
*Gisele Vitória
O senador Antônio Anastasia (PSDB-MG quase esqueceu do seu aniversário, no dia 9 de maio. Na data em que completava 55 anos, não houve tempo para bolos nem parabéns ao relator da comissão especial do impeachment no Senado. Seu relatório em defesa da continuidade do processo de afastamento da presidente Dilma Rousseff era lido em plenário. Já tinha sido aprovado e seria votado dois dias depois. Desde que foi eleito relator, em 26 de abril, Anastasia mergulhou numa espécie de concentração, como um jogador antes da partida. Seu refúgio era só nas idas a Belo Horizonte, e diante da TV, assistindo a filmes. Nesses quase quatro meses, viu “Labirinto de Mentiras”, sobre nazismo, “Confirmação”, o turbulento processo que levou à confirmação do juiz Clarence Thomas como membro da Suprema Corte dos Estados Unidos em 1991, o suspense “Rua Cloverfield 10” e “Até o Fim”, sobre o presidente americano Lyndon Johnson. “Quando vejo um bom filme, consigo abstrair. Com estresse muito grande, você tem que ter momentos seus para reenergizar”, diz o senador. A poucos dias do julgamento do impeachment da presidente Dilma Rousseff, ele falou à ISTO É.
Qual foi o momento mais tenso em quatro meses de relatoria?
Foram meses de muita tensão e dedicação exclusiva. O trabalho foi de muita responsabilidade e verdadeiramente exaustivo. Felizmente durmo bem. Era extenuante fisicamente. Acompanhava as reuniões da comissão que duravam 10, 12, 14 horas, não podendo me afastar especialmente pelos depoimentos.
Qual foi a maior responsabilidade de produzir um documento que trata de tirar uma presidente da República do cargo para o qual foi eleita?
A responsabilidade é imensa. A maior delas era fazer um exame profundo dos documentos e alegações, e apresentar a demonstração que de fato teria ocorrido. Já exerci funções complexas como governador do Estado, mas esse processo, pela sua dimensão política, envolve uma responsabilidade profunda.
Qual foi a principal função do relatório nesse processo que é político?
O meu relatório foi fundamentalmente técnico em processo jurídico político. Não há invenção de crime de responsabilidade. Ele foi colocado na nossa Constituição vindo do Direito inglês e norte-americano para garantir o equilíbrio entre poderes, para não permitir que, num regime presidencialista, o presidente haja sem controle. Claro que há no relatório considerações sobre a questão econômica e política. Mas 90% foi na análise objetiva dos fatos para que o juízo político fosse feito pelos senadores.
Como explicar com clareza o crime que a presidente cometeu?
Me debrucei a exaustão no processo para reconhecer a existência do crime de responsabilidade, e para mim o crime é muito notório e visível. A denominação que está na Constituição sobre crime de responsabilidade não é boa. Quando se fala em crime, o que as pessoas comuns pensam na mesma hora? Crime na ordem penal. Crime de responsabilidade não é isso. É muito mais uma infração político constitucional contra aordem pública e os ditames constitucionais. Tanto que a sanção não é penal, mas a perda do cargo. São esferas distintas.
A palavra criminosa é adequada para Dilma?
A palavra não é adequada. Esse termo se refere à esfera penal. Na jurisprudência avassaladora do Supremo Tribunal Federal, não há aspecto penal do impeachment. É jurídico e político.
Isso tira a gravidade do ato?
Não tira. A gravidade é muito grande mas em outra esfera. Na esfera política e constitucional. Foi um desrespeito à Constituição. A Constituição, no artigo 85, arrola hipóteses dos crimes de responsabilidade, que são atentados contra a Constituição. No momento que o chefe do Poder Executivo federal, que é a pessoa mais importante do País, atenta contra a Constituição, ela está ferindo a responsabilidade do seu cargo. Um dos artigos fala sobre atentar contra a lei orçamentária, onde se entende todo o sistema orçamentário brasileiro.
Qual é o crime das pedaladas?
Comprovamos relatório que foi uma ação coordenada. O Banco do Brasil tinha que ser supervisionado pelo Banco Central. Não foi. Viram o fato e fecharam os olhos. A mesma coisa para a comissão de valores mobiliários. Era evidente que houve ali uma espécie de conluio entre esses órgãos públicos para que essas pedaladas ocorressem. O que aconteceu durante esses anos? A coisa é feita de maneira disfarçada, maquiada, escondida. Foram bilhões de reais não pagos aos bancos. E o governo começou a adiar e a protelar esses pagamentos. O banco estava, na verdade, financiando o governo por meses e passou a ter prejuízo. Houve crime para que essas operações de crédito ocorressem. Houve crime no adiamento do pagamento. Houve crime nos decretos que desrespeitam o Poder Legislativo. Ela desrespeitou a ordem constitucional. Houve uma quebra de confiança no mandato que ela recebeu. Então a pena é a saída do cargo. O crime de responsabilidade, pela sua natureza grave, não tem grau. É sanção única.
O senhor discursou que o cidadão paga pela irresponsabilidade fiscal da presidente. Como o cidadão foi lesado?
Tanto essas pedaladas quanto a edição de decretos levaram a um quadro de instabilidade orçamentária e fiscal. Nas pedaladas em especial, foram bilhões de reais não pagos aos bancos. Aumentou a despesa do Poder Executivo. Ocorreu queda da receita. Tivemos queda do PIB. Aumento da emissão de títulos. Temos a consequência desse desarranjo financeiro e econômico: inflação, queda de credibilidade, perda do grau de investimentos. Isso reflete no dia-a-dia das pessoas. O preço dos alimentos. Empregos perdidos. Serviços públicos depauperados. O cidadão, em última análise, paga o preço do crime de responsabilidade fiscal.
Como diferenciar um governo que administra mal de um governo que comete crime de responsabilidade?
Uma coisa é a má administração. Outra é a má administração somada à ocorrência de crimes de responsabilidade.
Na defesa de Dilma, o crime não ocorreu e a punição é desproporcional.
Nós comprovamos de maneira cabal, pelo menos a meu juízo, tanto um quanto o outro. No argumento da defesa, ela não é responsável. Não é autora. Mas nós provamos nos dois casos a responsabilidade dela. Todo nexo causal, toda a cadeia de comando é dela. Rebatemos os argumentos da defesa num relatório denso e longo, com base nas provas. É natural que a defesa na sua função tente desmontar. Mas o meu relatório foi endossado por outros 58 senadores favoráveis à tese de que os crimes aconteceram.
Como o senhor vê o trauma de um segundo impeachment em 25 anos?
Isso talvez demonstre que precisamos voltar a discutir no Brasil a questão dos regimes presidencialista e parlamentarista. Sou favorável ao regime parlamentar. A mudança de governo se dá em outro ambiente. E mesmo no parlamentarismo a ocorrência de crime de responsabilidade pelo chefe do Executivo também leva ao afastamento do presidente. O crime de responsabilidade, a infração política e constitucional, o atentado à Constituição, quando cometido pelo chefe do Executivo é um ato de extrema gravidade. Lamentavelmente, no Brasil, em 25 anos, ocorreu duas vezes.
E o futuro com o governo Temer?
Sou cauteloso em tentar a posição dos meus pares. Cada senador é um juiz. E ele tem livre convicção para se convencer se o crime ocorreu ou não. Especialmente agora no julgamento. Até pela função de relator me afastei das reuniões da bancada do PSDB relativas ao governo Temer. Eu me abstive completamente. É natural que, numa mudança de governo, existam novas expectativas. Mas é uma situação ainda provisória.
Como o senhor vê o PT hoje?
Há um descrédito em relação a partidos. O PT paga o preço por tudo o que acompanhamos. Os outros partidos também. O quadro não é bom para a política. Mas sem os partidos políticos não saímos do buraco. Isso deve estar claro para não imaginarmos um salvador da pátria fora do quadro político e partidário, que é grave. Defendo que até 2018 haja uma grande reformulação partidária. A crise política tem que ser resolvida pelos políticos.
* Jornalista. Entrevista com o senador Antônio Anastasia (PSDB-MG), relator da Comissão Especial do Impeachment no Senado Federal. Texto na Revista “Isto é”, de 17/08/2016.
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