Manaus, 21 de novembro de 2024

O (ser)tão Itacoatiarense!

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Certamente abrir as páginas da história para investigar seus registros e origens requer cuidado e zelo, sobretudo, quando se tratam de evidências do saber coletivo, por isso, não particular. Entretanto, muito daquilo que ficou cravado na memória popular chegou até os últimos tempos por meio de entes que (assim como a matéria de suas narrativas) se tornaram lendários.

Por exemplo, sabe-se que, no sertão brasileiro, existiram os Maciel, família da qual se originou o líder mártir do arraial de Canudos, mas não foi a datação cronológica de sua existência que fez de Antonio Conselheiro – na linguagem de Euclides da Cunha – a figura messiânica fincada na alma do sertão. As atitudes, os gestos e o perfil do personagem euclidiano cunharam sua própria história.

Não diferente se fez no seio da Amazônia, aonde veio parar uma família catalã: os Barros, que contrastam com os Maciel, no que se refere à riqueza material, porém assemelham-se muito no caráter emblemático de um de seus filhos. Zé Barros, mestiço evidentemente do europeu com o nativo brasileiro, desconheceu a fortuna da família (por razões não realçadas nesta crônica), mas cuidou de aproximar-se da riqueza infindável da região que o criou.

Se forem buscar as origens das manifestações folclóricas no povoado de Itacoatiara, no Estado do Amazonas, aparecerão os feitos do herdeiro catalão. Afiguram-se a ele as brincadeiras de boi-bumbá, os cordões carnavalescos, as rezas relativas ao cristianismo ou ao misticismo, além da verbalização peculiar dos contos regionais, tudo aliado ao seu perfil inato de artista do povo (cantor, compositor, dançarino, boêmio e polêmico).

Esse miscigenado merece ser estudado, não porque os traços europeus d’os Barros marcam a história itacoatiarense, nomeando inclusive seus logradouros, mas pela comunhão que manteve com a sua pátria amazônida. Zé Barros, não letrado, jamais será chamado de iletrado, uma vez que cantou sua paixão: – Oh lá vai boi, boi contrário, é boi de verdade não é farol, é o batente do boi Treme-terra que quando canta balança o sol. Cantou sua alegria: Naquele tempo aqui na Velha Serpa, as ruas todas eram um lamaçal, hoje as ruas estão asfaltadas e a Tia Suzana vem p’ro carnaval. Cantou sua terra: Itacoatiara, minha cidade bela, és toda colorida, princesinha, donzela. Olha, quem foi você? E hoje, quem tu és? A noivinha querida, toda adornada da cabeça aos pés!

Seus contemporâneos, ainda no ano que se segue, testemunham seus feitos. Embora raro, encontram-se vivos, na Velha Serpa, aqueles como Valmiro Borges, que se tornaram referenciais folclóricos a partir do contato com os folguedos de Zé Barros; aqueles como Eliezer Farias, que entoaram numerosas ladainhas e novenas de santos padroeiros locais acompanhados da voz característica desse “capelão” mestiço; ou aqueles como Maria José Amazonas, que tiveram o conforto das exéquias de sua matriarca encaminhadas por esse, também, encomendador de almas.

Do mesmo modo que o descendente d’os Maciel, o filho d’os Barros teve como escola as lições de suas andanças (pelos rincões da Amazônia), de suas leituras do universo caboclo, de suas lutas diárias enquanto sobrevivente de seu lugar, de sua revolta pela desonestidade de alguns e de sua coragem de buscar a fortificação da cultura de sua gente. Não finda, portanto, aí o retrato do afamado mestiço. Há que se revelar cena a cena desse enredado registro, que se petrificou na memória de um tempo, do qual ecoam fortes ruídos místicos, religiosos, sociais e folclóricos, aguardando não serem silenciados como tentaram fazer (felizmente em vão) com o Conselheiro.

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