Manaus, 19 de junho de 2025

O desafio das prisões

Compartilhe nas redes:

RobertoPompeudeToledo
*Roberto Pompeu de Toledo

Santos Dumont, como Thiago Braz, triunfou graças aos meios oferecidos no exterior.

“Da união dos filhos desta terra nasce a ‘Família do Norte’, que tem como objetivo buscar a paz, a justiça e a liberdade para todos os que sonham com a igualdade entre os homens.” Assim, com um “Estatuto” que em sua primeira linha afirmava nobres ideais, à semelhança dos documentos fundadores das nações, veio ao mundo a organização que na semana passada, com a tragédia do presídio de Manaus, irrompeu no cenário nacional e internacional ostentando, como característica central, a volúpia por cortar cabeças. Nomes ternos, como “Família do Norte”, não são incomuns em organizações criminosas. No Rio de Janeiro há os Amigos dos Amigos. Também não é estranha aos hábitos nacionais a degola do inimigo. O Exército, não um grupelho qualquer, praticou-a na Guerra de Canudos, no século XIX, e no combate à guerrilha comunista do Araguaia, nos anos 1970. Menos comum é a existência de um estatuto escrito, e até bem escrito, a reger os passos da organização criminosa.

Uma radiografia da Família do Norte foi realizada pela Policia Federal na operação La Muralla, realizada entre maio de 2014 e janeiro de 2016. Tudo o que explodiu na semana passada já está no relatório da operação: a rixa com o paulista Primeiro Comando da Capital, o domínio dos presídios amazonenses, o gosto por cortar a cabeça. O Estatuto, depois das doces palavras iniciais, impõe aos membros da Família regras rígidas e estrita obediência à hierarquia. O relatório da PF também descreve o crescimento da organização e o paralelo crescimento da jactância de seus chefes. O maior deles, José Roberto Fernandes Barbosa, vulgo “2”, “Doido”, “Pertubado” (sic), “Pertuba” ou “Messi”, diz a certa altura, numa das muitas mensagens interceptadas, em português bem menos culto que o do Estatuto: “Nós samos (sic) o crime do estado do Amazonas”. E em outra: “Aqui nós samos (sic) 200000 integrantes e tudo organizado”.

Tudo ia bem para a Família do Norte. Segundo a Polícia Federal, jâ seria a terceira organização do gênero, atrás apenas do carioca Comando Vermelho e do paulista PCC. Depois de garantir seu domínio sobre Manaus, deu um salto de qualidade ao apropriar-se da “rota do Solimões”, a extensa via fluvial que, com início em entrepostos abastecedores nas fronteiras com o Peru e a Colômbia, vinha até Manaus e além. Se os negócios caminhavam tão bem, por que o levante da semana passada? Por que atrair a atenção de todo o Brasil e até de outros países? A citada jactância pode ter tido seu papel. Mas pode ter sido determinante também um fator que costumava ser lembrado pelo delegado Hélio Luz, ex-chefe de polícia do Rio de Janeiro: o de que tais organizações são no fundo toscas, incapazes de agir com racionalidade. O levante do presídio foi um tiro no pé. Ofereceu de bandeja ao Estado brasileiro oportunidade de cair em cima da Família e desbaratar-lhe a organização, dentro e fora das prisões. Pena que isso não vai ocorrer, e o leitor sabe por quê? Claro que sabe: porque o Estado brasileiro também é tosco.

É tão tosco que, diante do problema das prisões, entra crise e sai crise, a resposta-padrão, seja dos governos estaduais, seja do federal, é a promessa de construir novas prisões. Foi o que fez na semana passada o ministro da Justiça. Não que sejam inúteis novas prisões, é que a resposta é a mais fácil. A presidente do STF, Cármen Lúcia, toca mais fundo no problema ao tentar articular com o IBGE um censo que investigue a real situação dos mais de 600000 presos no Brasil. Grande parte, segundo estimativas sempre precárias – algumas chegam aos 50% -, se constituiria de presos sem julgamento. Também há os que já cumpriram a pena. O censo, somado a mutirões judiciários para apressar julgamentos e soltar quem deve ser solto, pode resultar em considerável abatimento da população carcerária. Se por uma vez o Estado brasileiro não fosse tão tosco, em seguida a essas medidas o investimento maciço, para o qual se mobilizariam recursos em dinheiro e em cérebros, seria em estratégias de ressocialização.

*Jornalista. Articulista da Revista Veja. Texto na edição 2512, de 11/01/2017.

Views: 16

Compartilhe nas redes:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

COLUNISTAS

COLABORADORES

Abrahim Baze

Alírio Marques