
*Éder de Castro Gama
Continuação…
As manifestações religiosas no momento festivo
Na tentativa de responder a terceira questão: como são representadas as manifestações religiosas na festa? Neste caso, na arena do Festival Folclórico do Amazonas, partimos da suposição de que este evento comporta todos os estratos sociais ou grupos sociais da cidade de Manaus, possibilitando as expressões de uma fé. Com esta suposição, é possível colocar em questão a posição daqueles que acreditam que o espaço de apresentação das danças folclóricas na “Arena Povos da Amazônia” (chamada popularmente pelos brincantes como “arena da bola da Suframa”) é simplesmente um espaço de espetacularização desinteressada.
Então, como explicar a apresentação observada no dia 17 de junho deste mesmo ano, realizada no domingo às 00h, quando a Dança Nacional do Candomblé49 trouxe para arena do 51o Festival Folclórico do Amazonas a representação dos Orixás, Santos e Caboclos das religiões de matrizes Afro e Ameríndia do Amazonas que foram executados por seus adeptos? Nota-se, entre o público presente, um grande prestígio social, pois estima-se a permanência de quase 30 mil pessoas presentes na madrugada de segunda-feira, além das manifestações dos “filhos de Santo” que incorporam suas entidades nas arquibancadas e são levados até o espaço de apresentação para tomar parte do grupo.
O pesquisador Alvatir Silva (2007) ao falar sobre as formas de articulação políticas para apresentação dos grupos folclóricos, comenta
a luta por esse espaço que é conhecido popularmente como bola da Suframa é histórica, pois aqueles que vivenciaram o tempo do Festival Folclórico na Praça General Osório e mesmo para aqueles que vivenciaram os dois momentos e foram andarilhos em busca de um lugar, como podemos notar na toada do boi-bumbá Gitano da Vila Mamão50, de autoria do Mestre Zé Preto. O Espaço da Bola da Suframa é sacralizado pela visita do Papa João Paulo II na década de 80. A toada é amais ou menos assim: Nessa praça ele rezou/ fez a sua oração/ a seus filhos amazonenses ele dá sua benção/ e que é ele? / é o peregrino do mundo a Sua Santidade João Paulo II.
Observa-se nos comentários do pesquisador que há um interesse por parte das pessoas que participam das manifestações folclóricas no Estado do Amazonas, sobretudo, na cidade de Manaus, em fazer referência ao catolicismo e outras manifestações religiosas numa forma espetacularizada. É o momento em que a comunidade se envolve nas manifestações religiosas e expressam toda sua devoção e fé nas brincadeiras que, muitas vezes, nasce sob aspecto religioso ou que adquire o aspecto religioso durante o tempo de existência destes grupos na cidade de Manaus.
Silva (2012), ao falar sobre a dimensão religiosa presente nos grupos folclóricos de Manaus, ressalta a mentalidade religiosa presente difusa nos vários aspectos a serem cortejados, que ele dividiu em três aspectos. O primeiro, sobre o ciclo das festas juninas marcada pelas festividades de santos da igreja católica como Santo Antônio, São João, São Pedro e São Marçal. O segundo, pauta-se na importância que as comunidades católicas assumem no ciclo junino, inclusive na realização dos arraiais e de onde são formadas algumas danças folclóricas que acabam por participar em disputas nos festivais. E o terceiro aspecto é a relação entre religiões de matrizes africanas com grupos folclóricos de Manaus que, segundo este autor, em todos estes aspectos, estariam implícitos à noção de “missão” e “promessa”.
A noção de missão apareceu de forma recorrente nos depoimentos de agentes sociais de grupos folclóricos de Manaus, quando perguntados sobre motivos de sua vivência e dedicação às brincadeiras. A missão, neste caso, seria dada por Deus para manutenção das práticas folclóricas. Por outro lado, a noção de promessa ou obrigação se daria de forma predominante entre os grupos de boi ou garrote, que nasceram em terreiros ou em grupos de religiões de matrizes africanas, onde a mando das entidades é fundado toda uma organização e produção de um dado grupo folclórico, onde “grupos de boi nascem em comunidades de terreiros ou em grupos de religião de matrizes africanas, como obrigação ou promessa, e sua continuidade é entendida como missão” (SILVA, 2012, p. 172).
Fernandes (2003), ao fazer reflexões sobre Mario de Andrade, destaca que aquilo que ele chamou de “danças dramáticas”, como a chegança de marujos, pastoris, reisados, ciranda, maracatus, etc., teriam três mecanismos fundamentais:
Primeiro, “que nenhum dos dramas cantados do nosso povo tem origem profana” – o que o leva a digressões a respeito da influência da religião e magia na formação da dança dramática e da aplicação dessas explanações gerais à situação histórico – cultural do Brasil; segundo, às relações entre o teatro popular e o teatro erudito: aquele tem todas as probabilidades de ser um teatro erudito; aquele tem todas a probabilidades de ser um teatro erudito que se desnivelou (…); terceiro, quanto à filiação – embora saliente ser frequente a passagem da herança portuguesa para o Brasil, mostra que o inverso também é verdadeiro, havendo, portanto, reciprocidade de influências (FERNANDES, 2003, p. 194.)
Observa-se que Florestan Fernandes (2003) nos chama atenção para possibilidade de interpretação daquilo que Mario de Andrade denominou de danças dramáticas do Brasil, que elas, de fato, nascem da influência da religião e magia e que, para seus adeptos, as práticas consideradas profanas são evitadas, como pode-se salientar entre os bois e garrotes que nascem no terreiro, o grupo folclórico Dança do Candomblé, que expõe para o público em geral as suas entidades, caracterizadas com suas indumentárias e práticas ritualísticas, que assumem expressões artísticas na dança e na música, batucada no palco ou tablado, bem como as danças e quadrilhas advindos dos pátios da igreja católica.
Em última análise, o termo “dança dramática” refere-se à aglutinação do canto, dança e música em uma mesma manifestação, tendo como pivô o drama das relações raciais no Brasil”, entre o branco, o negro e o índio, como por exemplo, em observações feitas no 50o Festival Folclórico do Amazonas, sobretudo, nas brincadeiras de bois e garrotes, onde, no auto do boi, a Sinhazinha da Fazenda e o Amo do Boi são os brancos ou colonizadores, o Pai Francisco e a Mãe Catirina são os negros e o Pajé e as tribos indígenas referem-se aos índios catequizados.
Considerações Finais
Na Amazônia, como em todo território nacional, as festividades folclóricas do mês de junho assumem um caráter religioso advindas das tradições coloniais, incentivadas pela Igreja Católica com as práticas de arraial e quermesses utilizadas para arrecadar donativos para comunidade, onde o envolvimento dos fiéis nestas práticas figura como exercício da fé. Em muitas comunidades religiosas interioranas da Amazônia, as festas dos santos padroeiros são os momentos em que as pessoas se envolvem em práticas solidárias e encontram momentos de fruição e descontração de seus dramas sociais, ajudando a aliviar as tensões do cotidiano.
Mesmo nas cidades sede do interior do Estado do Amazonas, como na capital Manaus, os festivais folclóricos figuram como espaços em que o povo encontra um momento de reviver suas tradições folclóricas e expor, com pompa e requinte, os seus grupos e associações que dedicam uma parcela considerável do ano em ensaios e preparação de roupas e alegorias para apresentações em tablados e arenas para concorrer premiações em troféus. É neste momento em que se observam aspectos do trabalho cotidiano e manifestações religiosas traduzidas em coreografias e passos sincronizados.
Porém, saliento que é preciso aprofundar estudos sobre as práticas folclóricas das cidades do interior do Estado do Amazonas, pois em algumas delas, observa-se aspectos diferenciados desta expressão, que varia desde o tempo de realização dos festivais, onde por exemplo, na cidade de São Sebastião do Uatumã o festival folclórico da cidade realiza-se no mês de agosto, com a disputa acirrada entre três grandes quadrilhas, advindas do seio da Igreja católica que hoje assumem, à identidade de bairro, ou da cidade de Itacoatiara, que tem um festival folclórico com mais de 40 anos de realização, com grupos segmentados e com registros da brincadeira de boi na década de 20 do sec. XX
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49 Faz parte da Liga dos Grupos Folclóricos de Manaus (LIGFM). É uma das três associações folclóricas que organizam junto ao Governo do Estado do Amazonas o Festival Folclórico do Amazonas. Estima-se que as três Associações somam quase 300 grupos folclóricos cadastrados.
50 Vila Mamão não é um bairro e sim uma área de um bairro na cidade de Manaus.
Continua na próxima edição…
*O autor é natural de Itacoatiara, vem trabalhando com a temática sobre patrimônio cultural a mais de duas décadas. É formado em Ciências Sociais (UFAM) e Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia (PGSCA/UFAM) especialista em Festas Populares e Religiosas da Amazônia. Formado em Direito (ULBRA/Manaus), MBA em Gestão, Licenciamento e Auditoria Ambiental (Anhanguera-Uniderp). É professor Universitário. Publicações em coautoria nos livros “Cultura popular, patrimônio imaterial e cidades” (2007) e “Culturas populares em meio urbano” (2012). Autor do livro “A Senhora, o Folclore e o Festival” (2022). É Assessor Jurídico e vem prestando assessoria ao patrimônio imaterial etnohistória da Amazônia para empresas de licenciamento ambiental e arqueológico.
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