Manaus, 16 de setembro de 2024

Vim de igarité a remo (Ensaios e memória)

Compartilhe nas redes:

Continuação ….

Cultura

A Amazônia Ocidental

V

Ao examinar as características do homem da Amazônia interior, lembro-me das lições de Alceu Amoroso Lima13, ao estudar a questão do homem e o meio, do homem e a geografia. Traça ele um perfil do brasileiro do litoral e do brasileiro do sertão, de modo claro como era do estilo daquele nobre pensador. Leciona ele que, o homem do litoral tem sede de mudanças e o do sertão, é conservador. Os praieiros possuem espírito universal, ao contrário do nacionalismo dos homens do centro. O homem do litoral é cordial e confiante ao revelar os seus sentimentos; o do sertão é hospitaleiro, mas as suas almas não se abrem tão facilmente assim.

Na Amazônia Ocidental ou Interior, isto é, na Amazônia onde se delimitam os Estados do Acre, Amazonas, Rondônia e Roraima, o homem vive longe do mar, ao contrário da Amazônia Oriental ou Atlântica, dos Estados do Amapá e Pará, banhada pelo oceano. Estaria, portanto, o amazônida ocidental, mais perto do perfil do homem do sertão, conservador e movido por acendrado espírito de brasilidade. É, também, hospitaleiro, mas dificilmente mostra os escaninhos da alma. É desconfiado e sorrateiro, dá a impressão, à primeira vista, de estar sempre de pé atrás, apto a aplicar um ponta pé no traseiro do zombador da sua hospitalidade. Custa a se fazer amigo, mas quando se faz, é amigo para toda a vida, capaz de oferecer ao amigo a própria camisa.

Um fato que o distingue do homem do sertão concebido pelo mestre Alceu, é a presença do rio. Os longos e largos rios amazônicos são um convite permanente de viagens, uma abertura para o mundo. O homem amazônico, de modo geral, vive viajando. Seus planos diários se alimentam da necessidade de viajar, nem que seja para visitar um amigo, tomar a bênção dos velhos, pais, tios, avós, que possuam domicílio noutro lugar, participar da festa do santo padroeiro da sua cidade, ou, simplesmente, mudar um pouco de paisagem. Quando as coisas ficam feias, ele parte em busca de melhores dias noutras paragens, mas não esquece jamais do seu torrão, da sua pátria.

Araújo Lima, no livro clássico Amazônia, a terra e o homem, ao estudar o homem amazônico, atendo-se no homem de Maués e de sua participação na guerra da Cabanagem, põe em relevo o destemor, a honradez, o amor a terra como timbre desse homem, descendente dos Mundurucus, origem da Mundurucânia.

Sem forçar a mão, pode-se interpretar o conceito emitido sobre o homem de Maués pelo nobre pensador Araujo Lima, que tal comportamento, tal postura interior, é particularidade que se estende a todo o amazônida ocidental, conservador, apegado à terra, com extrema antipatia aos esquemas de mudança. Se a mudança vier para melhorar a vida, tudo bem, mas como se saberá se é melhor aquilo que não foi experimentado? O nosso homem não gosta de experiências, ele se sente mais confortável nos procedimentos experimentados. Se o seu vizinho fez uma coisa de resultado certo, ele acha que, em circunstâncias semelhantes, deve proceder da mesma forma.

Mas a tendência é deixar as coisas como estão, numa atitude de acomodamento que se enraizou na índole desse homem. Daí o seu modo de ver as coisas. Para ele tudo é intocável, os fenômenos comprometidos com o meio ambiente e os vinculados ao desenvolvimento socioeconômico da região. A floresta é intocável, a Zona Franca é intocável. Numa atitude contemplativa, mas estática, bem ao contrário do que acontece na realidade.

Sabe-se que a vida se enriquece com o ânimo de mudanças, porque a vida, afinal, é dinâmica. A floresta intocada se torna improdutiva, como diria Djalma Batista. Mais do que improdutiva, a floresta intocada morre caduca. O que, no entanto, não nos autoriza a sair mata adentro, empunhando motosserras, derrubando árvores a torto e a direito, para saciar a sede de lucros imediatos. Porque aí, estaríamos eliminando os mananciais e afogando a vida do Planeta. Estaríamos colaborando com a formação do deserto em que se transmudará a Amazônia se a despojarmos de sua roupagem verde, pois os seus solos são pobres em nutrientes e o que os mantém é a massa de matéria orgânica produzida pelas árvores. Verdade comprovada por estudiosos daquém e dalém mar, de ontem e de hoje. O manejo da floresta deve ser feito com amor e conhecimento cientifico, duas condições que já sustentam hoje o comportamento das comunidades amazônicas. Nessas comunidades o amor à terra já despontou como conteúdo de nossa consciência social, acentuado pela assimilação política assumida sobre ela; e o conhecimento científico, também, alcançado com as atividades de instituições como o INPA e a Universidade, representada por instituições públicas e particulares de ensino.

Outro alvo tocado, a política de incentivos fiscais da Zona Franca de Manaus, que se mostrou fartamente positiva como instrumento de integração nacional, implantada em 1967, e hoje expandida em Manaus num dos mais significativos parques industriais do país, e irradiada a todas as unidades políticas da região, no momento da sua criação destinada a incrementar o comércio, a agricultura e a indústria, também caducaria se não tivesse acompanhado em seu funcionamento, os humores do mercado e as tendências da economia. Ao longo destes últimos 50 anos, esse modelo de desenvolvimento veio ajustando-se às novas disposições socioeconômicas do país, em que não faltaram, nem as mudanças dos regimes políticos e, na estabilidade democrática, os diversos estilos de governo. Graças às adaptações sofridas em sua legislação, a Zona Franca de Manaus passou a constituir-se, hoje, é bom repetir isso, em um fenômeno nacional, de interesse não só do amazônida ocidental, para quem ela foi proposta, mas para toda a Amazônia e o Brasil.

Examinemos, em seguida, três exemplos de criaturas da floresta no mundo vegetal, o Pau Rosa, a Castanheira e a Seringueira, numa amostragem para reflexão sobre este aspecto da vida na Amazônia,

O Pau Rosa é uma árvore que alcança até trinta metros de altura. Trabalhei numa usina de extração de essência de Pau Rosa, onde meu pai era gerente, implantada no rio Uaicurapá, no município de Parintins. Não sei como é que está hoje, mas naquele tempo era uma região de grande produção dessa madeira, e ali observei como era feito o serviço. As árvores eram derrubadas e apenas as hastes dos troncos aproveitadas. Os mateiros, após derrubar a machado as árvores, serravam a mão e rolavam as grandes toras do meio da mata até à margem do rio, onde recebiam o transporte em possantes batelões, até chegar à usina. Ali na usina as toras eram rachadas a machado e as achas trituradas por serras circulares movidas a vapor. Colocava-se o cavaco nos alambiques aquecidos também a vapor, ficando em infusão até boiar o óleo enfim colhido com recipientes próprios e acondicionado num tambor de duzentos litros ou cento e oitenta quilos, prontos para exportação. A essência de pau-rosa é um produto rico em propriedades industriais. Dele se extrai, por exemplo, o linalol, elemento largamente usado como fixador de fragrâncias na indústria dos mais caros perfumes.

Hoje se descobriu que a maior fonte de essência do Pau Rosa está nas folhas e nos galhos, partes que eram deixadas para trás pelos mateiros daquele tempo recente. Com esse processo as árvores em breve se regeneram. Ao contrário do sistema anterior que matava a árvore pela base. É preciso, no entanto, para conseguir-se maior rentabilidade a esse precioso produto da floresta, ir plantando novas mudas para compensar as árvores que foram derrubadas antes da descoberta do novo processo de extração da planta.

A Seringueira, por sua vez, atinge até quarenta metros de altura, com um metro de diâmetro no tronco. Vive mais de duzentos anos. Isto quer dizer que a sua produção de látex vai diminuindo com o tempo até o esgotamento. Aí seria mais econômico derrubar a árvore para o aproveitamento da madeira que é também apreciável na indústria moveleira. Plantando-se outra muda no seu lugar.

O sistema dos seringais de cultivo não deu certo na Amazônia. Acusa-se, para justificar o insucesso dessa política, o desvio dos recursos que não foram aplicados integralmente na tecnologia estabelecida nos projetos e exigida pelos agentes financeiros, mas investidos em outros negócios.

No entanto, até nos que levaram a sério o empreendimento, não se alcançou colher bons resultados. O plantio conjunto de seringueiras facilitou a disseminação do mal das folhas. Estuda-se intensamente esta questão em todo o país. No Estado do Acre, experimentou-se o plantio de clones de copa consorciado com café.

Na floresta, mais uma vez, talvez esteja a solução do problema. As seringueiras naturais não sofrem do mal das folhas. Simplesmente porque a floresta amazônica é formada de inúmeras espécies de árvores, existindo em permanente consórcio entre si. As áreas de predomínio das espécies não ficam isoladas. Plantam-se em largas distâncias umas das outras, entremeadas de diversas espécies. O inseto disseminador do mal, que só subsiste abrigado nas folhas das seringueiras, não consegue voar de uma seringueira à outra e morre a caminho, nas folhas das árvores estranhas ao seu habitat. Os seringais naturais possuem esta formação. Quem sabe não daria certo se plantar os seringais em plena floresta, entremeados com outras árvores, tal qual acontece com os seringais nativos?

A Castanheira que produz a conhecida castanha-do-pará e, no mercado externo, também chamada de noz do Brasil, nas matas primárias vai até quarenta e cinco metros de altura. É nativa da Amazônia e vive nas terras firmes. Não se conhece a idade da Castanheira e a sua madeira é de excelente qualidade, mas não é usada porque a sua fruta contém maior valor. Das suas nozes se extrai até 67% de um óleo comestível de excelente qualidade e que serve também na indústria de sabonetes finos. Os curandeiros aplicam suas folhas em chás usados na cura de moléstias crônicas do fígado. A casca das árvores fornece estopa da melhor qualidade e fibras utilizadas na cordoaria.

Mas a castanheira deve possuir um ciclo de vida determinado, como todo ser vivo. E, sem dúvida, com o tempo ela poderá reduzir a sua produção como ocorre com todos os seres envelhecidos. Ter-se-ia, então, para levantar estes dados, de proceder a um inventário minucioso desses indivíduos nas áreas de sua maior incidência, locais já conhecidos pelo estudo da natureza dos solos já realizado, associando aos mateiros, coletores dos seus frutos embaixo das árvores, botânicos e biólogos, para acompanhar ano a ano o seu desempenho.

É certo que não será fácil acompanhar os mateiros nas suas atividades. Isto porque o mercado da noz do Brasil é muito especulativo, desde a coleta dos frutos da Castanheira. Quando o preço do produto não está bom o mateiro prefere deixar as frutas embaixo das árvores. Até que as coisas melhorem. E o homem não se quer ver flagrado em atitudes sorrateiras, prefere não ter testemunhas por perto, sobretudo se for gente desconhecida da cidade. Mas, não custaria tentar.

13LIMA, Alceu Amoroso (Rio de Janeiro 1893 – Petrópolis 1983), escritor e filósofo.

Continua na próxima edição…

Views: 17

Compartilhe nas redes:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

COLUNISTAS

COLABORADORES

Abrahim Baze

Alírio Marques