Manaus, 12 de novembro de 2025

Religiosidade popular nos quilombos urbanos e rurais da Amazônia

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*Vinícius Alves da Rosa

Um estudo da comunidade do barranco de são benedito, em Manaus, e do sagrado coração de jesus do lago do Serpa, em Itacoatiara – Am

Continuação….

4.3.1 Reverenciando São Benedito

Os contatos estabelecidos entre o autor deste trabalho com o Quilombo Urbano em Manaus, ocorreram desde 2016, a relação de pesquisa construída junto à comunidade étnica, por via das observações participantes, nos eventos oficiais realizados pelos quilombolas, para fins de registrar os vários aspectos da religiosidade por eles praticada.

Doravante o enfoque da seção em pauta, visa-se descrever acerca do Santo Padroeiro da Comunidade Quilombola territorializada no bairro Praça 14 de Janeiro (observe a figura 25, em anexo), pois São Benedito é um dos poucos santos negros oficialmente reconhecidos pela Igreja Católica Apostólica Romana, visto se tratar do Santo protetor, milagroso e poderoso deste quilombo urbano, situado na área central da capital do Amazonas. Na comunidade étnica inserida em território urbano, reverencia-se o Santo Preto, no qual os devotos depositam a sua fé, confiança e profunda consideração. São Benedito é o elemento aglutinador dos quilombolas da comunidade do Barranco, produtor de identidades, em torno dele os agentes sociais desenvolvem relações de solidariedade praticadas secularmente.

Na esteira dos mesmos argumentos acima utilizados, podemos destacar o ritual de afirmação. Trata-se da festa religiosa organizada em devoção ao Santo Padroeiro, coordenada pelas lideranças do grupo étnico. Uma tradição que, em 24 de março de 2024, completou 134 anos. Para a realização desse rito ocorre a retirada e carregamento do tronco de envira; uma madeira extraída da mata a partir da autorização formal dos proprietários da localidade. Posteriormente transformado em mastro votivo, a extração da madeira ocorreu no Ramal Novo Teste, no KM 07, da Rodovia Manoel Urbano (AM-070), Manaus-Iranduba, especificamente, no Sítio Mareces, cuja propriedade pertence a Sra. Katiane, ao seu pai Sr. Antônio e o filho, Sr. Caio.

Após a retirada do mastro, o tronco de árvore é carregado manualmente pelos homens, sendo eles quilombolas e agentes externos à comunidade. Esta atividade exige um grande esforço físico, fato que, para os quilombolas de São Benedito, nada se conquista sem luta. Na ornamentação do mastro, adicionam-se frutas regionais cujo rito foi realizado em 30 de março de 2024, e a sequência do ritual festivo segue acompanhado das explosões dos fogos de artifícios. Vale ressaltar que a ornamentação do mastro é uma ação dos homens, mulheres e crianças. Na Avenida Japurá, Nº 1360, no bairro Praça 14 de Janeiro, acontece o ritual religioso, intercalado com o soar do sino, afixado na parede da residência, onde está o altar de São Benedito, mais exatamente na propriedade do quilombola Sr. João Paulo Benedito Sousa da Silva.

O evento religioso prossegue com o novenário. São 09 noites de orações, cujas rezas são feitas conforme liturgia evocada pelos fies, qual seja: “Oh, Glorioso São Benedito”, seguindo-se a Salve Rainha. Parte desse rito compreende a ladainha cantada em latim, estando a coordenação sob a responsabilidade dos quilombolas, sobretudo, das mulheres, mas também conta com a presença dos homens e das crianças. Em todas as noites de novenas serve-se um lanche para os presentes, que sempre é doado voluntariamente pelos devotos ou participantes da festa em honra ao Santo.

Ao retornar para o ponto de origem, assim como na saída, são realizadas orações em agradecimento a São Benedito pela proteção durante a viagem, novamente acontece o soar do sino, e estouros de fogos de artifícios. O mastro da madeira é transportado em um caminhão, que, ao chegar ao seu destino, o tronco é descascado e fica secando durante alguns dias em frente às casas dos quilombolas. Os agentes sociais ornamentam o mastro no Sábado de Aleluia: com folhas de samambaia e frutas regionais, como castanha, cupuaçu, ingá, banana, abacaxi, laranja, tangerina e abacate. Por tudo que representa, o ritual simboliza uma oferenda ao Santo e, no dia da realização do festejo, as frutas serão degustadas pelos participantes. Para os devotos, trata-se de uma prática que, na sua totalidade, vai sendo repassada de geração a geração.

No cume do mastro é fixada a bandeira de São Benedito, acompanhada de uma garrafa de vinho. A sequência do rito é celebrada com fogos de artifícios e após o levantamento do mastro iniciam-se nove noites de orações; um período de novenas e de fé no Santo Protetor. Esta liturgia inclui a Ladainha de Nossa Senhora, Salve Rainha, Agnus Dei, Canto Número Cinco e Oração, sendo parte da programação rezada e cantada em latim.

Na primeira noite de Novena, as orações são feitas rogando-se saúde em intenção aos quilombolas doentes; nos dias posteriores é mantida a mesma liturgia cuja prática tem a participação dos quilombolas, de outros devotos e das crianças. Todos acompanham os cânticos, assim como ex-moradores da localidade, que residem em outros bairros e que retornam à comunidade quilombola por ocasião do festejo. As novenas são conduzidas pela coordenadora da festa, a Sra. Jamily Souza da Silva, que tem por missão iniciar e finalizar o ato religioso. A liturgia contém rezas, músicas e ao término de cada novena a programação encerra com a frase citada três vezes e em coro: “Viva São Benedito!”. Ao término de cada noite da novena é servido um lanche que, segundo a tradição da comunidade, é doado por algum participante do evento.

Por ocasião da festa é confeccionado um manto novo para a imagem de São Benedito, que será usado ao longo de todo o ano, momento em que os devotos fazem preces, realizam orações individuais e coletivas. O rito ao Santo continua com a imagem ornando o andor, mantendo-se enfeitado com aquelas flores especialmente produzidas para a procissão. De acordo com a programação, no sábado, o translado percorre um trecho que vai da rua Japurá – situada no bairro da comunidade quilombola – com destino ao Santuário de Nossa Senhora de Fátima. Como parte da programação, o cortejo segue ao som do toque do sino, dos fogos de artifícios, momento em que os fies entoam seus cânticos. Trata-se de um momento de fé e emoção, envolvendo os participantes, alguns acompanhando o trajeto descalços. O hino a São Benedito é entoado, conforme o refrão a seguir:

Glorioso São Benedito
Servo de Deus Destinado
Que fielmente adorastes
A Jesus Crucificado56

A procissão é acompanhada por uma banda de música, formada por instrumentos de percussão e de sopro. Ao chegar no Santuário, os devotos foram recepcionados pelo pároco da igreja, Pe. Helton Luiz Wachholz de Souza. Cumprindo o percurso religioso, acontece uma missa festiva com início às 17h:30min. No dia seguinte, nesse Santuário Católico, às 18h, acontece a missa dominical que conta com um número expressivo de pessoas presentes. Na celebração em homenagem ao Santo Padroeiro, no templo católico geograficamente situado nas adjacências do quilombo urbano.

Na liturgia da missa, os fiéis cantaram o hino a Bendito de São Benedito, na homilia, instante em que o Padre mencionou a importância das virtudes do Santo Benedito para ajudar a unir a comunidade, com a ressalva de que o Santo deve ser considerado como um exemplo, pelo testemunho de vida, de fé, e de servo de Deus, que, segundo o religioso, a igreja o reconheceu por seus atos e por isso o santificou.

Logo após a celebração da missa, às 19h:30min, os devotos realizaram uma procissão de fé pelas ruas do bairro, que incluiu rezas e cânticos religiosos, acompanhado por um carro de som. No retorno à comunidade quilombola foi rezada a última novena, onde também aconteceu a derrubada do mastro com frutas que o ornavam. O momento é de entretenimento na festividade quando um desafio é lançado aos participantes antes da derrubada do mastro. O desafio é de que os presentes têm a oportunidade de subir no mastro enfeitado, e quem conseguir subir até a ponta onde está fixada a bandeira do santo e uma garrafa de vinho, cabendo ao concorrente receber a devida premiação.

Esses acontecimentos relatados são o resultado das relações de pesquisas empiricamente construídas com a reflexividade acadêmica. Assim, no decorrer dos anos tive a oportunidade de assistir e acompanhar as sequências dos cerimoniais religiosos, quais sejam: a escolha da árvore, subsequentemente, o corte do tronco e, numa ação de várias pessoas, se deu, ao longo da mata, o carregamento do tronco o qual, ao término do percurso, foi colocado num caminhão apropriado. Acompanhei o translado até a parte central da cidade de Manaus, onde está posicionado o quilombo do Barranco de São Benedito, no bairro da Praça 14 de Janeiro.

Num local estratégico do quilombo, ao ser fincado na terra, o tronco transmuta-se num longo mastro, totalmente ornamentado pelos moradores, os quais também conferem sua participação nas noites do novenário, bem como acompanham a procissão pelas ruas do bairro, ao término da qual se dá a realização da missa no Santuário Nossa Senhora de Fátima. De acordo com a programação, o ritual tem como encerramento a derrubada do mastro ornado com dezenas e dezenas de folhagens e frutas.

O padre responsável pela recepção dos quilombolas na igreja de Fátima no dia da missa foi o Padre Helton Luiz Wachholz de Souza. A cerimonialista informou à comunidade presente que a imagem de São Benedito fora trazida pelos quilombolas especialmente para a missa festiva. O sermão proferido pelo pároco ressaltou a importância de São Benedito como um Santo Poderoso. Além disso, afirmou, ainda, que no bairro Praça 14 está localizada uma comunidade quilombola urbana. Aliás, a respeito deste Santo Padroeiro, narrativas informam que Benedito era filho de negros Etíopes, mas que nasceu na Itália, e certamente teria enfrentado o preconceito racial. Vale destacar que ao término da procissão acompanhada de uma banda musical, a liturgia da última novena realizada em 2024 foi conduzida pelos próprios quilombolas.

Nessa experiência vivenciada junto aos agentes sociais, é possível compreender que uma de suas constantes preocupações é com a construção da capela para abrigar a imagem de São Benedito, pois a imagem fica sob a responsabilidade de um guardião, que, em virtude do seu falecimento, hoje é guardada na sala da casa de uma das famílias quilombolas que mora em frente à residência da Sra. Jamily Souza da Silva.

O término do evento religioso é chamado “arranca-toco” – que integra o cerimonial simbólico de encerramento da festa –, momento em que o mastro é retirado do solo, destruído, e ao final acontece a última novena, rezada em uma única noite. Desta feita, o ritual que inicia no Sábado de Aleluia durante o período da Páscoa, tem o seu encerramento realizado no dia 31 de maio, na residência onde está o altar com a imagem de São Benedito.

Observei que a liturgia da novena, como é tradição no encerramento do ciclo dos festejos, incluiu os cânticos e rezas em português e latim. Naquele momento, lembrou-se da data do nascimento da Sra. Maria de Lourdes Fonseca, “tia Lourdinha” e do falecimento da Dona Jacimar Souza. Na oportunidade, a coordenadora da festa fez pedidos de orações em prol da saúde de pessoas doentes da comunidade, assim como relatou sobre curas e graças recebidas por devotos de São Benedito. Ao final do ato religioso, serviu-se um lanche aos presentes na novena.

Abaixo, expusemos as letras de quatro cânticos religiosos utilizados anualmente no novenário de São Benedito pelos quilombolas da Comunidade do Barranco em Manaus. Fato a respeito da qual se torna curioso perceber como a religiosidade popular é capaz de mesclar seus cânticos, a exemplo das tradições de seus ritos, cujos hinos são entoados em latim57 pelos próprios participantes do evento, conforme se vê a seguir.

Ladainha de Nossa Senhora

Kyrie, eleison.
Christe, eleison.
Kyrie, eleison.
Christe, audi nos.
Christe, exaudi nos.
Pater de caelis Deus, miserere nobis.
Fili. Redemptor mundi, Deus, miserere nobis
Spiritus Sancte Deus, miserere nobis
Sancta Trinitas, unus Deus, miserere nobis
Sancta Maria, ora pro nobis
Sancta Dei Genitrix, ora pro nobis.
Sancta Virgo virginum, ora pro nobis
Mater Christi, ora pro nobis
Mater divinae gratiae, ora pro nobis
Mater purissima, ora pro nobis
Mater castissima, ora pro nobis Mater inviolata, ora pro nobis
Mater intemerata, ora pro nobis,
Mater amabilis, ora pro nobis
Mater admirabilis, ora pro nobis
Mater boni consilii, ora pro nobis, Mater Creatoris, ora pro nobis
Mater Salvatoris, ora pro nobis.
Virgo prudentissima, ora pro nobis
Virgo veneranda, ora pro nobis
Virgo praedicanda, ora pro nobis
Virgo potens, ora pro nobis.
Virgo Clemens, ora pro nobis Virgo fidelis, ora pro nobis
Speculum justitiae, ora pro nobis
Sedes sapientiae, ora pro nobis.
Causa nostrae laetitiae, ora pro nobis
Vas spirituale, ora pro nobis Vas honorabile, ora pro nobis,
Vas insigne devotionis, ora pro nobis.
Rosa mystica, ora pro nobis Turris Davidica, ora pro nobis,
Turris eburnea, ora pro nobis
Domus aurea, ora pro nobis,
Foederis arca, ora pro nobis
Janua, caeli, ora pro nobis,
Stella matutina, ora pro nobis
Salus infirmorum, ora pro nobis
Refugium peccatorum, ora pro nobis.
Consolatrix afflictorum, ora pro nobis
Auxilium christianorum, ora pro nobis Regina angelorum, ora pro nobis
Regina patriarcharum, ora pro nobis
Regina in caelum assumpta, ora pro nobis
Regina sacratissimi Rosarii, ora pro nobis
Regina pacis, ora pro nobis

Agnus Dei
Agnus Dei, qui tollis peccáta mundi,
parce nobis, Dómine.
Agnus Dei, qui tollis peccáta mundi,
exáudi nos, Dómine.
Agnus Dei, qui tollis peccáta mundi,
miserére nobis.

Canto Número Cinco
Sobtm erum presidium conforgenum
Sancta Dei Genitrix (bis)
Nos praedi per passione
Saem nesse, saem necessidade vos
Sejae periculum
Es contigo em ver a nós
Sempre a virgem
Glorioso São Benedito,
Amém.

Oração
V. Ora pro nobis, Sancta Dei Genitrix
Concede nos fâmulos tuos, quaesmus
Domine Deus, perpetua mentis et corporis
Sanitate gaudere et gloriosa beatae Mariae
Semper Virginis intercessione a praesenti
Liberari tristitia et aeterna perfrui laetitia.
Per Christitum Dominum nostrum
R. Amem.

Os cânticos em latim são invocados pelos devotos nas noites das novenas, há uma participação coletiva de idosos, adultos e crianças, os quais recitam as ladainhas repetidas pelo coro e no refrão, estruturadas como formas de louvores e oração, notadamente no culto católico celebrado pela comunidade.

As reflexões decorrentes a partir dessas experiências relatadas no trabalho de campo, desenvolvido nas comunidades étnicas urbanas e rurais, no caso concreto do quilombo do Barranco de São Benedito e Sagrado Coração de Jesus do Lago do Serpa. Cientificamente observa-se no viés antropológico as vivências da religiosidade popular. Trata-se de representações sociais, cujos significados estão intrinsicamente objetivados nos cultos aos santos padroeiros, como se observa nas procissões, rezas, rituais, promessas e festividades organizadas pelos quilombolas.

Ao perpassar por este caminho, nos debruçamos sobre questões que nos permitam compreender um conceito do início do século XX chamado de religião vivida (lived religion) (Ammerman, 2007; 2014). O conceito vem do campo da Sociologia da Religião e subsidia os debates, análises ou estudos dos fenômenos religiosos nas suas interações com a cotidianidade da vida cultural, praticados para além do controle administrativo da religião institucional. Portanto, fora daquelas normas dogmáticas da igreja oficial.

Nesta direção, sublinhamos a respeito dos rituais de afirmação e resistência protagonizados secularmente na comunidade do Barranco em Manaus, e Sagrado Coração de Jesus do Lago do Serpa, em Itacoatiara/AM. Nos dois casos pesquisados, a realização de tais atividades está sob a responsabilidade coletiva dos leigos, ou seja, daqueles agentes sociais pertencentes aos quilombos, via de regra, mobilizados através de seus segmentos político-organizativos.

Outro fator intrínseco a essas formas organizativas, diz respeito aos laços familiares, visto se tratar de um quilombo que tem como marca inconteste do aspecto étnico, a formação e afirmação dos quilombos como sendo um território de parentesco, conforme abaixo se verifica na composição genealógica da Família Fonseca.

________________________________

56Trecho do hino religioso Bendito de São Benedito.

57 As letras dos hinos foram extraídas do Novenário de São Benedito utilizado para o acompanhamento dos cânticos durante as novenas realizadas no quilombo urbano do Barranco.

Continua na próxima edição…

*Vinícius Alves da Rosa é Quilombola do Morro Alto/RS, mestre, professor e teólogo, tem sua formação acadêmica pautada em uma sólida jornada de conhecimento. Sua expertise é ampliada por especializações em Metodologia do Ensino de Filosofia, em Ciências da Religião. Complementou sua trajetória com um Mestrado pelo Programa de Pós-Graduação e, por fim, obteve seu título de Doutor em Ciências da Religião pela (UMESP).

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