*Robson Bonin
De um dia para o outro, as exportações caíram 99,9%.
A indústria brasileira da carne venceu, nó ano passado, uma barreira notável. Depois de anos e anos de negociações, conquistou a sonhada autorização para vender produtos nos Estados Unidos. Foi um longo percurso. As conversas tiveram início no longínquo ano de 1999, passando por quatro governos, além de muito suor de negociadores do setor privado. O selo de qualidade, reconhecido pelos técnicos mericanos, contribuiu para que, na sequência, o Japão também se abrisse para a carne brasileira. Agora, porém, com os desdobramentos da Operação Carne Fraca, todo esse trabalho ficou ameaçado. Os japoneses barraram temporariamente a importação de produtos procedentes dos 21 frigoríficos investigados pela Polícia Federal, enquanto os americanos decidiram apertar a fiscalização.
O impacto maior, contudo, veio da China (incluindo Hong Kong), que decidiu suspender totalmente as importações de carne do Brasil. O país asiático começou a importar carne bovina brasileira apenas em 2015, também depois de um esforço de anos, e rapidamente subiu ao posto de maior destino das exportações nacionais. No ano passado, os chineses consumiram 3,5 bilhões de dólares de cortes bovinos, suínos e de frango. Na mesma linha, outros grandes importadores, entre eles o México e o Chile, decidiram barrar completamente as compras de produtos originários do Brasil. A União Europeia, o maior freguês dos frigoríficos nacionais depois da China, cobrou explicações e enviará um emissário para averiguar as empresas fornecedoras. Os europeus, ao menos por enquanto, mantiveram as importações, barrando apenas as unidades investigadas pela Carne Fraca.
“Estamos sofrendo uma pancada, um soco no estômago”, resumiu o ministro da Agricultura, Blairo Maggi, durante sessão do Senado na semana passada. “É um choque muito grande, que esse setor não merecia sofrer agora.” Se o golpe foi merecido ou não, só se saberá no curso de investigações que dispensem espetáculos e exageros (veja reportagem na pág. 42). A pancada financeira, porém, já ficou evidente nos números do comércio exterior. Nos primeiros meses do ano, a média diária de exportações de carne passava de robustos 60 milhões de dólares. Na terça-feira 21, os negócios totalizaram raquíticos 74000 dólares – queda, de um dia para o outro, de 99,9%.
Ainda é difícil saber quanto o Brasil perderá em decorrência da crise da carne, e o impacto vai depender da duração do embargo dos maiores importadores. Em uma projeção inicial, Maggi avaliou que poderá haver uma queda ao redor de 10% nas vendas externas esperadas para este ano, o equivalente a 1,5 bilhão de dólares. “O noticiário surtirá efeito sobre os acordos que estão em negociação”, diz o consultor Welber Barral, ex-secretário de Comércio Exterior. “O Brasil estava negociando com a Corei a do Sul a abertura total de mercado para carnes, e provavelmente as conversas ficarão paradas ou haverá mudança nas exigências. ”
Evidentemente, o fechamento das porteiras para os produtos brasileiros cria um impacto direto na economia nacional. Frigoríficos fechados pelas autoridades começaram a dispensar funcionários. Nas granjas, frangos e perus esperam para ser abatidos, o que representa um custo adicional para os criadores. Com a paralisação de parte dos negócios no exterior, a JBS, a maior processadora de carnes do país, anunciou a suspensão por três dias das atividades em 33 de suas 36 unidades. O preço do boi caiu, com prejuízos para pecuaristas. É uma reação em cadeia que, se não for contida, terá consequências sobre todo o desempenho da economia brasileira.
Reverter a crise exigirá muito trabalho diplomático, e é nisso que o governo tem se empenhado desde a sexta-feira 17, quando a PF deflagrou a ação. Até então mobilizado para acompanhar a discussão em tomo da reforma da Previdência, O núcleo cibernético do Palácio do Planalto, responsável por monitorar redes sociais, percebeu logo que as revelações da Carne Fraca começavam a varrer a internet no Brasil e no exterior com a força de um vulcão em erupção. Uma profusão de postagens satirizando o frango com papelão e a carne podre fez desaparecer das redes qualquer debate sobre reforma da Previdência. “Foi um tsunami. Fomos obrigados a agir rápido”, disse a VEJA um dos auxiliares de Temer. E não havia papelão nem produtos cancerígenos (confira mitos e verdades da operação na pág. 52). No dia da operação, pouco antes das 10 da manhã, o presidente foi alertado sobre o desastre em curso e acionou o ministro da Agricultura para que ele desse as primeiras respostas oficiais do governo à ação policial. Maggi determinou o afastamento de todos os servidores citados nos crimes investiga dos pela PF. Depois, montou uma força tarefa no ministério para revisar os procedimentos da pasta e identificar quais setores do sistema de vigilância haviam sido corrompidos.
O clima era de caos. Vários grupos de WhatsApp foram criados para receber informações e distribuir orientações a outros integrantes do governo. No dia seguinte ao escândalo, depois de analisarem o material colhido pela Polícia Federal, os técnicos do ministério passaram a Maggi uma assombrosa conclusão das investigações. Em um universo de quase 5 000 frigoríficos, as investigações apontavam para casos isolados de corrupção envolvendo apenas 21 unidades processadoras. O estrago já estava feito. Para conter os danos, Maggi propôs a Temer uma reunião emergencial no domingo. Por volta das 14 horas, Temer recebeu Maggi, acompanhado do ministro da Secretária-geral da Presidência, Moreira Franco, e do ministro Marcos Pereira, da Indústria e Comércio. O presidente já havia sido informado da ausência de provas que justificassem o pânico disseminado em torno da qualidade da carne. Por ordem de Temer, também o diretor-geral da Polícia Federal, Leandro Daiello, foi chamado para a reunião.
Com os dois polos sensíveis da crise na mesma mesa, seguiu-se um intenso debate. Maggi cobrou explicações do diretor da PF para o fato de os investigadores não terem recorrido ao corpo técnico do ministério antes de alardear ao mundo que a carne brasileira era podre ou cheia de papelão. Daiello reagiu dizendo que a PF não poderia pedir ajuda porque investigava justamente a pasta de Maggi. Percebendo o clima, Temer interrompeu o debate com o seu habitual tom pacificador: “A partir de agora vamos trabalhar juntos para resolver essa crise”, disse. O presidente questionou Daiello se haveria provas para condenar a carne brasileira. O diretor argumentou que a policia tinha muitas horas de grampos para analisar, mas reconheceu que as provas tratavam de propinas, não da qualidade da carne. Era, portanto, um caso de corrupção, não de saúde pública (veja a entrevista com o empresário Junior Durski sobre as propinas pagas em picanha, na pág. 56).
Para amenizar o estrago, o próprio Daiello assinou uma exótica nota oficial em conjunto com o Ministério da Agricultura atestando a qualidade da carne – como se a PF fosse autoridade no assunto. Maggi sairia a campo em uma ofensiva midiática, dando entrevistas a jornalistas dos Estados Unidos, do Oriente Médio e da Europa. Na terça, depois de prestar esclarecimentos na Comissão de Assuntos Econômicos, o ministro reuniu jornalistas da TV estatal da China em uma sala do Senado para dar uma entrevista exclusiva a dois dos principais veículos chineses. “Escolham qualquer frigorífico para visitar amanhã (quinta-feira), que eu levarei vocês. Faremos uma visita-surpresa para que vocês vejam pessoalmente como os processos são seguros e a carne é de qualidade”, disse Maggi aos chineses, que concordaram em fazer a blitz-surpresa em frigoríficos de Mato Grosso do Sul. Por orientação do ministro, Temer telefonaria para o presidente chinês, Xi Jínping. Até o fechamento desta edição, os chineses mantinham o embargo. “Coleto o preço da arroba do boi há quase trinta anos e nunca vi nenhum episódio como este – nem nos casos de vaca louca”, afirma o pesquisador Sérgio de Zen, do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), da Universidade de São Paulo. “O mercado está travado. O caso é grave, porque envolve saúde, mas houve desinformação sobre a dimensão das irregularidades. ”
Nas exportações brasileiras, as carnes ocupam a terceira posição, atrás do minério de ferro e da soja. A maior parte das unidades de processamento é moderna e adequada às exigências sanitárias internacionais, passando por vistoria constante de emissários dos países importadores. Mas, apesar do avanço tecnológico do setor, continua a haver promiscuidade entre fiscais públicos e empresas produtoras, como ficou evidente no material colhido pelos investigadores (e muitas revelações ainda poderão aparecer). Esse aspecto poderá ser explorado pelos concorrentes dos brasileiros nos mercados globais. Nessa disputa, o país só será competitivo e produtivo da porteira para fora se souber também desmontar os históricos sistemas de corrupção que sugam nossas riquezas por aqui. Com erros de todos os lados, a Operação Carne Fraca acabou se transformando em mais um exemplo de como a banalização da propina sempre jogará contra o Brasil.
*Jornalista. Em parceria com Bianca Alvarenga e Geovanni Magliano. Texto na Revista Veja, edição nº 2523, de 29/03/2017.
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