Manaus, 18 de outubro de 2024

A Capitania de São José do Rio Negro

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*Mario Ypiranga Monteiro

A Capitania de São José do Rio Negro

Em 1757 Francisco Xavier de Mendonça Furtado recebia a carta régia de 3 de março de 1755 que o nomeava governador da Capitania de São José do Rio Negro.1 Ele estava à testa do governo unido do Pará e Maranhão, e mantinha-se, naquela administração, com verdadeiro espírito de patriota e de homem público, zelando pelos interesses da colônia, talvez com mais puridade que o próprio monarca. A carta régia dizia:

Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Governador e Capitão general do Grão-Pará e Maranhão2 Amigo, Eu El Rey vos envio muito saudar Tendo consideração ao muito que convém ao servio de Deus, e ao Meu, e ao bem commum dos meus vassalos moradores nesse Estado que n’elles se augmente o numero de Fieis iluminados da Luz do Evangelho pelo proprio meyo de multiplicação das Povoações civis, e decoronas, para que atrabindo a si os racionais, que vivem nos vastos sertoens do mesmo Estado, separados da nossa Santa Fé Catholica e athé dos ditames da mesma natureza; cabeando alguns d’eles na observancia das leys. Divina e humana, soccorro e descanço temporal e eterno, sirvão de estimulo aos mais que ficarem nos Matos, para que imitando tão saudaveis exemplos busquem os mesmos beneficios: E attendendo a que aqueIla necessaria observancia de Leys senão conseguirá para produzir tão wis effaites se asetido de mesme Estado, que tanto difficulta o recuso às duas Capitanias do Grio-Pará e de São Luis do Maranhão, senão subdividisse em mais alguns Governos, a que as partes possão recorrer para conseguirem, que se les administre Justiça cobrevidade e sem avexação de serem obrigados a fazer tão longas e penozas viags como agora fazem. Tembo resoluto estabelecer um terceiro Geterne nos confins occidentais d’esse Estado cujo chefe será denominado Governader da Capitania de São José do Rio Negro

O território de sobredito Governo se extenderá pelas duas partes do Norte e do Occidente athé as duas Rayas Septentrional e Occidental dos Dominios de Hespanha; e pelas outras duas partes do Oriente e do Mejo-dia lhe determinareis as Limites que vos parecerem justos, e competentes para os fins acima declarados, etc.

Somente em janeiro de 1758 movimentou-se o titular para assumir o posto de grande responsabilidade que lhe era confiado como um prêmio à sua capacidade de trabalho. A expedição da carta régia, com a declaração das fronteiras, é um belo documento em que repousa a sólida desconfiança do monarca quanto à marcha que tomavam os acontecimentos na colônia. As terras situadas nos confins ocidentais do Estado português da América constituíam, ninguém nega, excelente presa para quem acariciasse veleidades imperialistas. É sintomática a expedição da carta régia num momento delicado em que se iam chantar as pirâmides astronômicas entre as terras de Portugal e Espanha. A política do rei é de desconfiança e de ação. Que houve, na criação da Capitania do setentrião, um cálculo político, isso houve. O sofisma transparece naqueles itens em que os interesses do rei pelos seus fiéis vassalos são declarados de modo peremptório. E que homem melhor indicado para o exercício de representante de Dom José I, nos confins do mundo, que Mendonça Furtado, como de fato o provaria? Ele sobe a correnteza, acompanhado do Ouvidor-corregedor Pascoal Abranches Madeira. Vem tomar posse do vasto domínio português da Amazônia, exercer ao mesmo tempo a função diplomática de executor dos interesses reais.3 Aqui deve encontrar-se com o plenipotenciário espanhol Dom José Iturriaga.

A vinda de Mendonça Furtado ao Rio Negro, mais que a própria criação do governo separado, foi de grande utilidade para a bacia. Homem de espírito talhado para o mando, capaz dos mais atrevidos atos em defesa dos altos objetivos da administração, sua posição prestigiosa encheu de possibilidades a nossa Capitania, cujo governo passou a ser exercido pelo coronel Joaquim de Mello e Póvoas nomeado em 18 de julho de 1757.

Um dos atos argutos do grande administrador foi elevar à categoria de vila de Barcelos a aldeia de Nossa Senhora da Conceição de Mariuá. Pessoalmente presidiu o ato de instalação e ali mesmo empossou o primeiro governador colonial que o Ama- zonas teve. O seu segundo ato foi a delimitação entre as duas capitanias nascentes, de São José do Rio Negro e do Grão-Pará, para tanto autorizando-lhe a letra da carta régia de 3 de março de 1755, citada:

e pelas outras duas partes do Oriente e do Meyo-dia lhe determinareis os limites que vos parecerem justos, e competentes para os fins acima declarados.

O assentamento dessas fronteiras vem referido em documento passado a Mello e Póvoas, e que porta a data de 10 de maio de 1758:

Por carta firmada pela Real Mão de sua Magestade, de 3 de março de 1755, foi o mesmo Senhor servido crear a nova Capitania de São José do Rio Negro, nos confins occidentaes d’este Estado, ordenando o dito Senhor que o Território do Sobredito Governo se estendesse, pelas partes do Norte e Occidente athé as duas Rayas Septentrional e Occidental dos dominios de Hespanha, e que pelas outras duas partes do Oriente meyo-dia. Determinasse eu os limites que me parecem mais justos e competentes, para que os sens vassalos que vivem d’estas partes podessem com mais facili- dade achar quem lhes administre justiça com maior brevidade e sem experimentarem a vexação de lhes ser necessário recorrer à capital do Grão-Pará por meyo das longas e penozas viagens que é necessario fazer àquelle fim, ao que tudo fica satisfeito com esta utilissima providência.

Em observancia da sobredita Determinação e attendendo aos certuosos objectos de S. Magestade foi servida ter presentes para favorecer a estes miseraveis vassallos, me parece que ficão satisfeitas inteiramente as suas Reaes intenções, sendo os limites d’esta nova Capitania pelas partes que vou participar a v.s.

Pella parte do Oriente devem servir de balizas, pella parte septentrional do Rio das Amazonas o Rio Nhemundás; ficando a sua margem oriental pertencendo à Capitania geral do Grão-Pará e a Occidental à Capitania de S. José do Rio Negro.

Pella parte Austral do mesmo Rio Amazonas devem partir as duas capitanias pelo Outeiro chamado – Maracá-assú, pertencendo à dita Capitania de São José do Rio Negro tudo o que vae d’elle para o Occidente, e à do Grão-Pará, todo o território que fica para o Oriente.

Pella banda do sul fica pertencendo a esta nova Capitania todo o Territorio, que se estende athé chegar aos limites do Governo das Minas de Matto-Grosso, o qual conforme as ordens de S. Magestade se divide pelo Rio da Madeira, pela grande Caxoeyra de São João ou do Araguay.

E, para que esta divisão, que em conformidade das ordens de S. Mages- tade, faço d’estas Capitanias, não tenha no tempo futuro alguma dúvida, v.s. mandará registrar esta nas Camaras das vilas mais notáveis, ficando assim comprehendido athé honde se estenda a sua jurisdicção. Deus guarde a us. Nova Villa de Barcellos, 10 de março de 1758 -Francisco Xavier de Mendonça Furtado. Senhor Governador da Capitania de S. José do Rio Negro.

Mal sabia o ilustre estadista que as suas palavras finais iriam dar ensanchas às más interpretações dos legisladores e causar a confusão e a intriga entre irmãos. De fato, ainda hoje se discute a questão de limites entre o Estado do Pará e o Estado do Amazonas, como são infiéis as linhas demarcatórias entre os Estados de Mato Grosso e Amazonas, de que nos deixamos espoliar. Não é pouca a literatura gasta com essa questão dos limites interestaduais, mas não tencionamos discutir os nossos direitos aqui.4

Com os limites da nova Capitania de São José do Rio Negro traçados e reconhecidos, ficam igualmente estabelecidos os limites comarcanos, estes em forma oficial pelo decreto de 30 de junho de 1759, que instituía a Ouvidoria e Provedoria, Compreenda-se que o governo estabelecido na Capitania era subalterno ao Pará. Entramos, contudo, numa fase de incorporação oficial administrativa, já bem definida ainda nos seus arcabouços e que estaria completada com o advento da independência brasileira, não fossem os azares da sorte, que nos impediriam obter a predicação de Província, em 1822. Entretanto, inquirimos as causas da súbita reforma no setentrião. Qual a causa, a origem daquele manifesto interesse de Dom José pela longínqua região da colônia? Era o pacífico resultado de anteriores experiências, começadas com a distribuição das capitanias menores do Grão-Pará? Ou se esteavam antes as reformas em causas mais complexas e de caráter funda- mentalmente político? O certo é que atrás vimos como os missionários espanhóis se estendiam na sua catequese pelo sertão das Amazonas, dirigindo as pisadas por toda aquela região onde cerca de quarenta e seis aldeias, em 1751, sustentavam uma população de cem mil habitantes distribuídos por trinta mil fogos! Compreende-se que a situação era de fato delicada, impressionante a marcha conquistadora dos espanhóis no alto Amazonas. Visível, escandalizante mesmo, essa expansão no oeste, capaz de abalar no futuro os alicerces do edifício colonial português. Os Jesuítas, orientados pelos padres Samuel Fritz e João Batista Sana, missionavam na zona portuguesa e hostilizavam os reinícolas. Tanto monta essa política de conquista espiritual que, alijados, voltaram a pousar nas antigas aldeias, sendo necessário o emprego da força armada para erradicá-los.

Possivelmente Mendonça Furtado se ardesse com gestos daquele monte. O fato é que fez ciente ao irmão do estado em que se encontrava a colônia, neste trecho. Por outro lado, os comissários de limites, fixados em Ega, ao depois, ameaçavam trazer até mais longe os marcos fronteiriços. Não seria, acaso, afrontosa a opinião do padre Samuel Fritz, de que à Espanha pertencia toda a região da bacia? Expugnados uma vez em 1710, não silenciaram a derrota, nem viram com bons olhos o imperialismo português plantar-se no alto Amazonas. O Tratado de Madrid, de 1750, veio porventura exterminar as dúvidas que ainda flutuavam sobre a questão, devido à diplomacia serena e firme de Alexandre de Gus- mão. O uti possidetis aplainou as arestas salientes das dificuldades surgidas com os espanhóis, cujas hostilidades surgiam isoladas mas periculosas, por causa das terras e dos índios. Mas vimos, nos prece- dentes capítulos, que a expansão portuguesa fez-se de fato de leste para oeste, às vezes silenciosa, com o padre missionando, às vezes tumultuária, com as tropas de regastes, as expedições económicas e as políticas. Sobre esse fundo móvel da conquista ressalta o espírito aventureiro do soldado português e a cega obediência do sacerdote às suas injunções espirituais. Por que, pois, a Espanha pretendia, ela só, o domínio absoluto da bacia? É evidente que da união anterior dos dois reinos, a Espanha poderia ter arrebatado para seu patrimônio colonial estas terras, mas nunca o fez, esquecidos os dirigentes de que ao domínio efêmero da nação portuguesa sucedia o período da restauração. E com esta ela foi perdendo o senhorio da vastíssima região estendida desde o Aguarico ao arco do estuário. Anos depois, o espírito ardiloso de Alexandre de Gus- mão levaria diante dos seus sofismas a inteligência dos representantes da Espanha, vencendo-os numa luta em que não seriam necessários esquadrões volantes e nem canhões. Quem aproveitaria com a inércia espanhola nesse período era Portugal. Uma vez restaurada a monarquia lusa, cabia-lhe, por definitivo, dentro dos capítulos do direito internacional a região que, incorporada pela posse mansa e pacífica, aumentava o império colonial.

______________________

1 No decreto de 11 de julho de 1757, que nomeou Melo e Póvoas governador da nova Capitania, figura o nome desta como São José do Javari, nomenclatura por que opinaram Baena e Lourenço da Silva Araújo e Amazonas.

2 Observe-se que primitivamente os documentos diziam Maranhão e Grão-Pará, mas depois passou a ser a Capitania do Grão-Pará, e Maranhão como sede em Belém do Pará.

3 Desde 1753 havia sido nomeado comissário e plenipotenciário para servir nas demarcações sugeridas pelo Tratado de 16 de janeiro de 1750, entre Portugal e Espanha. Sobre essa questão, recomendamos os melhores trabalhos até agora saídos à luz, que são os dois volumes dos Limites e Demarcações na Amazônia Brasileiro, da autoria de Arthur Reis, com especialidade o segundo, que abrange a administração de Mendonça Furtado.

4 Para a debatida questão dos limites amazonenses, pode-se compulsar, além das obras supra, Arthur Viana, Estudos sobre o Paró, Limites do Estado, Pará 1901, Idem Relatório, mesmo assunto, Belém, 1899. Palma Muniz, Limites Municipais do Estado do Pará, in fine, Anais da Biblioteca e Arquivo Público do Pará, IX, Belém, 1916. Joaquim Nabuco, 0 Direito do Brasil, São Paulo, 1941. José Verissimo, Pará e Amazonas. Questão de Limites, Rio de Janeiro, 1899. Torquato Tapajós, Estudos sobre o Ama- zonas, Limites do Estado. Rio de Janeiro, 1896. Furtado Belém, Amazonas Pará. Questões de Limites, Manaus, 1916. Epitácio Pessoa, A Fronteira Oriental do Amazonas, Rio de Janeiro, 1917. Prudente de Morais, A Fronteira Ocidental do Paró, etc., Rio de Janeiro, 1919. Joaquim Nabuco, Troisième Mémoire etc., Paris, s/d. Furtado Belém, Limites Orientais, Manaus. 1912, etc.

Continua na próxima edição…

*Mário Ypiranga Monteiro (1909-2004). Amazonense de Manaus, historiador, folclorista, geógrafo, professor jornalista e escritor. Pesquisador do INPA, membro da Academia Amazonense de Letras e do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas. É o autor que mais escreveu livros sobre História do Amazonas, com quase 50 títulos

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