Continuação…
CASIDA DA MOÇA DOURADA
(Tradução de Garcia Lorca)
A moça dourada
se banhava n’água
e a água dourava.
As algas e as ramas
em sombra assombravam
e cantava um pássaro
pela moça branca.
Vinha a noite clara
turva de má prata
com montanhas altas
pela brisa parda.
A moça molhada
era branca n’água
água incendiada.
Vinha a manhã limpa
das caras de vaca,
no chão se deitava
com frias grinaldas.
A moça de lágrimas
banhava-se em chamas
e chorava o pássaro
as asas queimadas.
A moça dourada
era garça branca
e a água a dourava.
(19/10/2021)
ODE A ANNA FEDOROVA
NA GUERRA DA UCRÂNIA
Para a Lili
Por onde anda a Anna Fedorova
com suas mãos de maravilha
entre os teclados do piano,
está na dor da artilharia
na destruição da Ucrânia e a Rússia,
rumor do mal em seus ouvidos
treinados para a boa música?
Onde andas, Anna Fedorova,
andas na paz das ondas brandas
do coração ou de um rio de dúvidas
que flui lá do alto em tua pátria
pelos declives das montanhas?
Pensei que a guerra fosse um lixo
no século fraterno de hoje,
nos jardins antigos do mundo,
convívio da terra nos céus
com os outros astros etéreos,
forma de vida mais eterna,
contra os infantes malfadados,
carnífices da juventude
e carcereiros da beleza,
sombras de piche da esperança,
aurora esmagada nas nuvens,
Anna Fedorova, aonde andas?
Piano mudo sem tuas mãos
escravo do silêncio frio,
forma em ângulos de madeira
sem ti tão orgulhosa e nula,
cala ante os gestos do regente
medindo os signos matemáticos
ante o primeiro som da orquestra,
voa na plateia a beleza,
nos rostos todos a esperança
da tua presença no palco,
todos esperam sua estrela
e não vens, Anna Fedorova!
O que mais fizeram contigo
para te ausentares assim
rosa dourada da alegria,
ouvindo-te uns senhores sóbrios
banhados de prantos te escutam,
no cérebro as linhas dos sons,
tuas mãos nas teclas enérgicas
no mar azul das maravilhas
batidas pelas tempestades
e após beijada pela brisa,
calmaria da luz do sol.
Onde estás, Anna Fedorova?
A jovem mãe ampara a filha
ao ouvir a música de Anna,
amplo mural de cores alvas
sobre a paisagem da plateia,
por entre as entranhas da orquestra
canta o chamamento das trompas
ágil nos oboés e flautas,
paixão dos celos e violas,
concerto de Rachimaninov,
sumaumeiras, mães das águas,
altos pássaros, – onde estás
Anna com o teu porte de árvore?
Tua ausência ecoa na acústica
tocada pela artilharia,
a arquitetura destruída
na tradição de muitos sonhos
com os afrescos veneráveis,
suas florestas nas montanhas,
na formosura do teu povo.
Sei que hás de voltar numa noite
ao espetáculo do teatro,
mistério das mãos no piano
e porás pedra sobre pedra
cada uma em seu lugar de sempre.
Onde andas Anna com o teu piano?
(1/11/2022)
ODE À CEBOLA
(Tradução de Pablo Neruda)
Cebola,
luminosa redoma,
pétala a pétala
se formou tua formosura,
escamas de cristal te iluminaram
e no segredo escuro da terra
se arredondou teu ventre de orvalho.
Em baixo da terra
aconteceu o milagre
e quando apareceu
teu intruso talo verde,
e nasceram
tuas folhas como espadas num roçado,
a terra ostentou seu poderio
mostrando tua desnuda transparência,
e como em Afrodite o mar antigo
duplicou a magnólia
levantando seus seios,
a terra
assim te fez,
cebola,
clara como um planeta
destinado
a reluzir,
constante constelação,
redonda rosa de água,
à mesa
do povo pobre.
Generosa
desfazes
teus olhos de primavera
na conversa
ardente da panela
com sua nuvem de cristal
incendiada no calor do azeite
transformada num sorriso de pluma de ouro.
Também te celebrarei a fecunda
influência de amor numa salada,
e parece que o céu contribui
dando-te fina forma de granizo
e celebrar tua claridade ferida
sobre as esferas de um tomate.
Mas ao alcance
das mãos do povo,
regada com azeite,
polvilhada
com uma pitada de sal,
matas a fome
do jornaleiro em seu duro caminho.
Estrela dos pobres,
fada madrinha
vestida
por delicado
papel, sais do solo,
eterna, intacta, pura
como a semente de um astro,
e ao cortar-te
o cutelo na cozinha
queima a única lágrima
sem pena.
Fizeste-nos chorar sem afligir-nos.
Enquanto existir eu te celebrarei, cebola,
mas para mim és
mais formosa que uma ave
de plumas incandescentes,
és para os meus olhos
globo celeste, taça de prata,
dança imóvel
de anêmona nevada
e vives a fragrância da terra
em tua natureza cristalina.
(17/10/2022)
PRECE PELO SILÊNCIO
Livrai-nos Senhor dos nossos inimigos,
eles quebram o silêncio, enfim livrai-nos,
o silêncio alívio de todas as dores,
a madrugada da floresta nas flores.
O silêncio luz das folhas orvalhadas,
águas do rio, cores do crepúsculo,
cristal das nossas insistentes lágrimas,
silêncio que reverbera em nossas mãos,
na planta dos nossos pés por onde fluem
as torrentes do sono, o fulgor que não passa,
dos galhos das árvores, fruto da noite,
livrai-nos dos inimigos da paz,
Senhor do silêncio.
(03/12/2014)
TARDE DE UM DIA DE CHUVA SOBRE O
RIO NEGRO
À Lili
A tarde azul se estira sobre as águas,
a noite ave das sombras já vem vindo,
o crepúsculo tece um rol de mágoas
e o sol rendado de ouro vai sumindo.
Aqueço com surpresa as minhas fráguas
no peito, paz do espírito mais lindo,
olhando em frente uma árvore abre as asas
aos pássaros dos sonhos já dormindo.
A tarde chega cheia de alvorada
do azul que vem da luz que se levanta
quando eu acordo de alma repousada.
A paisagem da chuva não me espanta
nem quando as nuvens brandem sua espada
na tarde toda azul que me acalanta.
(25/01/2023)
UMA CANÇÃO DE AMOR
Esperei muito para te encontrar,
meus temas eram a floresta e o rio
seiva do instinto e geração da vida,
a lua era só o espelho da luz,
a noite o reino escuro das corujas.
Tudo mudou depois que te encontrei,
a paisagem me ficou mais bonita,
ensinaste-me o valor de um encontro,
o luar desvelou a luz da terra,
a noite em nossos braços ficou livre.
Esperei muito para te encontrar
e vejo que valeu a pena esperar.
(9.08.2015)
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