
*Mario Ypiranga Monteiro
Continuação …
A Capitania de São José do Rio Negro
Nasceu do tratado amistoso ratificado em Madrid, a necessidade de plantar-se as colunas balizadoras entre os respectivos senhorios. Vimos já como as “partidas” nomeadas eram chefiadas pelo capitão-general Francisco Xavier de Mendonça Furtado, representando como ministro plenipotenciário a coroa lusa, e Dom José de Iturriaga, pela espanhola. Esta última, entretanto, não se apresentou no arraial. Qual o motivo? E possível que de ordem acidental, pois das instruções a Mendonça Furtado consta que ele deveria sair ao encontro da comissão espanhola, depois que ela saísse de Cádiz. Mas até o ano de 1760 estiveram ausentes os emissários castelhanos, não se dando início aos trabalhos. Acreditamos e com fundamentos, que a procrastinação se esteasse em objetivos mais sérios, de ordem política. A ambição da Espanha era por essa época notória, no que responde à parte das vertentes da bacia amazônica e de todo o vale promissor, bem como no sul. Questiunculas eram alimentadas a vermelho, em outras regiões do Brasil em que os ibéricos se defrontaram numa concorrência política especiosa. Não é de duvidar, portanto, que a “partida” espanhola se atrasasse de indústria, com o fim de preparar o terreno para os futuros acontecimentos. Enquanto isso, a comissão portuguesa, composta de luzidos elementos nacionais e estrangeiros, sediava-se em Barcelos, a qual passou a chamar-se a Corte do Rio Negro, tal a faustosa vida que levavam os representantes portugueses e tal o esplendor que a possuía nesse interregno,6 embora depois. esses mesmos representantes se envergonhassem diante da magnificência e do aparato bélico das comissões espanholas de limites. Arthur Reis, no segundo tomo de sua preciosa coleção Limites e Demarcações na Amazônia Brasileira, apresenta-nos as duas plantas da antiga aldeia de Mariuá, convertida pelo gênio vigoroso de Mendonça Furtado, em vila,7 Vila Nova de Barcelos, como firmava nos documentos.
O Tratado de Madrid, assinado a 13 de janeiro de 1750, entre Dom Tomaz da Silva Teles, por Portugal, e Dom José de Carvajal e Lancaste, pela Espanha, abolia as questiúnculas até ali surgidas entre as duas poderosas nações. De uma carta de Marcos António a Dom Tomaz da Silva Teles, ficou esclarecido que
conservaria o que tivesse ocupado, exceto onde desse forçosa razão para o contrário, porque neste caso se atenderia à regra quod tibi non nocet; e em segundo lugar que se procurasse constituir a raia pelas balas mais conspicuase notáveis dos montes ou raios grandes, se não reparar em algumas léguas de terras, desertos, onde sobrarão tantas e cada uma das coroas que não poderia povoar em muitos séculos.8
Ora, os limites estabeleciam que passava a pertencer
à Coroa de Portugal tudo o que tem ocupado pelo rio das Amazonas, ou Maranhão acima e o terreno de ambas as margens dêste rio até ás paragens, que abaixo se dirão; como também tudo o que tem ocupa- do no distrito de Mato Grosso, e dêle para a parte do Oriente, e Brasil, sem embargo de qualquer penetração que possa alegar-se por parte da Coroa de Espanha, com o motivo do que se determinou no referido Tratado de Tordesilhas; a cujo efeito S. M. C. em seu nome, e de seus Herdeiros e Sucessores, desiste e renuncia formalmente a qualquer direito e ação, que em virtude do dito Tratado ou por outro qualquer título possa ter aos referidos Territórios.9
De acordo com estes postulados, a fronteira amazônica ficava assim definida em termos:
Desde a boca do Jauru pela parte ocidental prosseguirá a Fronteira em linha reta até à margem Austral do rio Guaporé defronte da boca do rio Sararé, que entra no dito Guaporé pela sua margem Septentrional; com declaração que se os Comissários, que se vão de despachar para o regulamento dos Confins nesta parte da face do País acharem entre os rios Jauru e Guaporé outros rios, ou balizas naturais, por onde mais comodamente, e com maior certeza se possa assinalar a Raia naquela paragem, salvando sempre a navegação do Jauru, que deve ser privativa dos Portugueses, e o caminho, que eles costumam fazer do Cuiabá para Mato Grosso; os dois Altos Contraentes consentem e aprovam que assim se estabeleça, sem atender a alguma porção mais ou menos no terreno, que possa ficar a uma ou a outra parte. Desde o lugar, que na margem austral do Guaporé for assinalado para termo da Raia, como fica explicado, baixara a Fronteira por todo o curso de ne Guaporé até mais abaixo da sua união com o rio Mamoré, que nasce na Provincia de Santa Cruz de la Sierra, atravessa a missão dos Maxos, e formam juntos o rio chamado da Madeira, que entra no das Amazonas ou Maranon, pela sua margem austral.
Baixará pelo álveo destes rios, já unidos, até a paragem situada em igual distância de dito rio das Amazonas, ou Manaus, e da boca do dito Mamoré; e desde aquela paragem continuará por uma linha Leste Oeste até encontrar com a margem Oriental do Javari que entra no rio das Amazonas pela sua margem austral; e baixando pelo alveo de Javari até onde desemboca no rio das Amazonas ou Maranon prosseguirá por este rio abaixo até a boca mais Ocidental do Japurá, que desagua nele pela margem setentrional
Continuará a Fronteira pelo meio do rio Japurá, e pelos mais rios que a ele se ajuntam, e que mais se chegam ao rumo do Norte até encontrar o alto da Cordilheira de Montes, que medeiam entre o Orinoco e o das Amazonas ou Maranon; e prosseguirá pelo cume destes Montes para o Orinoco, até onde se estender o Domínio de uma e outra Monarquia. As pessoas nomeadas por ambas as Coroas para estabelecer os limites, conforme o prevenido no presente artigo, terão particular cuidado de assinalar a Fronteira nesta parte, subindo pelo álveo da boca mais Ocidental do Japurá: de sorte que deixam cubertos os estabelecimentos, que atualmente tiveram os portugueses nas margens deste rio e do Negro, como também a comunicação ou canal, de que se servem entre estes dois rios; e que se não de lugar a que os espanhóis com o pretexto, ou interpretação alguma, possam introduzir- se neles, nem na dita comunicação; nem os portugueses subir para o rio Orinoco, nem estender-se para as Províncias povoadas por Espanha, nem para os despovoados, que lhe hão de pertencer, conforme os presentes artigos; para o qual efeito assinalarão os Limites pelas Lagoas e Rios, endireitando a linha da Raia, quando puder ser, para a parte do Norte, em reparar no pouco mais ou menos que fique a uma ou a outra Coroa com tanto que se logrem os fins expressados
Ora, os espanhóis criavam casos, “chicanas” como se dizia nos documentos que impediam no setor do Jauru, Guaporé, Mamoré e Madeira, os trabalhos das demarcações. Isto em 1756, consoante reza a carta do governador da Capitania de Mato Grosso, Dom Rolim de Moura, a Mendonça Furtado.10 O positivo, em toda a universal questão desses atropelos diplomáticos, é a influência decisória que os Jesuítas tiveram nelas. A luta contra eles sustentada, e depois o documentário fartamente exibido à luz, provou, ou pretendeu provar que dificultavam a ação das “partidas”. Nasceu, daí, a cizânia surda mas eloquente, que agitaria as paixões de meio mundo e que sacudiria Pombal contra os missionários Jesuítas, tidos como “inimigos do Estado”.11
Antes, porém, desde 1761, já os espanhóis se vinham agastando, na parte que se refere ao norte, no Rio Negro, contra a letra do tratado de 1750. Disso conclui-se que os espanhóis se arrependeram de haver entregue aos portugueses pacifica ou desabusadamente, as terras do oeste e do norte, embora delas não tivessem título possessório. A correspondência trocada entre Dom José de Iturriaga e o governador capitão-general Manoel Bernardo de Melo e Castro denuncia perfeitamente o interesse manifesto da Espanha em fugir às conciliações. O Rio Negro recebeu por isso mesmo, uma guarnição especial a reforçá-lo contra possíveis razias castelhanas que o ameaçavam de fato, como se vê do mandato de ocupação desta região em 1761, por aquela mesma autoridade, ocupação, aliás, que fracassou.
Não é de estranhar-se, que diante de fatos desta natureza, tão positivos e curiais, o governo português ficasse indiferente, de braços cruzados. Havia necessidade de uma melhor orientação na parte mais longínqua da colônia, daí a criação da Capitania de São José do Rio Negro anexa à do Grão-Pará e Maranhão, com um governo independente. Vemos, da análise dos fatos, que essa necessidade de ordem local foi amplamente satisfeita não só no que toca à velha e longa questão de limites, mas no que entende com a própria evolução da Capitania: o surto de progresso alcançado foi simplesmente eloqüente. Mendonça Furtado é uma bandeira de civismo levantada no sertão amazônico, em torno da qual se agrupam os seus auxiliares, os colonos e os índios, os padres e os soldados empregados todos no trabalho de servir ao rei e a região.12 Aliás, o grande estadista não pôde fugir às hostilidades de que foi alvo13 durante os dois anos em que esteve aguardando a comissão espanhola de limites. Nesse interim, entregou-se a uma operosidade digna de destaque: organizou os serviços de trans- porte, incentivou o desenvolvimento da lavoura e obrigou as construções novas em Mariuá. Basta dizer que esta vila, antes insignificante aldeia, prosperou grandemente, sob a direção técnica do engenheiro Felipe Sturm, que a dividiu em ruas, lançou pontes sobre os igarapés da cidade. Uma grande praça, no centro, foi ocupada pelo edifício reservado de futuro à residência do chefe da comissão demarcadora. Pontes, caiçara14 para tartarugas, pesqueiros, um cais de madeira, um grande armazém para provisões, obras que atestam o feitio da política construtiva do estadista.
A 1.º de janeiro de 1756, durante a ausência do comissário espanhol cuja viagem estava demorando, Mendonça Furtado inaugurou no Rio Madeira a Vila de Borba a nova, ex-aldeia de Torocano,15 criada pela carta régia de 3 de março de 1755.
A sucessão do governo da Capitania por Mello e Póvoas é digna de comentários. Este quase nada fez, senão seguir a política do predecessor, alimentando as mesmas honestas intenções principalmente na parte referente às fronteiras. A ele deve-se contudo o predicamento das vilas de Abacaxis (Serpa), Saracá (Silves), Ega (Tefé), São Paulo de Cambebas (São Paulo de Olivença), antigas aldeias. Transformou em lugares as aldeias de Jaú (Airão), Caboquena (Moreira), Aracari (Carvoeiro), Cumaru (Poiares), Dari (Lamalonga), Coari (Alvelos), Parauari (Nogueira), Caiçara (Alvarães), Taracotéua (Fonte Boa), Enviratéua (Castro de Avelães).16 A mesma maneira de tratar os índios, chamando-os ao convívio da civilização por meio dos casamentos extra-raciais e a boa amizade com os missionários tornou a sua gestão digna de encômios. Infelizmente o seu governo, que durou três anos, foi interrompido com a transferência para o Maranhão. Sucedeu-o o tenente-coronel Gabriel de Sousa Filgueiras, a quem passou a administração a 25 de dezembro de 1760, o qual vinha como encarregado de negociações com os espanhóis na fronteira do Rio Negro,17 tendo sido nomeado a 12 de abril do mesmo ano. Pouco fez: depois de um ano de governo integro, em que projetou alguns melhoramentos, faleceu a 7 de setembro de 1761. Foi enterrado na capela-mor da igreja de Barcelos, em ruínas hoje e ainda não localizada.
A carta régia de 30 de junho de 1760 nomeou para primeiro ouvidor da Capitania de São José do Rio Negro ao bacharel Lourenço Pereira da Costa. Essa nomeação vinha completar o quadro da administração judiciária, pois a 3 de março de 1755 haviam já sido criados dois juízes ordinários com escrivão público, judicial e notas.
Três governos sucessivos teve a Capitania em breve período. Com o falecimento de Gabriel de Sousa Filgueiras, assumiu a direção da Capitania o coronel Nuno da Cunha Ataíde Verona, comandante do destacamento militar de Barcelos. Este passou o governo no dia 24 de dezembro de 1761, ao coronel Valério Correia Botelho de Andrade que havia assumido o comando da guarnição no impedimento do coronel Ataíde Verona. Finalmente, veio como governador o coronel Joaquim Tinoco Valente, nomeado a 8 de julho de 1763, assumindo a 16 de outubro do mesmo ano. Governou dezesseis anos, falecendo em agosto de 1779. Foi sepultado, também, em Barcelos, na igreja, a qual assim guarda os restos mortais de muitos administradores, sem que possamos dizer ao certo onde os ossos repousam.
A administração de Tinoco Valente foi uma das mais duradouras, e por isso mesmo o trabalho desenvolvido no sentido de melhorar as condições econômicas e sociais da Capitania poderia e deveria ser promissor, no entanto que se entremostra obscurecido por certos fatos que abonam a moral daquele go- verno. Sua conduta, a par de certas qualidades pessoais, trouxe sérias controvérsias entre muitos dos cronistas antigos e modernos no que diz respeito ao seu verdadeiro espírito de administrador.18 Desonesto, vilíssimo mesmo, consoante o testemunho dos que o conheceram de perto e com ele privaram, no caso sujeito o ouvidor Ribeiro de Sampaio, entregou-se à rapina e no seu governo sérios acontecimentos abalaram o crédito moral da Capitania.19
Finda com o início da administração de Tinoco Valente, o nosso escorço histórico.20 O desenvolvimento da Capitania de São José do Rio Negro, como se verifica do exposto, é lento, irregular, às vezes sofrendo solução de continuidade para depois apressar-se e parar, estacionar e não raro regredir, dependendo quase que exclusivamente da natureza própria de sua situação e dos habitantes índios, mamelucos e colonos brancos, que das autoridades constituídas. Quando apareceu naquele cenário confuso uma figura como Mendonça Furtado, já muitos anos de inatividades e de prejuízos sociais e econômicos, estes principalmente, pairavam sobre a latitude geográfica e política da região e a Capitania assim progride, arrastada, pelos anos em fora, num progresso que desanima o próprio historiador, que não encontra, por exemplo, nas virtudes morais dos chefes ou na curva ascendente das estatísticas, motivos impressionantes para o relevo dos quadros históricos gerais, das paisagens ecumênicas.
Laus Deo
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5 0 texto do Tratado na integra, vem no segundo tomo da excelente obra de Arthur Reis, Limites e Demar cações. E também exaustivamente na obra opulenta de Alexandre de Gusmão. O Tratado de Madrid. comentado por Jaime Cortezão.
6 Não podemos citar aqui o vasto documentário da época, deixando-o para ocasiões mais oportunas. Vd. Anais da Biblioteca e Arquivo Público do Pará; Arthur Reis, ops. cits.; Joaquim Caetano, op. cit.
7 Da autoria do engenheiro, capitão Felipe Sturm e de Schwebel.
8 Carta in Arthur Reis, Limites e Demarcações, 11, 57.
9 Arthur Reis, op. cit. supra, 58.
10 Para os nossos limites com Mato Grosso, Virgílio Correa Filho. As Raias de Mato Grosso, 1, 11, São Paulo, 1924, 1925, etc. – Manuel Tapajós, Fronteira Sul do Amazonas Questão de Limites, Rio de Janeiro, 1898.
11 João Lúcio de Azevedo, Novas Epanáforas, Lisboa, 1932.
12 Todas as cartas régias, alvarás, etc., expedidos às autoridades da colônia, versavam o assunto da conquista espiritual, em primeiro lugar,
13 Aparentemente essas hostilidades partiam dos missionários nada satisfeitos com a política honesta, posto que violenta, de Mendonça Furtado. As hostilidades contavam-se pelas deserções em massa de índios aldeados, escusa de remarem nas canoas, negativa dos padres em proverem de mantimentos os membros da comissão de limites, daí o dizer-se que os Jesuítas dificultavam a ação diplomática. Em 1753 disso queixava-se Diogo Mendonça, com acrimonia.
14 Curral.
15 Pode ver-se a disposição dos edifícios principais e dos melhoramentos servidos à vila, na planta estampada no segundo volume de Limites e Demarcações na Amazônia Brasileiro, de Arthur Reis.
16 É evidente que a ojeriza manifesta de Mendonça Furtado por tudo quanto dissesse respeito à língua indígena, nascia do seu arraigado patriotismo. A permuta dos topónimos tupis por portugueses, começa com Barcelos, ex-aldeia de Mariuá. Em vários documentos da época, ficou assinalada essa nevrálgica hostilidade. Vd. nosso livro Aspectos Evolutivas da Língua Nacional, onde discutimos a questão da influência do tupi sobre o português, naquela época, à p. 23.
17 A mesma patriótica política de transformação dos topónimos, seguida por Mendonça Furtado. Entre- tanto, nem todos os nomes lusitanos prevaleceram. Serpa voltou a ser Itaquatiara, Ega (Tefé). Alvelos é hoje Coari, e muitos outros lugares ficaram com os primitivos nomes provenientes das fundações das aldeias Jesuíticas, mercedárias, carmelitas, etc.
18 Arthur Reis, História do Amazonas, 111.
19 “Era pobre, avarento e sem instrução; um soldado apenas da fortuna”. “Sua negligência permite a invasão espanhola em 1774”. “Uma única vez sai em inspeção pelos distritos e tanto às carreiras, que seus desafetos, com ironia costumam chamar a essa viajem a correria do governador” – Bertino Miranda, A cidade de Manaus. Sua história e seus motins políticos, 11 passim. Manaus, 1908.
20 Quando Mendonça Furtado pelo bando de 15 de agosto de 1755 proibiu o consumo da aguardente de cana, sob a alegação justa de que esta relaxava o índio, degradando-o, possuía carradas de razões. No governo de Tinoco Valente essa degradação havia atingido o auge, razão por que este lançou outro bando, de 5 de maio de 1768, “impondo a multa de 305000 e seis meses de prisão no fortim de São José da Barra aos que introduzissem a aguardente de cana nas vilas e povoados”. – Arthur Reis, História do Amazonas, 113.
*Mário Ypiranga Monteiro (1909-2004). Amazonense de Manaus, historiador, folclorista, geógrafo, professor jornalista e escritor. Pesquisador do INPA, membro da Academia Amazonense de Letras e do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas. É o autor que mais escreveu livros sobre História do Amazonas, com quase 50 títulos.