Manaus, 4 de dezembro de 2024

A Cidade de Manaus – Sua história e seus motins políticos

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*Bertino de Miranda

III

Tratado de 1777. Diplomacia portuguesa e castelhana no Solimões. Governo de Lobo de Almada. – Ressurgimento da agricultura. – Industria pastoril. – Manáos sede da Capitania. – Os dois últimos Governadores Victorio da Costa e Manuel do Paço.

As Demarcações do Tratado de 1777 provocam outra vez no Amazonas graves ocorrências. As discordâncias de 1750 se desculpam com o conhecimento imperfeito dos lugares por onde se mandava correr e locar a linha. O Mapa das Côrtes havia sido organizado (1749) por Alexandre de Gusmão com o auxílio da Carta de Viagem da La Condamine e os dados fornecidos pelos canoeiros e Carmelitas. Mas, em 1777, depois de tanto tempo e após fundar-se e prosperar a Capitania, elas ressurgiam com maior intensidade!

No Içá os castelhanos possuíam em 1763 um povoado. Este rio lhes ficará pertencendo. No curso superior do Rio Negro possuíam duas fortalezas. A linha deve cobrir todos os estabelecimentos portugueses que já existissem ao se assignar o Tratado de 1750. O descuido fora enorme. Esses estabelecimentos, três no Japurá e as povoações das cachoeiras do Rio Negro, tinham sido fundadas depois e algumas até muito posterior a ele! Outro trecho obscuro e confuso era o canal de comunicação entre o Japurá e o Rio Negro. Qual devia ser? Na enchente todos os rios que desembocam na margem austral do segundo davam passagem para o primeiro. Essa obscuridade, si se tomasse muito á letra, fazia-nos perder alguns pontos estratégicos. No Solimões perderíamos Tabatinga, colocado a margem que se cede à Espanha até o Japurá.

João Pereira Caldas, Plenipotenciario português, chega a Barcellos (1780) com duas partidas de astrônomos e geógrafos. Seu primeiro ato é ordenar o arranjo de cômodos em Borba e em Ega. Em Barcellos edifica um palacete e uma fábrica de tecer panos de algodão. Mendonça Furtado preparara um quartel, um armazém de deposito, uma olaria, uma ponte que ligava os dois bairros da Villa, e um cães de madeira. Reside sempre no hospício dos Carmelitas, que ele também transforma noutro palacete. Mais em cima Caldas edifica para seu uso uma casa de campo, onde recebe as pessoas conhecidas e despacha os papeis. Ai convive com Manuel da Gama Lobo de Almada; é talvez nesse refúgio que os dois trocam impressões e discutem os planos com que o segundo irá pôr em realce o seu nome. Esse contacto lhe deve ser proveitoso; Caldas vinha de um reinado que, pelo menos no papel, tocara todos os problemas econômicos e se consumira inutilmente em realiza-os no Ultramar.

Os comissários não perdem tempo. Henrique Wilkens, Euzebio Ribeiro e Pedro Alexandrino, que remonta, no século XIX, as cabeceiras do Araguary; Simões de Carvalho e Victorio da Costa, que têm de explorar o delta do estuário, tomam diversos rumos. Ricardo Serra e Silva Pontes vão explorar o rio Branco. Mais tarde irá Lobo de Almada, que por ora continua no governo de Macapá. O subcomissário Theodosio Chermont dirige-se com alguns deles ao Solimões, onde vamos assistir a uma das lutas diplomáticas mais interessantes do século XVIII. Requeña, Plenipotenciario castelhano, aporta a Tabatinga com toda a pompa. Traz uma corte lúzida; a mulher deslumbra logo pela formosura e magnificência. Vários sonetos, na hipérbole incorreta do tempo, celebram com entusiasmo a sua vinda. Os soldados portugueses oferecem-lhe um desenho synabolico, quatro figuras de pajens soprando em trom- betas, que representam a fama, com estes dizeres no centro: Clarins do Orbe e muita fama cantem de Alcides excelsa Amena. A dedicatória é em espanhol: Los soldados portugueses hacen Razon de su Hermosura Magnificencia. A essa lábia feminina até os Bispos se rendem. Sempre me lembrarei do agasalho, dizia Frei Caetano Brandão em 1788, que devi aquela senhora castelhana: a modéstia e devoção com que assistia no sagrado Templo com suas filhas: a bela educação que dava a estas; nunca ociosas, sempre entretidas nos serviços mais humildes da casa todo o tempo que lhe restava dos estudos de Frances e Latim em que as fazia instruir.

Com estes antecedentes os nossos se colocam n’um plano secundário. O antecessor de Requeña, Ramon Pizarro, concordara dar ao Tratado, no Japurá, a interpretação lata que ai convinha ter. Requeña era pela interpretação muito restrita, que nos prejudica em excesso. Chermont deixa-se levar por ela e cai no erro de assignar um acordo que lhe vale uma censura ríspida da Côrte. Caldas vae a Ega ver se dissuade Requeña; este ainda se mostra mais violento e agressivo. Os demarcadores portugueses se intrigam uns com os outros, e as cousas chegam ao extremo dos

castelhanos ocuparem o curso superior do Solimões. Este era o quadro da Capitania ao assumir Almada o seu governo Requeña domina com toda autoridade até Tefé; cobra impostos, dá e tira cargos públicos, e cria novos. Nos outros rios só se vê ruinas: Borba caíra em completa decadência; e, à excepção de Moura, todas as outras povoações do Rio Negro um vivo contraste do que haviam sido outrora! A obra reconstrutora é então um trabalhar incessante, que se multiplica por todos os ramos da administração. Esta, depois que se consegue desalojar os castelhanos do Solimões, toma um voo mais alto. É a apoteose de Almada, das suas fabricas, das suas plantações de anil e de café e das povoações ressurgidas das cinzas, da abundância, da loucura a que todos se entregam, sem prever quão pouco irá durar esse bem-estar. Almada explora o Tacutú e o Mahú; todo o vale do rio Branco se lhe afigura fertilíssimo á indústria pastoril. As preferências dos Moradores pendem, porém, para os campos do Purus e Baixo Amazonas. Almada persiste na sua ideia.

As primeiras mudas vêm de Tefé, logo após a saída de Requeña, que as havia trazido do Peru. Da fronteira espanhola do Rio Negro virão alguns muares. A primeira Fazenda é fundada com o nome do Rei. Nas suas vizinhanças Nicolau de Sá Sarmento, comandante do Forte, funda a de S. Marcos. A de S. José fundou-a José Antonio Evora. A casa de Evora é a mais opulenta e maior do Rio Negro. Por falecimento do fundador passa, em herança, ao filho, Felippe Evora, almoxarife do Erário. Em 1818 achou-se lhe um grande desfalque nas contas; confiscar lhe os bens e a Fazenda foi incorporada á Coroa. O primeiro ato de Victorio da Costa (*) é fazer voltar para Manáos a residência dos Governadores. Almada morrera de desgosto, humilhado, como fora, por ter feito a mesma coisa! Alguns atribuem ao Conde d’Arcos a revogação dessa ordem absurda e vingativa. Outros afirmam que Victorio da Costa realiza a mudança por sua vontade e contando com a impunidade.

Barcellos parece que não lhe agrada muito. Tem-lhe até, no dizer de um coevo, ojeriza e rancor. Um dos genros vai lá reduzir a cacos o remanescente de sua quase extinta opulência. Outra pedra de escândalo é a sua celebre chácara no Tarumã. Isso tudo avulta demasiado aos olhos do ódio político, que é a pior de todas as moléstias visuais. A Câmara de Serpa foi a única que se recusou abonar com atestado o seu governo. Honrada Câmara de Serpa! exclama um dos desafetos de Victorio da Costa nem o grande – Senado de Athenas decidiu com mais justiça as causas pendentes!

A Manuel do Paço, o último Governador, acusam de comerciar em larga escala. É o monopolista das drogas e dos frutos do Purus. Receioso que na Residência avultassem algumas cousas ruins, segue o exemplo do antecessor; pede que as Câmaras lhe atestem também o seu governo. Todas o elogiam, até a de Serpa, que entende agora não quebrar a unanimidade no louvor. Ao se ter notícia em Manáos da aclamação da Junta Provisória de 1822 andou com os pauotas aos solavancos pelas ruas dando vivas á Carta e ao Rei Constitucional. Era o último estrebucho do Absolutismo. Baena segue a versão de que se manteve fiel a este regime e repeliu todo o contacto com os manauenses. Mais adiante o autor das Eras se contradiz; declara que Paço havia sido chamado com toda a urgência pela Junta do Pará.

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(*) Antes de Victorio da Costa, há a interinidade de José Antonio Salgado, protegido cegamente pelo Capitão General Francisco de Souza Coutinho e seu instrumento passivo. Salgado não encontrou quem lhe emprestasse dinheiro para tirar a Patente. (ANDRE FERNANDES, Notícias Geographicas do Rio Negro, pag. 129).

*Bertino de Miranda (1864-1919). Jornalista e historiador paraense. No final do século XIX para início do século XX participou ativamente da vida social, política e cultural do Amazonas. O livro de sua autoria, que em partes levamos ao conhecimento do nosso público ledor, é um importante e esclarecedor documento sobre a História amazonense.

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