
*Vinícius Alves da Rosa
Um estudo da comunidade do barranco de são benedito, em Manaus, e do sagrado coração de jesus do lago do Serpa, em Itacoatiara – Am
Continuação….
4.2 Aspectos históricos: expressões do cotidiano dos quilombolas do lago do Serpa/Itacoatiara – Am
Ao longo do percurso metodológico da pesquisa, este estudo está apoiado em alguns autores e autoras com registro nas referências bibliográficas disponíveis, a partir das dimensões dos cotidianos quilombolas, a postura pública epistêmica assumida de resistência ao colonialismo, utilizando-se, portanto, dos fundamentos teóricos decoloniais aplicados para os estudos da religião.
Diante desta contextualização, cabe referir as comunidades étnicas quilombolas dessas regiões da Amazônia no debate produzido sobre a religiosidade vivida, conforme o uso da ocupação dos espaços nos territórios urbanos e rurais. Tais narrativas expressam as ritualísticas sagradas implícitas na maneira como experienciam suas tradições religiosas, entre outros aspectos do cotidiano, marcados pela forma como os quilombolas compreendem o mundo.
As incursões desta pesquisa – acionada pelas trilhas abertas das memórias a resgatar suas historicidades – leva-nos a conhecer os elementos do cotidiano dos quilombolas como verdadeiros marcadores analíticos, caracteristicamente construídos. A condução por via desta perspectiva nos permitiu enveredar por análises científicas em face dos processos sociais e suas especificidades étnicas próprias da realidade amazônica, sobretudo aqueles rituais de religiosidade vividos nas festividades que ainda acontecem em reverência aos santos padroeiros em diferentes épocas do ano.
O escritor Francisco Gomes da Silva (2024), estudioso da história da cidade de Itacoatiara, sustenta que, por questão lógica, o Lago do Serpa integrava a área da Colônia Itacoatiara, cuja sede administrativa situava-se à margem do rio Amazonas. Lugar que atualmente foi tomado pela parte oeste do bairro Colônia, nas adjacências da Igreja do Divino Espírito Santo, bem como pela Usina de Borracha e pela fazenda Rattes. Assim, ao ser extinta a Colônia Agroindustrial, os chamados Africanos Livres que, na busca de melhores condições de vida, foram estigmatizados, perseguidos, na condição de ex-colonos. Assim, encontraram abrigo na mata, espalhando-se pelas áreas marginais ao longo do Lago do Serpa.
Ainda de acordo com Silva, nessa localidade, os negros promoviam às margens do Lago suas lutas diárias para o sustento familiar com ênfase no plantio e de derivados da roça. Para além dessa produção, nas décadas de 1950-1960, a produção de carvão era bastante usada nas cozinhas da cidade e a bordo dos navios nacionais e estrangeiros das companhias fluviais que aportavam em Itacoatiara. Nas atividades artísticas, a música estava presente, assim como a arte de fabricar os próprios instrumentos.
Há também o registro memorável de autoria do viajante inglês Henry Walter Bates, contido na clássica obra O Naturalista no Rio Amazonas. Trata-se da viagem ocorrida durante a expedição pela Amazônia, a qual descreve detalhadamente diversas relações de contato realizadas, quando da busca de informações durante a passagem pela Vila de Serpa:
Serpa é uma pequena aldeia formada por umas oitocentas casas assentadas num montado vinte e cinco pés acima do nível do rio. Os leitos de Tabatinga, que aqui se misturam a um conglomerado que parece de escórias, são em alguns pontos de declive, de cores variegadas; o nome da cidade, em língua tupí, Itacoatiara, tira sua origem dessa circunstância, pois significa pedra pintada ou listrada. E velho burgo, e já foi sede do governo que tinha jurisdição sobre a barra do Rio Negro. Em 1849 era uma aldeia em ruínas, mas depois reviveu, por ter sido escolhida pela Companhia de Navegação a Vapor do Amazonas como estação de Serrarias a vapor e fábrica de telhas. Chegamos na véspera do Natal, quando a cidade apresentava animado aspecto, pelo número de pessoas que se tinha reunido para os dias santos. O porto estava cheio de canoas, grandes e pequenas, desde a montaria, com seu toldo arqueado de lianas entretecidas e folhas de Maranta até à cobertura de dois mastros do negociante fufarinheiro, que aí fundeara na esperança de negociar com os colonos, vindos de sítios remotos para esperarem pela festa (Bates, 1944, p. 334).
A então Vila de Serpa, atual município de Itacoatiara, recebeu no período imperial, enviados pelo Imperador do Brasil Dom Pedro II, os chamados “braços africanos” que ajudaram a desenvolver os negócios do Sr. Irineu Evangelista de Souza (Barão de Mauá), gerente da Companhia de Navegação do Amazonas. Os classificados “Africanos Livres”, tiveram as suas forças de trabalhos exploradas nos serviços da serraria, olaria, fazenda e demais propriedades do Sr. Mauá.
A presença e ocupação histórica dos negros na região da Vila de Serpa, constatada por Henry Walter Bates, diz-nos que:
Os negros que têm o santo de sua cor, São Benedito, faziam sua festa em separado, passando a noite inteira cantando e dançando com a música de um comprido tambor, o gambá e do caracaxá. O tambor era um tronco ôco, com uma das extremidades cobertas de pele, e era tocado pelo músico que ficava escanchado em cima dele e batia na pele com os nós dos dedos. O caracaxá é um tubo de bambú, cheio de dentes, que produz som rascante, quando se esfrega uma vara dura sobre os dentes. Nada podia exceder em triste monotonia esta música, bem como o canto e a música que se prolongavam sem esmorecimentos pela noite adentro. Os índios não conseguiam dançar, pois os brancos e mamelucos monopolizaram todas as raparigas bonitas para os seus bailes e as velhas índias preferiam ficar espiando a tomar parte nelas. Alguns maridos se juntaram aos negros, embriagando-se rapidamente. Era divertido ver os índios, naturalmente taciturnos, se tornarem palradores sob ação da bebida. Os negros e índios desculpavam-se de sua intemperança, dizendo que os brancos estavam se embriagando na outra extremidade da Vila, o que era verdade (Bates, 1944, p. 336).
No destaque de Bates, o culto a São Benedito estava sendo prestado na Vila de Serpa, como é próprio das irmandades negras que encontram na representação social da negritude deste santo, um alento e consolo para as dores do dia a dia, onde os negros recorrem ao santo da sua cor. Além disso, do ponto de vista cultural, os negros da localidade estudada são verdadeiros artistas na acepção do termo, pois constroem os seus próprios instrumentos musicais. A realidade, empiricamente observada, possibilitou conhecer as procissões fluviais, quermesse aos santos católicos, os eventos promovidos que, por sua vez, expressam a religiosidade, as noites alegres vividas neste cotidiano rural.
Semelhantemente, merece a nossa atenção na perspectiva de análise do lugar estudado, a viagem do médico alemão Robert Christian Avé-Lallemant nas águas do rio Amazonas em 1859. Ele visitou a antiga Serpa. A fim de obter informações, o viajante naturalista manteve contato com os negros da mencionada localidade, conforme consta do registro:
O Amazonas estendia-se agora portentoso diante de mim, um verdadeiro mar de água doce. Minha montaria foi também mais rapidamente arrastada pela sua corrente; e quando o sol, que se punha na longínqua margem do nordeste, irradiou seus últimos raios, pudemos avistar Serpa, no Amazonas, onde ia esperar o vapor, na sua viagem de volta de Manaus ao Pará. Fiquei deveras contente, quando saltei da minha canoa para terra. Na colônia estava tudo quieto. O Diretor do instituto fora para Serpa. Mandei um negro lá, e, meia hora depois, era recebido e hospedado o mais amavelmente possível pelo Sr. Moritz Becher. (Avé-Lallemant, 1961, p. 203).
A estada de Lallemant, em Serpa, cuja hospedagem foi possível através do Sr. Moritz Becher, oficial alemão que morava neste lugar. A vinda até Serpa se deu devido à intencionalidade do domínio estrangeiro estabelecido pela Companhia de Navegação do Amazonas, cuja subalternidade dos negros está na ênfase dada pelo visitante na expressão “mandei um negro lá”. Nisto fica evidente a inferioridade dos negros a serviço dos europeus que detinham o controle dos negócios no local.
Ainda que o olhar esteja carregado de preconceitos a respeito dos observados, na sua última parada no Amazonas, Robert Lallemant passou alguns dias em Serpa. Assim como visitou a antiga Colônia Agroindustrial, onde conheceu a natureza em meio à floresta, provou as iguarias regionais e, de certa forma, surpreendente, descreveu a maneira como eram explorados os trabalhadores negros e indígenas.
Êsse comércio compõe-se quase todo de portugueses e brasileiros brancos, a maioria dos quais vive com uma índia, de maneira que as crianças mestiças pulam por toda parte. Quem não vive dum “negócio”, numa casa branca, coberta de telhas vermelhas, forma, em Serpa, um pequeno mundo tapuia, quieto e pouco afetado pelos tormentos e pelos prazeres da vida, que mora em casas de barro, cobertas de palha, e se alimenta exclusivamente de pirarucu e tartaruga. Muitas raparigas e mulheres tapuias, parece que dado o maior número de homens, não viver mesmo até na Colônia de Serpa, circunstâncias que, tratando-se duma civilização apenas iniciada são difíceis de se evitar (Avé-Lallemant, 1961, p. 208).
As referências do viajante europeu aos rios da Amazônia, aos igarapés, aos lagos, às árvores regionais, bem como às flores, folhas e aos animais encontrados na mata, denotam o seu encantamento, principalmente, pela beleza da Vitória Régia. De acordo com tais descrições do lugar onde reinava a tranquilidade, isto pode sugerir o sentido atribuído à construção do olhar a respeito da Amazônia como espaço paradisíaco. Desta feita, suplantam-se quaisquer análises acerca dos conflitos existentes nessa Amazônia profunda em detrimento do conceito que a interpreta como sendo um paraíso verde.
Quanto a isso, surpreendentemente, os registros de viagem também destacam certas contradições nas proximidades da mesma localidade em que indígenas e negros trabalhavam no serviço pesado, conforme o relato de Robert Lallemant:
Perto daí deparamos logo um rancho duma família Índia, no qual o genro português com o mais velho chefe da família e mais alguns trabalhadores viviam de cortar lenha para a Companhia do Amazonas, da pesca e duma lavoura muito limitada. O índio velho tinha também uma pequena forja, e fabricava ganchos de ferro para pescar e pontas de arpão para a pesca de pirarucu e tartarugas (Avé-Lallemant, 1961, p. 212).
A Companhia de Navegação do Amazonas atuava na circunvizinhança, submetendo indígenas e negros ao trabalho forçado no entorno da floresta sem qualquer assistência pública, ou seja, no pequeno povoado do Serpa em lugar algum havia médicos, centenas de pessoas estavam expostas às doenças e eventualidades. A empresa presidida por Mauá geria os empreendimentos comerciais, explorando a Colônia Agroindustrial economicamente, sob a liderança de homens brancos, estrangeiros, alemães, portugueses, chineses e ingleses. Por exemplo, o Diretor Moritz Becher, engenheiro alemão contratado para o cargo pelo próprio Barão de Mauá.
Podia passar uma vida sobre os melhoramentos iniciados recentemente. Quando a poderosa pulsação da artéria do Amazonas – a navegação a vapor – começou no rio, fêz-se sentir a utilidade a necessidade mesmo de, ao lado dêsse largo passo para o progresso, estimular-se também a atividade industrial e cuidar igualmente dalguma agricultura (Avé-Lallemant, 1961, p. 203).
As máquinas a vapor funcionavam na serraria cortando grandes toras de cedros, maçaranduba e itaúba, serrando as pranchas largas e tábuas das melhores madeiras que seriam vendidas e armazenadas nos depósitos movimentados pelo comércio do Sr. Irineu Evangelista de Souza, Barão de Mauá, situado na Colônia perto do Serpa.
Robert Avé-Lallemant ainda enaltece o que chamou de melhoramentos iniciados recentemente com a navegação a vapor. Isto porque a presença europeia era compreendida como a possibilidade de obter prosperidade, portanto, estimulava a atividade industrial advinda da Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas, que percorria os rios da Amazônia brasileira e peruana desde 1852.
Os trabalhos desenvolvidos no povoado de Serpa, após a instalação de uma serraria e máquina, ambas a vapor e usadas para a fabricação de tijolos, telhas e artigos de barros, necessários para a construção das obras, eram vistos por Avé-Lallemant como o progresso obtido a partir da presença dos profissionais europeus. Embora essas conquistas sejam registradas em relação aos estrangeiros, convém lembrar que a mão de obra utilizada nos serviços para o desenvolvimento econômico da localidade, era a dos negros e indígenas, sob a chefia de homens brancos.
Um mangote de negros, muitos índios e índias, levam lá sua laboriosa existência, dum lado para outro, cada um na sua esfera, uma população, que, se jamais uma localidade mereceu esse nome, deve chamar-se muito apropriadamente um pequeno mundo. O tato seguro do Barão de Mauá, esse homem realmente grande, porém modesto, a quem o Brasil no presente deve indiscutivelmente seu melhor impulso e incitamento, deu-lhe como chefe um honrado e bem-educado alemão (Avé-Lallemant, 1961, p. 205).
Embora se trate de uma apropriação e domínio sobre essa mão de obra nativa ou os negros capturados para esse fim, a história registra que mesmo passados mais de 150 anos, os homens brancos continuam a dominar os negócios desta região, investidos de cargos políticos, ou como donos de fazendas, criadores de gado. Através desse domínio, os donos de grandes empreendimentos continuam submetendo pessoas ao trabalho exploratório, geralmente, por meio do escambo, ou seja, através da troca dessa força de trabalho, seja por comida e água, sob o mesmo argumento de que o progresso é a chave da boa aventurança de uma nação.
A exemplo de práticas de dominação pretéritas, na atualidade uma elite econômica local se opõe publicamente à titulação das terras do quilombo rural situado no Lago do Serpa, em Itacoatiara – AM. O argumento é sempre sustentado sob a falácia do progresso ou de projetos de desenvolvimento do município. Fato a respeito do qual se registram inúmeros entraves oriundos dos conflitos agrários registrados ao longo daquele território quilombola. São ações engendradas através de certos parlamentares associados a grandes grupos do mercado imobiliário sob a justificativa do potencial turístico para a região ou de exploração pesqueira ocorrida, predatoriamente, no lago do Serpa.
Com isso, cabe frisar a hegemonia da cultura imposta pelos brancos privilegiados, através de reiteradas estratégias da negação do território quilombola na área do Serpa. Tais fatos citados demonstram as intenções de invisibilizar a presença do grupo étnico com as suas práticas vividas secularmente no cotidiano desse lugar social e, portanto, tradicionalmente ocupado por esse quilombo rural.
Em Serpa, além desse passado marcado por vivências de exploração da mão de obra negra, há marcas históricas de práticas culturais tradicionalmente criadas, valorizadas e mantidas pelos quilombolas e que, em síntese, compõem o que se deve entender por patrimônio. Enfim, são atribuições àquilo que se cria, valoriza, pretendendo-se, em última instância, preservar. Esses valores simbólicos podem se expressar através dos processos de cura, das crenças em visagens ou das relações que os agentes sociais estabelecem com os seres encantados das águas e da floresta. Por exemplo, as experiências misteriosas narradas a respeito do aparecimento de bichos estranhos; de feras com os olhos de fogo, das onças d’água bravas com patas de cavalo, orelhas grandes de elefante.
Isso tudo compõe um cenário no qual criaturas, forjadas seja no processo de cura ou no enfoque lendário, eram vistas em áreas das proximidades do quilombo, conforme descreveu o Sr. Raimundo João Rolin, sobre o seu bisavô, Martinho Leal:
Ele começou a curar, uma pessoa vinha por ali, ele fazia o remédio, daí dava certo, começou a curar, então, começou a correr a fama dele de curador, na época era o tal de curador. Daí, passou a ser procurado por muitas pessoas, por muita gente. A minha avó contava que a casa do meu bisavô, quando ela casou, porque ela ainda o viu curando. Ela contava muitas histórias desse momento, por exemplo, o caboco, ou seja, o espírito que vinha pra incorporar, ele chegava de cavalo, chegava de barco, eram vários tipos. Vinha aqueles cabocos brabos e outros que faziam só o bem, a fama dele cresceu bastante nesse meio aqui. A minha avó falava que a casa deles parecia casa de festa, era dia e noite, gente chegando e saindo, tinha gente que se curava e ia embora, outros ficavam por ali um tempão, até fazer algum trabalho voluntariamente pra ele e depois iam embora. Aqui no Lago do Serpa, em uma época, teve uma moça que havia se encantado, pela primeira vez ela ficou menstruada, ela não sabia, foi tomar banho no lago, daí, ela desapareceu, foi pra baixo do capim, então, foram buscar ajuda do meu bisavô, Martinho. Ele fez todo o procedimento e conseguiu fazer com que a moça subisse de dentro da água, ela estava cheia de limo, mas ele mandou fazer um banho pra ela, lavou ela que ficou um bom tempo fora de si e depois foi se recuperando. Minha avó e o meu avô contavam essa história [Raimundo João Rolin Leal, 63 anos, Entrevista realizada na residência do entrevistado, Itacoatiara, Amazonas, em 9 de maio de 2024].
O relato do quilombola Sr. Raimundo João Rolin, morador do quilombo do Serpa, a respeito do seu bisavô, aponta que o seu bisavô, o Sr. Martinho Leal, começou a desenvolver a cura na referida comunidade, após ter visto duas onças que o atacaram. As onças são chamadas de tapiraiauara, (onça d’água), figuras míticas amazônica descritas como habitantes dos rios da região. E, depois de um longo período doente em consequência do ataque dos animais, seu Martinho se recuperou e passou a desenvolver o dom de curar às pessoas que o procuravam.
E além do Sr. Martinho Leal, as narrativas dos quilombolas do Serpa, afirmam que eles conheciam os diferentes meios e modos de se curar, como é o caso do Sr. Severino do Nascimento, um rezador que promovia a cura de dor de dente, quebrante (mau olhado), erisipela (infecção na pele). Outro rezador na localidade do Serpa, era o Sr. Antônio de Vilena Clarindo, que rezava para a cura de desmentidura, isto é, deslocamentos ou contusões musculares ocasionadas nos corpos das pessoas. A prática da reza é bastante comum nas regiões norte e nordeste do Brasil.
A respeito desta identidade cultural, manifestada em mitos e lendas, crenças e práticas religiosas, o antropólogo Raimundo Heraldo Maués (2007), no artigo “Catolicismo x Chamanismo: reflexões sobre a pajelança amazônica, renovação carismática e outros movimentos eclesiais”, diz-nos que essas crenças e práticas se encontram espalhadas por várias partes da Amazônia, o que pode ser atestado por estudos científicos realizados por antropólogos e historiadores na região.
E, por esse viés, os trabalhos de pesquisas contemporâneas sobre as diferentes formas de religiosidade na região enfatizam como se diferencia de outras localidades do país, por certas características e peculiaridades, assim o trabalho intitulado: “A Igreja Católica na Amazônia: religiosidade e conflito” observa que:
Algumas expressões de religiosidade, como o catolicismo popular e a pajelança, prática religiosa muito vivenciada na região Amazônica o que muitas vezes acabou gerando certos atritos com a ortodoxia de alguns. De forma mais explicativa, o caso do Território Federal do Amapá merece destaque em relação a tais atritos, de um lado a religião considerada oficial com sua ortodoxia, de outro os festeiros do catolicismo popular, praticantes do xamanismo e/ ou de outras relações com o sagrado (Carvalho & Reis, 2018, p. 71).
Tais atritos travados entre a religião institucional e a religiosidade popular praticada de devoção aos santos padroeiros pelos quilombolas na Amazônia tanto nas comunidades urbanas quanto rurais já demonstrados nesta tese, permitem lançar um olhar crítico para a compreensão de um campo de disputas e poder em relação ao monopólio do sagrado.
A respeito, Maués (2016), autor da resenha “Linguagens da Religião no Contexto Amazônico”, é citado por Tuveri:
Quando Maués fala de catolicismo popular, não o entende como o catolicismo das populações das classes baixas, mas apenas do catolicismo praticado pelas pessoas que compõem o povo em geral, leigos ou até clérigos, em contraposição ao catolicismo oficial praticado pela Igreja enquanto instituição hierárquica, retirando, portanto, qualquer ambiguidade ou sentido depreciativo da palavra popular (Tuveri, 2018, p.1).
O pesquisador Raymundo Heraldo Maués, estudioso da religiosidade vivida em diferentes contextos amazônicos, ao discorrer sobre o catolicismo popular, o entende como a autonomia dos distintos agentes sociais que compõem o povo, desvinculados das normas estabelecidas pela religião oficial.
Isto posto, a presente tese busca contribuir com o debate acadêmico proposto no âmbito das Ciências da Religião, trazendo epistemologias cujos fundamentos têm as bases nas unidades quilombolas, situadas na Amazônia, sob a ótica da religiosidade vivida no dia a dia das comunidades urbanas e rurais.
Neste sentido, a atividade acadêmica dedicada às investigações referentes à cultura religiosa vivida pelos quilombolas está apoiada no trabalho de campo etnográfico, mediante os contatos estabelecidos no intuito de construir os dados que descrevam as características específicas das comunidades étnicas analisadas.
Procurou-se trazer elementos ao longo da execução da pesquisa, sobretudo, para evidenciar os ritos religiosos legitimados secularmente nas duas unidades étnicas. A primeira, configurada na reverência prestada do culto a São Benedito, no quilombo do Barranco em Manaus; a segunda, na procissão praticada nas águas do Lago do Serpa, em Itacoatiara – AM.
A riqueza destas tradições religiosas, em suas complexidades, expressa a fé dos quilombolas politicamente organizados da Amazônia que se fortalecem por meio das crenças nos seus santos padroeiros, dentre as quais está referenciada a fé na luta pela demarcação dos seus territórios, afirmando historicamente as suas identidades étnicas.
Em contraposição, as classificações arbitrárias proferidas sobre as hierarquias religiosas firmam-se neste trabalho, empregando o esforço epistêmico de situar a religiosidade de vertente popular protagonizada pelos quilombolas urbanos e rurais, no mesmo patamar de importância das demais tradições religiosas, com seus aspectos sagrados, humanos, culturais e históricos.
Assim, cabe reforçar a contribuição científica assumida, que entrelaça a tessitura da tese por ora apresentada e nos faz pensar na urgência da inclusão das diferenças, com vistas a combater as ideologias criadas para excluir as comunidades quilombolas.
Por essa ótica, torna-se premente registrar a relevância das memórias e histórias da presença dos coletivos negros no município de Itacoatiara/AM, bem como deve ser extensivo aos marcadores culturais que permeiam a realidade do quilombo urbano a ser analisado sob a ótica da diversidade e equidade acerca do prisma etnocultural da Amazônia, conforme discussões subsequentes.
Continua na próxima edição…
*Vinícius Alves da Rosa é Quilombola do Morro Alto/RS, mestre, professor e teólogo, tem sua formação acadêmica pautada em uma sólida jornada de conhecimento. Sua expertise é ampliada por especializações em Metodologia do Ensino de Filosofia, em Ciências da Religião. Complementou sua trajetória com um Mestrado pelo Programa de Pós-Graduação e, por fim, obteve seu título de Doutor em Ciências da Religião pela (UMESP).
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