Continuação…
Um poeta da província1
Quando o livro de Elias Gavinho, Ânsias, foi editado, em 1913, a poesia brasileira já estava muito à frente. Vivia-se a confluência do Parnasianismo com o Simbolismo, já estavam consagradas as obras de Cruz e Souza e de Olavo Bilac, anunciando-se, nos horizontes dos nossos movimentos literários, as luzes do Modernismo que eclodiria em 1922. A figura de Manuel Bandeira despontava com A cinza das horas (1917), livro onde ainda se observam tendências da estética simbolista, mas em que se revelam as virtudes estilísticas da nova poesia, o despojamento da linguagem, em benefício da fala comum, e a abordagem de temas do cotidiano.
Em termos formais, o coração de Elias Gavinho balançava entre o Parnasianismo e o Simbolismo, pois o seu livro está repleto de citações em epígrafes de Eugênio de Castro, Guerra Junqueiro e Antero de Quental, poetas portugueses representativos dessas duas escolas. Ele decidia-se, no entanto, pelo Parnasianismo de Olavo Bilac, conforme pode observar-se no poema “Parêntese”, lançado no final da coletânea, em que se encontram os seguintes versos:
Como Bilac, o príncipe do Sonho,
Que leio e que cultuo, […]
Ao ler Elias Gavinho, para que o perceba em sua plenitude, é imprescindível que o leitor se transporte ao tempo ambiental do poeta, sem dúvida regido pelo formalismo geral do vestir-se, do se comportar em sociedade, do se expressar em linguagem debruada com termos nem sempre condizentes com a realidade humana, porque estereotipada e, por isso, alheia aos compromissos com a vida. Esse, aliás, era um dos males do ser parnasiano, vez por outra despertado pelos impulsos dos instintos mais fortes, como quando Bilac abandona a postura do verso lapidar e explode nas apóstrofes do Beijo eterno e da Alvorada do amor.
Assim acontece com Elias Gavinho, Ele vem de Sonho, quando canta:
Transpus num sonho alado o luminoso
E alcatifado mundo da ilusão,
Onde habita a quimera e uma canção
É um hino divinal de etéreo gozo.
Segue sonhando o sonho não permitido ao sono dos mortais em Anima mea:
Num leito azul de arminho sublimado,
Feito de sonhos, leve, pequenino,
Dorme Minh ‘alma o sono cristalino
Que entre os mortais lhe foi dormir velado.
E confessa em Anelo:
Tenho sofrido tanto… Ah! Quanto anseio,
Quanta dor, quanta mágoa sufocada,
Este meu peito, de pesares cheio,
Pôde conter sem nunca dizer nada…
Em Canto disperso, o poeta vai revelando cada vez mais os seus sentimentos, ainda que em versos adocicados como os seguintes:
Agrada-te, bem sei. A tua cor formosa,
De um leve rosicler, igual a dum noivado,
Tem da graça do cisne o encanto aureolado
E o rútilo color da linda mariposa…
Caminhando pelas páginas deste livro, o leitor poderá encontrar os versos de Delírio, onde o poeta apresenta o mais despojado poema e, também, os mais quentes dos seus versos, como o fez Bilac nos dois poemas citados linhas acima:
Inda me lembro bem:
A merencória lua, pelo Espaço,
Marmorizando a Terra
Serena e adormecida,
No palor ideal do sonho que ela encerra
Chamava-nos à vida,
Ao prazer, à loucura, ao mais feliz dos sonhos,
Enquanto os lábios seus, róseos, risonhos,
Febris e alucinados
Sugavam, gota a gota, orvalhos cristalinos
Dos meus que apavorados
Giravam na mornez dos seus beijos divinos.
Nestes versos, ouve-se, verdadeiramente, outra música. Entre uma e outra, a gente tropeça em merencória, sinônimo de melancólica, palavra usada por poetas de várias idades e das mais dispares tendências. Camões usou-a (Merencório no gesto parecia), comentando o aspecto de Marte ao discursar no Concílio dos Deuses, no primeiro canto de Os Lusíadas. Os românticos a usaram tanto que a transformaram num lugar-comum, expressão de mau gosto, até implantar-se no vocabulário do cancioneiro popular brasileiro, mais frequente no idioma dos chorões.
Vamos a mais uma estrofe deste delírio:
Noite de sonho! Noite enluarada!…
Noite em que ela pedia,
Ébria de gozo e ébria de desejos
Entre o calor em que estuante ardia,
Milhões de beijos
Cantantes,
Delirantes,
Na sua face fresca e aveludada
De onde uns olhos brilhantes,
Em ritmos divinos
Arremessavam
E incendiavam
Os mais distantes
Acordes tristes de amorosos hinos…
O poema está a partir da página 57 e, se de todo não tiver entusiasmo o leitor para fruir o livro todo, bastará entrar no clima do Delírio e reconhecer, em Elias Gavinho, um dos mais destacados nomes da poesia brasileira, entre tantos dos que se exilaram na província – aqui fizeram a sua vida e publicaram seus versos.
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1 Apresentação da 2ªedição deste livro feito pela Valer Editora, em 2005.
Continua na próxima edição…
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