoa de tua sombra, ó Deus!

Vê-se, ainda, do ponto de vista formal, que Álvaro Maia não se escravizou aos maneirismos parnasianos e simbolistas, correntes estéticas dominantes nos períodos de sua formação. O Parnasianismo e o Simbolismo foram movimentos literários surgidos nas últimas décadas do século XIX e princípios do XX, e que dominavam o espírito dos fundadores da Academia Amazonense de Letras, em 1918. E Álvaro Maia estava entre eles.

Mas Álvaro Maia acompanhou a mudança dos tempos e as novas tendências do fazer literário. Enquanto o ideal das referidas concepções literárias defendia o predomínio da forma sobre o conteúdo, as linhas modernas anunciavam o predomínio do conteúdo sobre a forma.

Senão vejamos.

Este soneto está construído, basicamente, em decassílabos. Mas nele aparecem versos de onze, treze e nove sílabas. Apreciando outros dos seus poemas, observamos que o poeta era verdadeiro mestre do verso. Não se pode também acusar o editor de negligência na impressão do soneto, porque Buzina dos Paranás, livro de onde foi extraído o texto, teve sua primeira edição lançada sob a revisão do autor, em 1958.

Conclui-se, em verdade, que o poeta, neste soneto, como, sem dúvida, em outros poemas escritos no período, já se movia tocado pelas novas tendências do verso livre, numa peça que, em nenhum momento, foge ao espírito do soneto, harmonia, proporção, equilíbrio.

Pelo mínimo que foi dito aqui, sobre esta grande figura das nossas letras e da nossa vida política, Álvaro Maia constitui o mais alto exemplo de figura representativa da nossa identidade cultural. Lembrá-lo, nesta bela noite de maio, faz-se à sua memória mais do que justiça.

Cumpre-se um dever.

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143 Dados biográficos levantados por Djalma Batista e publicados na Revista da Academia Amazonense de

Letras, no.1

Continua na próxima edição….

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