(Em homenagem a Moysés Benarrós Israel, judeu amazonense e grande benemérito de Itacoatiara).
O estabelecimento de imigrantes judeus na Amazônia começou na segunda metade do século XIX. No início, como que para aventurar, vieram poucos. Depois, ao contrário da maioria dos colonos estrangeiros, vinham acompanhados da mulher e dos filhos, a confirmar o caráter gregário e doméstico da vida judaica, milenarmente presa aos valores religiosos e culturais centralizados em torno da família e da comunidade. Essa é a superior razão de progresso do povo hebreu: onde quer que chegue prestigia os seus conterrâneos e, assim, assegura a sobrevivência de sua própria cultura e tradição. Tais imigrantes, em sua maioria, segundo o sociólogo Samuel Benchimol (1923-2002), provinham do norte da África, especialmente de Tânger, Tetuan, Rabat e Casablanca, do Marrocos francês e espanhol, e Argélia, bem como de Lisboa e outras cidades portuguesas, e comunidades sefaraditas (do hebraico Sefarad = espanhol), onde se haviam instalado nessa parte do continente Afro-Ibérico, após a Diáspora.
Espalhando-se inicialmente em pequenos contingentes pelas cidades marginais dos rios Amazonas e Madeira, foram empregados em escritórios e estabelecimentos comerciais, ou atuaram em atividades comerciais de aviamento e regatão. Voluntariosos, haja vista que sua corrente migratória nada custou aos cofres nacionais, para o escritor Abraham Ramiro Bentes “os anseios de promoção econômica fomentavam a vinda de homens jovens dispostos a realizar um proveitoso futuro, em terras distantes. Parte deles trouxe dinheiro que haviam podido reunir em seus trabalhos iniciais no Brasil ou trazidos de seus países de origem. Aqueles de menor posse eram logo empregados nas casas de seus correligionários ou mesmo como agentes de grandes casas comerciais”.
Mais tarde, já no boom da borracha, tornaram-se arrendatários e/ou proprietários de seringais e compradores de produtos regionais, negociando nas praças de Belém e Manaus. Entre as causas motivadoras da vinda dos judeus para nossa região, avultavam o desemprego, sobretudo dos mais jovens; a falta de liberdade para professarem sua religião; a insegurança em face da permanente situação de conflitos internacionais na sua área de origem; e as más condições sanitárias em Tânger e Tetuan, principais cidades de sua residência. Acrescente-se a estas as notícias de enriquecimento favoráveis recebidas dos que os haviam antecedido na região amazônica, além das facilidades de transporte entre o norte do Brasil, a Europa e a África proporcionadas pela empresa inglesa Booth Line, cujas linhas de navegação, inauguradas em 1866, propiciaram a regularização do serviço de cargas e passageiros entre o norte brasileiro e a Ilha da Madeira, Lisboa, Leixões, Vigo, Hamburgo, Havre e Liverpool, com transbordos para Paris e Londres. Posteriormente, utilizando os transatlânticos Hildebrand, Alban, Aidan, Pancras,Stephen e Denis, foi criada outra linha para os Estados Unidos com escalas em Barbados, além de uma numerosa flotilha de vapores de carga.
Releva ainda informar que, entre 1897 e 1903, navios da empresa italiana Ligure Brasiliana trouxeram imigrantes italianos, franceses, espanhóis e judeus para a Amazônia, a partir do porto de Gênova.
Com a entrada do século XX os surtos migratórios foram acelerados. Em relação aos judeus, credita-se tal fenômeno não só à crescente prosperidade dos correligionários já aclimatados na Amazônia, mas aos perigos impostos pela primeira guerra mundial (1914/1918) àqueles que ainda perambulavam pela Europa.
Não encontrando em sua terra natal condições favoráveis de sobrevivência e para a prática da religião professada, vieram ter a este pedaço da Amazônia, provavelmente a partir de 1880. Isaac José Perez e Moysés Ezagui foram os primeiros atores dessa epopeia. Cunhados (a esposa de Moysés, dona Ester Ezagui, era irmã de Isaac), assim que chegaram construíram casa de aviamento e exportação de produtos regionais, motivando mais tarde a chegada de outros correligionários, com destaque para: Ananias Cohen, David Kados, Abraham Kados, Ledícia Malca, Amabtyr Symi Carlos, David Benaion Sabá e Elias Alves.
Isaac José Perez (Foto Google)
Em 1897, segundo registros no Diário Oficial do Estado, Isaac Perez – que nos idos de 1926/1930 iria assumir a Prefeitura do Município – já realizava negócios no circuito Manaus-Itacoatiara. Instalado na “Casa Moysés” – inaugurada em 1890 e assim denominada em homenagem ao profeta Moisés – um estabelecimento comercial de importação e exportação criado sob a razão social de Moysés Ezagui e Cia., mais tarde A. Ezagui & Cia., e, em virtude de distrato celebrado em 07/12/1912 junto à Junta Comercial do Amazonas, foi reintitulada de Marcos Ezagui & Cia. Dita firma, a partir de 1925, foi sucedida por Isaac Perez & Cia., e dela, além de Isaac, era sócio o judeu itacoatiarense Ambrósio Moysés Ezagui: advogado formado no Rio de Janeiro, que anos depois exerceria a função de juiz de Direito da Comarca local.
Situada à Rua Saldanha Marinho nº 39, a “Casa Moysés” faz frente para o Rio Amazonas, e é um importante marco do centro histórico de Itacoatiara. Herança da colônia judia, em sua parte superior exibe três figuras romanas representativas do comércio e da gestão empreendedora. No século passado, além da firma Ezagui & Irmão, o prédio sediou as agências da companhia de navegação Booth Line (décadas de 1930/1950), do Banco do Brasil (1950/1960) e uma representação da Cervejaria Antarctica (1970/1980). A data de sua inauguração (1890), inscrita em uma placa no seu frontispício, parece confirmar a tese que comungamos segundo a qual a primeira comunidade judia de Itacoatiara realmente remonta aos idos de 1880.
Casa Moysés em estado de abandono (Foto Google)
Os hebreus contribuíram eficazmente com o desenvolvimento de Itacoatiara. Durante muito tempo lideraram a movimentação econômico-financeira da cidade. Em 1899 o volume de exportação, através do porto da cidade, superou a cifra de Rs. 370:000$000 (trezentos e setenta contos de reis), equivalendo a milhões de reais, em moeda atual. Nos dez anos seguintes, a firma francesa De Lagotellerie (sucessores de Denis Crouan & Cia.), exportadora de borracha e importadora de secos e molhados, representada por judeus, manteria uma filial em Itacoatiara. Pelo menos nas duas décadas seguintes, a empresa comercial Isaac Perez & Cia. competiu em igualdade de condições com as nacionais locais J. Adonias & Cia. e Óscar Ramos, além de outras congêneres sediadas em Belém e Manaus.
Entre o final do século XIX e início do seguinte, mais de duas dezenas de prédios em estilo clássico foram construídos em Itacoatiara, à custa da colônia judia. A “Casa Moysés”, pertencente hoje aos herdeiros do falecido empresário Nicolas Euteme Lekakis, judeu de origem grega que aportou na cidade no início dos anos 1950, está carecendo de restauração, posto que relegada ao abandono. São da mesma época: Um. O prédio da antiga “Casa Anglo Brasileiro”, à Rua Waldemar Pedrosa nº 49, que hoje dá lugar ao supermercado Ouro Verde. Embora parcialmente demolido, sua parede frontal externa ainda exibe azulejos importados de Portugal (lembrança daqueles áureos tempos). No início do século passado sediou a casa de comércio do judeu Leon Elmaleh e, nos anos 1920, a loja “O Canto das Novidades”, do português Óscar Ramos, especializada em modas; Dois. O do antigo “Café Internacional”, na esquina da Praça da Matriz com a Rua Saldanha Marinho, que durante muito tempo sediou a agência dos Correios e Telégrafo e hoje pertence ao empresário José Antunes de Araújo (popular Zé Batista); Três. O da antiga Casa Importadora e Exportadora de Ezagui & Irmão, também conhecida por “Casa Marcos”, no canto da Praça da Matriz com a Rua Quintino Bocaiuva: sediou, na primeira metade do século XX, movimentadíssimo empório de compra e venda de produtos regionais e, nos anos subsequentes, o Cine Botafogo, a Importadora Itacoatiara Ltda., a agência da CODEAGRO, a feira alternativa do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, o escritório do deputado Nelson Azedo e atualmente a representação do DETRAN/Am.
Café Internacional, anos atrás (Foto Google)
Nos dias correntes, entre os monumentos descritos, destaca-se a “Casa Marcos”, assim denominada por que construída por Marcos Ezagui, um dos irmãos do pioneiro Moysés. Há cerca de dez anos atrás, esse imóvel foi totalmente restaurado guardando suas linhas arquitetônicas originais. Junto como os demais implantados no centro histórico simboliza o faustoso período da borracha, e traz à memória dos habitantes da cidade fatos significativos que, no quadro geral do tempo, marca a contribuição dos imigrantes judeus ao esforço dos itacoatiarenses em se destacar no processo histórico amazonense. Tais monumentos, além de ensejarem elevar a autoestima dos habitantes da velha Serpa tornando-os sempre e cada vez mais orgulhosos da sua cidade, despertam a curiosidade e imprimem admiração àqueles que a visitam.
A “Casa Marcos” difere de tantos outros prédios já destruídos pelo desgaste dos anos ou demolidos pela ação deletéria dos homens. Caso da “Usina Cecy”, no bairro da Colônia, outrora um centro industrial de beneficiamento de borracha, e da ‘carreira’ que ficava nos fundos dela, à margem do Rio Amazonas, onde se construíam ou montavam navios ou embarcações menores, ou se os içavam para reparos e limpeza do casco. Caso das casas de taipa, tipo meia-água, onde residiram os Benchaya (bairro da Colônia) e os Ezagui: Rubens (Avenida Ruy Barbosa), Estrela e Augusto (proximidades da Igreja Matriz).
No período 1880/1920, da relação das famílias judias que residiam em Itacoatiara constam: Isaac José Perez e Rachel Benchimol Perez, Moysés Ezagui e Ester Perez Ezagui, José Leão Ezagui e Orovida Ezagui. Descendentes do casal Isaac-Rachel Perez: o filho Leon (engenheiro industrial); de Moysés-Ester Ezagui: os filhos Jacob (Jacobito), Ambrósio (advogado, depois juiz de Direito), Leão, Fortunato e Cotinha; e de José Leão-Orovida Ezagui: os filhos Luna, Raquel, Abrahão, Rubens (Chunito), Estrela (Sarapó) e Augusto (Capitão) – os três últimos nascidos em Itacoatiara. Além destes, também residiram nesta cidade: Pacífico Ezagui, Marcos Ezagui, Jacob Benchimol, Leão Ezagui, Samuel Ezagui, Salomão Ezagui, Isaac Benchaya, Azulay Benchaya, Fortunata Cohen Alves, Rica Bensemana, Dinah Ohana, Moysés Azulay, etc..
Casa Marcos pos-restaurada (Arquivo do autor)
Na década de 1920, a colônia judia itacoatiarense atingiu cerca de 300 membros. Eram quase todos comerciantes, e a grande maioria deles morou no bairro da Colônia, exatamente “nas dezoito” (alusão às dezoito casas de taipa da Rua Moreira César, datadas de 1850/60).
A colônia dos judeus guardava tradição secular e desde o início vinha professando a religião em sua sinagoga situada à Rua Deodoro, atual Adamastor de Figueiredo, defronte ao Colégio Nossa Senhora do Rosário – residência de dona Ester (viúva, nos idos de 1920, de Moysés Ezagui). A Casa de Culto seguia o rito ortodoxo. Dito imóvel – que na segunda metade do século XX iria pertencer à família do comerciante José Victal – ainda guarda as feições de antigamente (mais de 120 anos!); integra o enorme conjunto de casas do centro histórico formando a quadra que vem da Praça da Matriz (desde a ex-loja Casas Pernambucanas e o antigo BASA), limitando, ao sul, com a Rua Quintino Bocaiuva e, ao norte, com Adamastor de Figueiredo, até a Rua Cassiano Secundo. A maior parte desse casario pertenceu aos Ezagui e, como dito antes, foi por eles construído entre o final do século XIX e começo do seguinte.
No Cemitério Israelita, aberto em 1919, ao lado do Cemitério Divino Espírito Santo, na Avenida 15 de Novembro, há 32 sepulturas, e somente 14 delas com inscrições legíveis. Esse importante monumento histórico integra uma área de 300 metros quadrados (20 m x 15 m). Inexplicavelmente, acha-se relegado ao abandono carecendo de cuidados.
Conforme acima citado, os hebreus contribuíram enormemente para o progresso de Itacoatiara. Ao distribuírem emprego e renda, ajudaram a formular riqueza. Centraram suas atividades no comércio, na indústria de beneficiamento e exportação de borracha, madeira, castanha, essência de pau-rosa, couros e peles silvestres, cacau, balata, sorva, etc..
Ecumênicos, colaborativos, aqui e acolá os judeus se irmanavam com os católicos, então liderados pelo vigário português padre Joaquim Pereira (1878-1958). Estando, em 1926/1927, a velha Igreja Matriz assaz deteriorada, foi dado início à construção de uma nova. O prefeito Isaac José Perez conseguiu junto ao presidente do Estado, Efigênio Ferreira de Salles (1879-1939), recursos para iniciar a construção. E nos anos seguintes foi ativo nos trabalhos da comissão pró-construção da Igreja. Os irmãos, ainda jovens, Chunito e Estrela Ezagui também contribuiram: o primeiro transportando em seu próprio barco pedra e areia do interior até o local da construção; e a segunda integrando grupos para arrecadar fundos para o novo templo através de campanhas, festas e arraiais (leilões, sorteios, bingos, etc.).
Moysés Benarrós Israel (Foto Google)
Uma referência especial ao judeu amazonense Moysés Benarrós Israel – exemplar figura humana, símbolo de benemerência e um dos maiores empreendedores da Amazônia. Nasceu em Manaus no dia 10 de fevereiro de 1924, mas passou (aliás, tem passado) grande parte de sua vida em Itacoatiara, que a elegeu como objeto de programas e projetos que convergem para o incentivo à cidadania e à integração sócio-educativo-cultural. Quando ainda muito jovem (há mais de 70 anos), implantou em Itacoatiara um grande patrimônio imobiliário-agrícola-industrial. Várias centenas de hectares de terras da sua antiga Fazenda Cacaia, a leste da cidade, foram por ele doadas para sediar os campus da UFAM, da UEA e do CETAM, além das instalações do Centro de Eventos do Município, que anualmente sedia o FECANI. Ainda, como diretor da FIEAM, do SEBRAE, do IEL, do SESI e do SENAI, Moysés investiu na alfabetização de crianças e velhos e na educação e formação profissional de jovens e adultos.
No passado dia 30/05/2015, a UFAM fez-lhe justiça ao inaugurar a “Memorália Moysés Israel”, criada em sua homenagem. Além de familiares do ilustre homenageado, da alta direção da Reitoria e do Conselho Universitário da UFAM e de diretores da FIEAM, deslocados de Manaus, compareceram professores, estudantes e admiradores do homenageado – tanto da capital como de Itacoatiara. A cerimônia teve início no salão de conferências do ICET/UFAM e finalizou na casa que por várias décadas foi residência de Moysés Israel, no centro do Campus Universitário – uma centenária construção que ele há anos doara à UFAM, – que por algum tempo sediou o setor administrativo do ICET/UFAM e, a partir de agora, abriga a Memorália contendo o acervo biográfico, documental e sentimental referente ao eminente humanista e empresário amazonense, grande benemérito de Itacoatiara.
A Saga dos judeus, tanto na Amazônia quanto em Itacoatiara, precisa ser contada em sua inteireza, a fim de relevar e dourar os méritos pessoais e profissionais de seus mentores, fazer justiça enfim aos que tomaram parte da relevante trajetória. A título de exemplo, ressalto a figura de Isaac José Perez – homem educado e tranquilo nos gestos; empresário criativo e corajoso; político honesto e empreendedor que, à frente da Prefeitura Municipal de Itacoatiara, desenvolveu uma atividade assombrosa na execução de melhoramentos imprescindíveis à completa remodelação da cidade. Seu nome entrou para a história. Deixou saudades.
Bibliografia/referências:
Livros do autor: “Cronografia de Itacoatiara”, volumes 1º (Manaus, 1997) e 2º (Manaus, 1998).
Abraham Ramiro Bentes, “Das ruínas de Jerusalém à verdejante Amazônia”, Rio, 1987.
Samuel Benchimol, “Estrutura geossocial e econômica da Amazônia”, Manaus, 1966.
Entrevista com Moysés Israel, Manaus e Itacoatiara, 1988.
Entrevista com Rubens Ezagui (o Chunito), Manaus, 1987.
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