Manaus, 19 de agosto de 2025

Religiosidade popular nos quilombos urbanos e rurais da Amazônia

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*Vinícius Alves da Rosa

Um estudo da comunidade do barranco de são benedito, em Manaus, e do sagrado coração de jesus do lago do Serpa, em Itacoatiara – Am

Continuação…

2.4 A festa de Nossa Senhora Aparecida no Quilombo Rural Sagrado Coração de Jesus do Lago de Serpa

Amazônia Terra Santa
Dos Igarapés, mananciais
Alimenta o corpo, equilibra a alma
Transmite a paz31

Nesta seção, dedicamo-nos à análise da festa religiosa em honra a Nossa Senhora Aparecida, edificada no quilombo rural Sagrado Coração de Jesus do Lago de Serpa, em Itacoatiara, estado do Amazonas. A exemplo da devoção ao Santo Protetor do quilombo urbano da cidade de Manaus, para fins analíticos, cabe questionar: Em se tratando de práticas tradicionalmente vivenciadas por comunidades quilombolas da Amazônia, qual o sentido atribuído às devoções santorais?

A tese de Eduardo Galvão, intitulada “Santos e Visagens: um estudo da vida religiosa de Itá, Amazonas” fornece dados que permitem ao presente estudo compreender certos aspectos culturais vinculados às práticas de religiosidade face ao processo de construção étnica na Amazônia. Escrita a partir da pesquisa de campo realizada em uma comunidade do Baixo Amazonas em 1948, o trabalho contou com a orientação do professor Charles Wagley. Vinculado à Universidade de Columbia, com patrocínio da UNESCO, Galvão se propôs a investigar questões que lhe permitissem entender, no contexto da cultura regional, até que ponto a religião na comunidade fictícia denominada Itá estaria condicionada a fatores socioeconômicos, levando-se em conta as condições peculiares das sociedades rurais. Assim compreendida, a obra publicada em 1955 analisou a religião como objeto central da pesquisa antropológica, registrando a função da religiosidade na sociedade, sem olvidar a formação étnica e cultural do homem amazônico, e suas tradições ameríndias.

Para além da investigação acerca do quilombo urbano na cidade de Manaus, a pesquisa investigou fatos relativos à cultura religiosa presente no território quilombola rural em Itacoatiara-AM. Com vistas a compreender qual a influência dessa relação tão característica na localidade, fez-se necessário identificar em que medida a devoção dedicada à santa constitui os fundamentos da organização desse grupo étnico ali estabelecido.

Entretanto, com o intuito de descrever o ritual em homenagem à Nossa Senhora Aparecida e aos ritos da procissão fluvial que ocorre no lago do Serpa, adjacência da comunidade quilombola situada naquela área, foi possível participar presencialmente do evento – no ano de 2023 – para fins de compreender como está estruturada a sacralidade da veneração à imagem desta santa negra.

Dadas as características geográficas da região, dos 62 municípios do Amazonas, Itacoatiara é um dos poucos locais que, para além do deslocamento fluvial, se tem como acesso o transporte terrestre. Com saída da Estação Rodoviária de Manaus, as linhas de ônibus que partem rumo ao referido município percorrem um trecho correspondente a 265 quilômetros pela rodovia AM-010, com tempo de viagem estimado de aproximadamente 05 (cinco) horas. A Comunidade Sagrado Coração de Jesus do Lago de Serpa está a 10Km da sede do município de Itacoatiara, cujo acesso se dá pela Estrada Itaqua Tapajó em direção à entrada do ramal Osório Fonseca. Feito esse translado, procedeu-se ao trabalho de campo junto ao referido quilombo, empiricamente observado.

O Lago do Serpa é um lugar social abundantemente cercado da fauna e flora. Para além de abrigar uma extraordinária e diversificada espécie de peixes, soma-se à sua biodiversidade um portentoso cenário de árvores frutíferas, mangueiras, ingazeiros, pupunheiras, cajueiros, cupuaçueiros, goiabeiras, laranjeiras, pés de café e cacau. A comunidade está inserida numa Área de Proteção Ambiental (APA), conforme a Lei Ordinária N°004, de 23 de setembro de 1998. O artigo científico, intitulado “Educação Ambiental em áreas protegidas: um estudo de caso da Área de Preservação Ambiental do Lago de Serpa – Itacoatiara/AM”, registra que:

O Lago de Serpa, situa-se entre o aeroporto e a AM-010 medindo aproximadamente 15 mil metros de comprimento, por uma largura média de 100 metros e uma profundidade de 9 metros no inverno e 4,5 metros no verão (Oliveira, 2005, p.14).

As peculiaridades do lago: a cor preta das águas, as sinuosas curvas, “cabeceiras”32 e os igapós tornam-se locais atraente e nos quais se dá a atividade da pesca, criteriosamente praticada pelos quilombolas ao longo das décadas. Indispensáveis à gastronomia local, seja para o consumo interno da comunidade ou para eventual venda nas feiras, o acesso a esses recursos naturais possibilita extrair diferentes espécies de peixe da Amazônia, quais sejam: tambaqui, tucunaré, aruanã, jaraqui, curimatã, pacu, cará e piranha. Ao amanhecer na localidade pode-se ouvir os cantos dos pássaros assim como durante todo o dia. Os animais domésticos criados pelos moradores nas unidades residenciais convivem com as pessoas nos quintais das casas, sendo eles: galinhas, patos, cachorros, porcos e cabras. Do ponto de vista da mata, ainda é comum identificar aqueles animais que habitam ao longo da floresta, quais sejam: capivaras, cutia, paca, jabuti, e, entre outros, as cobras, aranhas, lagartos etc. É nesse cenário que, historicamente, os quilombolas detêm os conhecimentos tradicionais do território que vão desde a pesca à caça; da confecção de tessume artesanal à manipulação de remédios caseiros, até a identificação dos gritos da onça quando ela está no cio.

O Lago do Serpa era um local de mata bruta, campo e fazenda, ocupado tradicionalmente pelos chamados “troncos velhos”33. Trata-se de famílias com ascendência africana no século XIX, e com origens na migração de negros/as oriundos/as do nordeste brasileiro na década de 1970, como é o caso dos estados do Ceará, Pernambuco e Maranhão, cujas correntes migratórias formaram as comunidades desta região. A propósito dessas relações – sejam elas oriundas de conflitos agrários ou de sociabilidade construída a partir de processos migratórios –, a pesquisadora, professora Maria Magela Mafra de Andrade Ranciaro34, afiança:

Para associar-me a essa cotidianidade vivenciada pelos quilombolas é que o pensamento prospera rumo à construção de um saber que permitiu, do ponto de vista epistemológico, desvendar os nexos que se interligam à dinâmica das representações e dos significados sócio históricos; do sentido atribuído pelos quilombolas acerca das suas relações de vivência cotidiana reconstruídas pela memória coletiva; da construção de sua identidade oriunda do conflito agrário, como elemento de possibilidade daquelas reivindicações (Ranciaro, 2016, p. 31).

A designação pejorativa usada em Itacoatiara em tom primordial para os chamados “pretos do Serpa” serviu ao propósito de identificar aqueles quilombolas, moradores de áreas rurais que viviam e vivem do manejo de recursos da natureza. Um desses manejos diz respeito à produção de carvão, cujo transporte era realizado nas suas canoas movimentadas a remo para subir e descer o lago. Ainda hoje, no aspecto econômico, as famílias dos quilombolas dependem dessa produção, associada à outra geração de renda da agricultura de subsistência, pois cultivam o plantio de pimentão, milho, feijão, cebola, coentro, pimenta, somada à roça de mandioca, da qual se extraem produtos como a farinha, tapioca, biju, goma, e o polvilho.

É acertada a percepção do antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida (2013), quando em referência aos conflitos enfrentados pelas comunidades quilombolas compreende que as lutas identitárias não estão dissociadas das lutas econômicas, visto que, entre outros interesses materiais, as terras dos quilombolas são objetos da cobiça, disputa e ameaças constantes das forças empresariais e políticas locais do município de Itacoatiara. Para obter os dados sistematizados nesse estudo, buscou-se construir a “relação de pesquisa”, conforme Bourdieu (1997), junto aos autodefinidos quilombolas, a exemplo do Sr. Ernando Soares Macedo, 75 anos, Presidente da Associação Quilombola Sagrado Coração de Jesus do Lago do Serpa.

O Sr. Ernando, na condição de protagonista do movimento organizativo, é por todos reconhecido como liderança no quilombo do Lago do Serpa. Por ser exímio conhecedor do território e das tradições reproduzidas secularmente neste espaço, isto se deve também ao mérito de ser neto do falecido Sr. José Capitulino de Macedo, oriundo de Pernambuco, sendo filho do falecido Sr. João Marques de Macedo, natural do Estado de Pernambuco. Natural do Estado do Maranhão, a mãe de José Capitulino, já falecida, chamava-se Raimunda Soares de Macedo, parteira conhecida na comunidade rural por realizar centenas de partos na região. Por vezes, era chamada para auxiliar nos partos feitos no hospital de Itacoatiara. Ambos, portanto, avô e bisavós do Sr. Ernando Soares Macedo, imprimem grande marca historicamente construída ao longo de toda uma vivência no quilombo “Lago do Serpa-Itacoatiara/AM”.

O Sr. Ernando Soares foi catequista da Igreja Católica Sagrado Coração de Jesus do Lago do Serpa, durante 27 anos, e Presidente da Comunidade Social por duas vezes, sendo também Vice-Presidente da Comunidade Social por três vezes. Exerceu atividades de trabalhado na carvoaria e na agricultura; é pai de doze filhos, tendo trinta e nove afilhados. Em decorrência de todo trabalho dedicado ao quilombo, é comum ouvir o posicionamento do Sr. Ernando: “Minha luta aqui foi muito grande em favor desse povo”. O quilombola considerou que na oportunidade de uma reunião realizada na Câmara de Vereadores em Itacoatiara, em anos anteriores, um vereador, de “saudosa” memória, teria pronunciado em seu discurso: “No Lago do Serpa só tinha preto e carvão”. Sendo assim, contra-argumentado pelo Sr. Ernando Soares, que afirmou ser os mencionados pretos trabalhadores da carvoaria, pessoas do mesmo nível de importância dos vereadores itacoatiarenses.

Assim, a história do referido quilombo está permeada de acontecimentos que resguardam práticas advindas da linhagem de descendência, como se observa na formação familiar do Sr. Ernando Soares, ao tempo em que se percebe a forma pela qual o quilombola se posiciona frente às autoridades políticas do município face ao firme propósito de impor certo significado à sua afirmação étnica. Somam-se a esses elementos, o forte apelo intrínseco às práticas religiosas, fato que também confere aos quilombolas o status político em que o fator étnico ganha relevância e notoriedade.

Nesse aspecto, do ponto de vista local, a identidade étnica se expressa através de raízes profundas, contemporaneamente materializadas nos ritos de fé e devoção aos santos e/ou santas protetoras. Essas crenças, geralmente, são mediatizadas pelas frentes de mobilizações do movimento organizativo. Sobre tais manifestações religiosas celebradas na Comunidade quilombola Sagrado Coração de Jesus do Lago de Serpa, cabe destacar a procissão fluvial que acontece na data de 22 de setembro em razão de a imagem da santa Padroeira dos quilombolas ter sido encontrada exatamente nesta data no ano de 1976. Aliás, no ano de 2023, estando em trabalho de campo, foi possível no mês de setembro acompanhar, pessoalmente, o percurso deste evento religioso. Enfim, contrariando o que religiosamente a Prelazia do município convencionou entender como data festiva:

A festa de Nossa Senhora de Aparecida do Lago de Serpa é uma festa que não consta no calendário festivo da Prelazia de Itacoatiara e nem é a festa oficial da comunidade católica Sagrado Coração de Jesus. A imagem que foi achada no Lago é tomada pelos fiéis como “santa milagreira”, observam-se os inúmeros relatos de graças alcançadas que são atribuídas a ela. Mas também há milagres atribuídos à imagem de Nossa Senhora Aparecida, que foi dado por um fiel como pagamento de promessa e é a imagem que sai na procissão no dia 12 de outubro (Gama, 2022, p.151).

A obra publicada por Gama (2022) narra que a festa em honra a Nossa Senhora Aparecida do Lago do Serpa não consta no calendário oficial da Prelazia de Itacoatiara35, mas além desta outras duas festas acontecem na comunidade, a do Sagrado Coração de Jesus, e a de Nossa Senhora Aparecida, celebrada em 12 de outubro, ambas comemoradas em terra firme. Entretanto, a informação oficial repassada pelo Padre Rosiely, vinculado à Prelazia de Itacoatiara, assegura que a procissão fluvial de Nossa Senhora Aparecida faz parte do calendário festivo da Prelazia do município.

O ponto de partida da procissão foi no templo Católico situado na comunidade, momento em que são arremessados fogos de artifícios em alusão à festividade. Dois homens da comunidade tocavam cavaquinho, entoando alguns cânticos religiosos. Segue-se o rito: a imagem é retirada do interior do templo; a santa está envolvida num manto e tem uma coroa na cabeça; uma criança – segurando um grande crucifixo de madeira com a imagem de Jesus Cristo Jesus – caminha à frente do cortejo que segue em direção ao Lago do Serpa; outras duas crianças usando roupas brancas e azuis prosseguem logo a seguir, sendo a imagem da “Santa Milagreira” carregada nas mãos de uma mulher que veste roupa branca.

No decorrer da procissão, os hinos entoados expressam a importância simbólica da sacralidade de Maria: os devotos acompanham a procissão cantando hinos religiosas de exaltação à imagem; os músicos participam tocando violão, cavaquinho e violino, ao tempo em que se rezam as orações “Creio em Deus Pai” e o “Pai Nosso”. A imagem de Nossa Senhora Aparecida sendo segurada nas mãos de uma mulher, a criança levando o crucifico, outras duas crianças trajando roupas azuis e brancas. Somados aos devotos, todos participantes da procissão embarcaram na lancha36, ancorada no porto da comunidade e decorada com bandeiras e balões de cores azul e branco. Ao lado da lancha principal está amarrada uma chalana igualmente decorada com balões e bandeiras cuja embarcação é acessada e/ou acompanhada por pessoas que se deslocam em canoas de motor rabeta37, ocupando-se as demais embarcações também amarradas à chalana que cede espaço a outros devotos.

Ao longo de todo o trajeto, extensivas às áreas circunvizinhas, a procissão que iniciou descendo o Lago do Serpa, teve como ponto de chegada a propriedade de um morador conhecido como Peninha. Ali, estava afixada uma cruz demarcando simbolicamente o “local de memória”, visto que nas adjacências dessa propriedade há um igarapé no qual, lá pelos idos de 1976, foi encontrada flutuando a imagem de Nossa Senhora Aparecida. Assim, no lugar geográfico devidamente demarcado pela simbologia da cruz, a procissão parou durante alguns minutos para uma sequência de rezas e cânticos alusivos à santa Protetora dos quilombolas do Lago do Serpa.

Posteriormente, as embarcações retornaram ao subir o trajeto do Lago em direção ao porto da comunidade. Várias pessoas estavam apostas, esperando o retorno da procissão em honra a santa Padroeira, momento em que os devotos deixando as embarcações, dirigiram-se ao templo Católico Sagrado Coração de Jesus, para a realização da missa em Ação de Graças a Nossa Senhora Aparecida. A homilia foi realizada pelo Padre Rosiely, vigário da paróquia de São José da Prelazia de Itacoatiara, sendo ele o sacerdote que coordenou a missa festiva, intercalada por músicas, leituras de textos bíblicos.

A liturgia teve a participação dos moradores da comunidade e, referindo-se aos quilombolas e demais comunitários, o sacerdote chamou a atenção para a importância da união entre os comunitários, destacando as virtudes de Maria como santa Padroeira da Comunidade Sagrado Coração de Jesus do Lago do Serpa. As crianças, os adultos e idosos participam da programação religiosa; aliás, uma prática comum no Lago do Serpa é as crianças tomarem a benção das pessoas mais velhas. Após o término da missa festiva, acontece o chamado arraial; um momento de comensalidade em que as comidas regionais são vendidas, como: o vatapá, arroz, doces, bebidas; uma festividade animada por músicas, danças, jogos de bingo, leilão, sorteio de brindes com expressiva participação dos comunitários no evento de cunho religioso e sociocultural.

Respeitando-se as peculiaridades locais, muitos desses ritos e festejos são característicos tanto no contexto urbano, como é o caso do quilombo do Barranco de São Benedito em Manaus, quanto nos quilombos rurais, a exemplo da comunidade quilombola do Tambor, em Novo Airão – AM, nos quilombos da região do rio Andirá, em Barreirinha – AM. Enfim, estas práticas de cultos aos santos e santas expressam as religiosas das vertentes populares evocadas pelas lideranças quilombolas.

A propósito, o Sr. Sebastião Ferreira de Almeida38 (Bá), Presidente da Associação dos Moradores Remanescentes de Quilombo, da Comunidade do Tambor, em Novo Airão – AM, relata experiências acerca de datas comemorativas:

Vou falar um pouco da história das festas, tipo: São Pedro, São João, Santo Antônio, São Francisco, Nossa Senhora da Conceição, Santa Luzia, as datas comemorativas e tradições que aconteciam na época em que eu tinha cinco anos de idade. Comecei participar dessas festas, das comemorações celebradas pelo povo da região, as famílias, os dançarinos, comemoravam com a comida tradicional, o peixe, a carne, toda a alimentação que trazia bem-estar para nossa saúde, o pé-de-moleque, a tapioca de goma, o beiju-cica, um beiju massa grossa. Assim, as tradições eram comemoradas nas datas que eu relatei, os mordomos faziam o levantamento dos mastros, era tipo uma associação formada por cooperadores, doadores, pessoas que doavam as coisas para enfeitar o mastro, com a bandeira, em comemoração ao santo padroeiro daquele dia, assim, era a tradição da região, onde eu nasci e me criei. Todas as datas eram comemoradas por pessoas que festejavam e convidavam outras para passar junto nessas festas, no dia do santo em que era o encerramento da festa, as pessoas rezavam nas igrejas, faziam orações, realizavam passeatas, no entorno das suas residências, na comunidade, todos tomavam os barcos e saiam fazendo o passeio fluvial em comemoração ao santo. O santo seguia no andor num barco que ia na frente e os outros barquinhos atrás seguindo o barco do santo padroeiro, era uma coisa muito bonita, com fogos, com tiroteios, com foguetaria, com várias atrações comemorativas da região, isso já não existe mais para a nossa população, a juventude de hoje não tem o conhecimento tradicional do povo de quarenta anos atrás, cinquenta anos atrás, era uma comemoração. O pessoal tomava a caipirinha, a caipirosca e fazia o aluá, que era o suco de abacaxi com uma bebida mais forte que chamavam de licor, aquilo deixava as pessoas mais animadas, mais ativas e mais populares, assim, era a nossa tradição dos anos passados. Hoje, já não temos mais essas comemorações, mas, ainda temos como lembrança na comunidade do Tambor o festejo de São Francisco, comemorado no dia quatro de outubro, uma festa com três noites dançantes, vários visitantes comemoram juntos com a comunidade essa tradição de São Francisco, é muito bom lembrar de todas as festas que hoje não existem mais […] (Sebastião Ferreira de Almeida – Presidente da Associação dos Moradores Remanescentes de Quilombo da Comunidade do Tambor. Entrevista 05 [16 de Junho de 2022].

O depoimento do Sr. Sebastião de Almeida acerca dos festejos e datas comemorativas aos santos e santas ratifica que tais práticas acontecem desde os primórdios das comunidades quilombolas; uma religião, por assim dizer, aglutinadora de elementos produtores das simbologias de identidades étnicas. A sequência dos ritos festivos se dá pela comensalidade, isto é, na venda de produtos alimentícios próprios da gastronomia regional, com destaque às comidas e bebidas típicas dos quilombos amazônicos, como o peixe e outros derivados da mandioca: o pé-de-moleque, a tapioca de goma, o beiju-cica, feito de massa grossa, entre outras guloseimas. Outros aspectos comumente realizados nos quilombos são as procissões com o andor dos santos e/ou santas expostos nos barcos que seguem ao longo dos lagos e rios, sempre acompanhados por animadas músicas, danças e entretidas com as explosões de fogos artificiais.

Na esteira dos mesmos fatos citados, convém mencionar a narrativa da líder quilombola, Maria Amélia os Santos Castro39, articuladora política dos quilombos do rio Andirá – Município de Barreirinha/AM:

[…] relatar sobre a festa de São Sebastião e a devoção do povo é tão grande dentro da comunidade quilombola, a gente teve uma fé profunda nessa pandemia que passou. A gente se apegou muito com ele e com Deus, nós perdemos duas pessoas da comunidade com Covid, mas eles pegaram na cidade, lá dentro do quilombo alguns pegaram, mas de forma mais branda. A devoção de São Sebastião entre os quilombolas é muito profunda essa fé, a festa de São Sebastião foi a primeira que existiu nas comunidades quilombolas, ou seja, antes delas serem reconhecidas. O que eu falo aqui é sobre o tempo dos meus avós, das minhas tias, do meu bisavô, então, essa festa é de muito tempo, o papai falava que existia em três partes, dentro do Matupiri mesmo, fazia essa devoção em três casas, em louvor a São Sebastião, é uma devoção que até hoje os netos e bisnetos ainda mantém, muitos não têm mais, mas outros têm muita fé no milagre de São Sebastião. Pra nós, quilombolas, São Sebastião é o nosso Padroeiro, é padroeiro das nossas comunidades do rio Andirá no município de Barreirinha. E por este motivo, nós colocamos ele como padroeiro das comunidades quilombolas, dia 20 de janeiro é o dia da festa dele, do dia 11 até o dia 20, até o dia 21 muitas vezes, ai, fica o dia do dia 21, nós já conversamos que depois da festa de São Sebastião terá a festa do Arranca Toco, que é da festa de São Sebastião, no dia 26 de março, no ano que vem a gente vai fazer essa devoção, juntos com pesquisadores que já estiveram por lá, um estudante que tem lá, que já conversou com as pessoas mais velhas, pois depois da derrubada do mastro de São Sebastião, aí virá a festa do Arranca Toco, no dia 26 de março, tudo isso a gente tá fazendo pra que aconteça de volta a nossa tradição (Maria Amélia dos Santos Castro – Vice-Presidente da Federação das Organizações Quilombolas do Município de Barreirinha – FOQMB. Entrevista 06 [17 de Junho de 2022]).

A fé devotada em São Sebastião integra as tradições do povo quilombola das comunidades do rio Andirá, em Barreirinha, uma prática que remonta a épocas de seus antepassados, ao invocarem o Santo Milagroso por meio de uma espiritualidade profunda, em seu nome realizam-se preces pela cura das doenças. E no caso do santo padroeiro dos quilombolas, no município de Barreirinha, ele está no calendário festivo da comunidade. As comemorações coletivas advindas do universo da religiosidade popular congregam o povo católico do lugar; uma prática característica ocorrida no contexto das unidades quilombolas rurais.

A história do festejo em devoção a Nossa Senhora Aparecida celebrado no quilombo em Itacoatiara, de acordo com os relatos dos membros da comunidade quilombola, iniciou após a imagem da santa ser encontrada flutuando nas águas do Lago do Serpa por um casal que, ao se banharem naquele lugar, viram a imagem e a levaram para uma residência da localidade. Após o corrido, passaram a realizar, ano após anos, a procissão fluvial dedicada à imagem encontrada nas águas do lago. Neste sentido, o grupo social interage na geografia específica da cidade, situada à margem esquerda do rio Amazonas, onde predomina o bioma Amazônico cujo território étnico está inserido em meio a floresta, ou seja, no entorno de um belo lago, lugar no qual expressam publicamente a sua religiosidade no espaço do quilombo rural.

Isto posto, e, considerando toda essa realidade contextual, foi necessário a minha incursão, durante a pesquisa, no território quilombola a fim de descrever, ouvir e coletar os dados referentes ao evento religioso dedicado à imagem de Nossa Senhora Aparecida, que aconteceu na data de 22 de setembro do corrente ano. O contato direto com essa comunidade étnica implicou, necessariamente, treinar o olhar para o refinamento do objeto em análise, permitindo-me adentrar os minuciosos detalhes do mundo religioso; uma expressão simbólica de realidades desse grupo étnico e a estreita empatia que, em forma de procissão, fé e crenças navegam nas águas do lago do Serpa, tendo como mentora dos ritos e protetora dos quilombolas, a imagem de Nossa Senhora Aparecida.

Assim a pesquisa prospera ao buscar por via da reflexividade a construção epistemológica de raiz quilombola, escavando as histórias e aprendendo as “estórias”, a partir das narrativas míticas do grupo em análise e produtor da espiritualidade vivida às margens da doutrina oficial, mediante o protagonismo demonstrado pelos moradores do quilombo.

Os elementos postos para a tessitura dos textos são passíveis de mudanças, atualizações e revisões, visto que a etnografia tornar-se-á indispensável para consolidar a presente produção científica, ainda em curso e em diálogo com as sugestivas referências bibliográficas, tais como: Galvão (1955), Melo (2021), Oliveira (2019), Frota (2018), Lira (2018), Maués (2007). Autores imprescindíveis para a devida compreensão acerca de estudos das religiões forjados no ambiente acadêmico que tem como lócus a Amazônia.

_________________

31 O trecho citado compõe a letra do Samba Enredo da Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis, de 2004, intitulado: Manôa – Manaus- Amazônia – Terra Santa Que alimenta o corpo, Equilibra a Alma e Transmite a Paz.

32 Ao longo da extensão do Lago do Serpa existem muitas cabeceiras. Do lado direito do Lago do Serpa a primeira cabeceira chama-se jiquitaia, outra cabeceira é um lugar onde teriam morado os escravos chamados pejorativamente de “baixa da égua”, cabeceira do Aldo, cabeceira Jacaré Grande, Cabeceira Jacarezinho, Cabeceira Caraipé, Cabeceira do Fiuzo, Cabeceira do Baú (onde fica a sede da Comunidade Quilombola Sagrado Coração de Jesus) Cabeceira Barroso, Cabeceira do Lima, Cabeceira do Jeremias, Cabeceira do Raimundo Sabino, Cabeceira do Jaraquizinho, Cabeceira do Jaraqui Grande, Cabeceira da Prainha. Do lado esquerdo do Lago ficam localizadas a Cabeceira Terra Preta, Cabeceira Mujuí, Cabeceira Sovaco da Cobra, Cabeceira Bacabau, Cabeceira Jumanã, Cabeceira Campo Velho, Cabeceira da Baixinha, Cabeceira da Jibóia, Cabeceira Mariano e Cabeceira Copaíba.

33 Em um momento de conversa com o Sr. Ernando Soares Macedo, Presidente da Associação Quilombola Sagrado Coração de Jesus do Lago do Serpa, ele se referiu aos troncos familiares que ocupam secularmente a região do Lago do Serpa, denominando-os de “troncos velhos”, reportando-se aos Sabino, Macedo, Barros, Melo e Clarindo, tradicionais famílias de moradores do lugar social.

 

34 Autora da tese intitulada “Os cadeados não se abriram de primeira: processos de construção identitária e a configuração do território de comunidades quilombolas do Andirá (Município de Barreirinha-Amazonas)”, defendida em 2016, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social-PPGAS/UFAM.

35 A Prelazia de Itacoatiara foi criada em 13 de julho de 1963, e atua há 60 anos desenvolvendo serviços eclesiásticos através das pastorais, práticas da catequese, com a presença de seus religiosos junto às comunidades da Amazônia.

36 Por ocasião de uma conversa com o quilombola Francismar Santos de Melo, 45 anos, conhecido por todos como Preto, relatou que nas procissões realizadas no passado as canoas eram movimentadas a remo, tendo dito a frase a seguir: “Não se houve mais o barulho dos remos”.

37 Motor rabeta são pequenas canoas com motores acoplados na sua traseira, esse tipo de transporte é bastante comum nas comunidades da Amazônia.

38 ALMEIDA, Sebastião Ferreira de. Entrevista 05 [16 de Junho de 2022]. Entrevista realizada por WhatsApp. Entrevista concedida a Vinícius Alves da Rosa.

39 CASTRO, Maria Amélia dos Santos. 63 anos. Entrevista 06 [17 de Junho de 2022]. Entrevista realizada por WhatsApp. Entrevista concedida a Vinícius Alves da Rosa.

Continua na próxima edição…

*Vinícius Alves da Rosa é Quilombola do Morro Alto/RS, mestre, professor e teólogo, tem sua formação acadêmica pautada em uma sólida jornada de conhecimento. Sua expertise é ampliada por especializações em Metodologia do Ensino de Filosofia, em Ciências da Religião. Complementou sua trajetória com um Mestrado pelo Programa de Pós-Graduação e, por fim, obteve seu título de Doutor em Ciências da Religião pela (UMESP).

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