Continuação…
O livro e seu autor
Por volta dos anos 1960 tive contato com um grupo de poetas de Belém do Pará, entre os quais conheci João de Jesus Paes Loureiro, tão jovem, mas já envolvido pela literatura e a política. Na política enfrentou momentos heroicos e, na literatura, assumiu andamentos de alta poesia. Ficamos próximos e logo nos identificamos. Caminhávamos pelas ruas de Belém a bom conversar sobre os temas dos nossos interesses. Estava entre esses interesses a arquitetura da parte mais antiga da cidade de Belém. A noite ainda era nova e à medida que avançava ela se envolvia num manto de silêncio como que se preparasse para dormir. E oferecia os melhores momentos para nossas reflexões sobre as raízes do humanismo clássico, implantado pelos jesuítas na cidade, e as marcas profundas do humanismo caboclo, sedimentado pelas populações nativas da Amazônia, essas que, enfim, são as duas características mais influentes na seara de João de Jesus, hoje arrolada em volumosa configuração poética, páginas de prosa de ficção e de ensaios, ensaios onde se harmonizam a criatividade do escritor com a visão do mestre universitário bem formado, com enorme tributo aos estudos acadêmicos na Região.
O livro é composto de tercetos. Na gramática literária o terceto é parte de um soneto ou de um poema como as pedras de construção da epopeia de Dante. A Divina Comédia é escrita em tercetos. Mas neste livro o terceto aparece como uma forma fixa e autônoma, numa postura original e de difícil realização. Neste livro, o terceto foi convertido pelo poeta numa complexa miniatura e, como tal, de meticulosa fatura poética.
Devo oferecer ao possível leitor desta dobra de capa, uma amostragem dos poemas do livro, que está dividido em 5 partes.
Na parte intitulada Oficina poética o poeta escreve no terceto 5:
O poeta vê na palavra
o que o vidente vê no homem;
Uma forma de destino.
Em O poeta e o passarinho vem no terceto 22:
O poeta semeia sílabas nas páginas.
O passarinho vai bicando uma por uma.
O poema, entre penas, canta e voa.
Em O sentir e o sentido o poeta fala à Violeta, sua esposa, no terceto
Quando escrevo amor no poema
é com as letras de todo o amor que te amo
e tudo o que te amei e que haverei de amar.
Em Antipoemas está no terceto 100:
Uma voz diz: faça-se a luz!
E vem a mão a empurrar a luz
Para os nulos porões da escuridão.
Está em Circunstâncias, no terceto 112:
A violoncelista não toca o violoncelo.
Toca em seu próprio corpo, carne, osso
e nas cordas tendidas de sua alma.
São poemas próprios para um livro comemorativo aos 80 anos do poeta. Versos serenos e profundamente reflexivos, fruto do olhar e do fazer de tantos anos de experiência com as emoções e as palavras. As penas da ave são visíveis quando voa o passarinho, de uma utilidade mecânica e prática; as penas do poeta ninguém vê, mas o leitor sente como se fossem as suas próprias penas. As cordas do violoncelo estão na alma da violoncelista e o corpo de madeira do instrumento repercute na sua carne e nos seus ossos. A emoção do amor não fenece e os amantes da escuridão se dedicam ao trabalho infrutífero de eliminá-lo. Sim, a emoção que é duradoura no amor e não passageira, como a emoção de uma surpresa.
O livro de poesia se encerra com um Post scriptum que afinal é uma poética. O poeta se vê ante o poema com a mesma aflição dos viajantes míticos ante a figura da esfinge da mitologia Greco-egípcia. A esfinge devorava os viajantes que não soubessem decifrar as suas proposições. Mesmo porque o poeta sabe que o ponto final de um poema não é em si o fim do poema. O poeta prossegue a gerar novas sílabas e novos fonemas. Permanece abrindo as janelas da palavra. Negocia até no oferecimento à decapitação de sua alegría, desde que o poema-esfinge replante em mim a primavera.
Mas o livro finalmente se encerra com um longo texto em prosa, entre a memória e o ensaio, com que o poeta oferece um testemunho de sua atividade poética desde Abaetetuba, a cidade do interior do Pará onde nasceu e escreveu os seus primeiros versos. Disserta ainda sobre a ampla viagem que fez pelo mundo do conhecimento e da criação literária, conservando como pista e suporte humano a vida misteriosa da cidade de Belém.
Os apreciadores da boa poesia não perderão seu tempo com a leitura deste livro. Lerão e o guardarão em estante de fácil acesso na biblioteca. É um livro para ler de vez em quando.
Continua na próxima edição…
*Poeta e ensaísta, natural de Itacoatiara. Membro da União Brasileira de Escritores do Amazonas (UBE-Am), da Academia Amazonense de Letras e do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas.
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