
*Mario Ypiranga Monteiro
Continuação…
A Função dos Grupos Humanos
O capitão desta primeira tropa de resgate tomou posse da região, chantou a cruz – a Cruz do Tarumã – e regressou ao Pará, tangendo à frente grosso rebanho humano, distribuído com a insaciável população belenense. No ano de 1658, nova entrada ao sertão das Amazonas.48 Vieira, apud Serafim Leite, diz que
foi esta a primeira vez que o resgate se fez por esta ordem, para que os interesses dele coubessem a todos, e particularmente aos pobres, que sempre, como é costume, eram os melhores lembrados.49
Consequentemente ao avanço das tropas de resgate, algumas missões iam ficando, como rastros perdidos no vasto território mal palmilhado, pondo um marco humano em cada beira de rio, assentando o domínio português contra a expansão castelhana que se fazia por diversos modo. Ainda veremos Manuel Coelho no Solimões, em 1663. Neste mesmo ano Antônio Arnau de Vilela, Francisco de Miranda e Francisco Rodrigues Palheta fundam, coadjuvados pelo mercedário padre Frei Raimundo, a Missão de Saracá, no lago do mesmo nome, à margem esquerda do Rio Amazonas. O tenente Arnau Vilela fez uma entrada ao Rio Urubus, atraído pela verbosidade dos principais das nações Caboquena, Guanevena e Bararuru e cai vítima, juntamente com o alferes Francisco de Miranda, salvando-se da carnificina o padre e um ajudante cujo nome a história não guardou. Para vingá-lo, o capitão Pedro da Costa Favela sobe o Urubus em 1664 e comete a hecatombe que o tornou tristemente célebre: arrasou trezentas malocas, trucidou setecentos índios, escravizando quatrocentos. Antes, no mesmo ano, havia reduzido índios da mesma nação, no Tapajós. Creio vir daí a hostilidade mantida pelos selvagens contra a missão de Saracá, atendendo-se a que o índio jamais perdoa, estendendo a sua vingança àqueles a quem nunca vira e de quem recebera ofensas, mas que, pela fatalidade, vão residir em locais antes visitados. Em 1668 ainda volta o mesmo predador de índios à região, subindo o Rio Negro. É ele o inspirador da construção da Fortaleza da Barra, que originaria a cidade de Manaus. Mais para diante, em 1688, Hilário de Sousa de Azevedo, capitaneando uma expedição de guerra, enfrenta e hostiliza os Aruaqui e Carapitana. São sucessos que estimulavam fortes aventuras guerreiras, como a de João de Morais Lobo e Faustino Mendes, na Mundurucânia50 em 1691. No seguinte, outra vez Hilário de Sousa Azevedo, na Mundurucânia, acomete os Maraguás e Juri. O século seguinte é rico de novas aventuras, de reincidências, de atropelos do gentio. Francisco Soeiro de Vilhena sobe o Tapajós, em 1706. Em 1716 João de Barros Guerra morre no Rio Madeira, combatendo os Torá. Tomaz Teixeira sobe o Amazonas à testa de uma tropa de resgate, em 1722. Neste mesmo ano verifica-se a investida de Aiuricáua, no Rio Negro, contra a tropa de resgate comandada por Manuel Braga, e daí, sem interrupção, os Manau, aliados com outras nações do vale Negro, dificultam de todos os modos a ação dos portugueses, caindo de surpresa sobre reduções, acampamentos, aldeias, tropas de resgate e mesmo escravizando tribos amigas dos lusos. As correrias só cessaram quando o terrível guerreiro caiu vítima da cilada armada, assim mesmo preferindo a morte dentro das águas tumultuosas do rio amado à forca em Belém.
Francisco Xavier de Morais, em 1726, comete façanha memorável, atingindo o Orinoco, pelo Caciquiari, desmoralizando assim o padre Gumilha, que afirmava com ironia não ser possível aquela comunicação. Comandava uma tropa de resgates. Em 1732 Gregório de Morais Rego visita o Solimões, no comando de tropa de resgates, e em 1736 Cristóvão Aires Botelho inflete para o Rio Branco, ao resgate. Naquela mesma região, em 1740, Lourenço Belfort e Francisco Xavier de Andrade, resgatando escravos, descem cerca de mil peças. Francisco Xavier de Morais sobe os rios Negro e Branco, com o mesmo objetivo, em 1744.
Como se vê, é a tropa de resgate que afunda nos manadeiros, à caça de escravos. Ela, por si só, representa o esforço de muitos milhares de pessoas. Não é só adquirindo escravos que realiza a expansão.51 Olha, observa, registra fatos, recolhe confidencialmente informações que transmitirá amanhã para elucidação dos que se sucederam. A par dela estão as aventuras dos sertanistas não escravizadores, os apenas oficialmente designados para a missão de guarda-costas ou exploradores, mas os comandantes dos resgates, esses são os batedores, podemos asseverar. São aqueles que realizam a parte mais difícil do programa: enfrentar as cabildas conquistá-las de qualquer modo para as futuras operações. Ou morrer, preparando com heroísmo o caminho à penetração: Antônio Arnau de Vilela, Francisco de Miranda, João de Barros Guerra, Antônio de Andrade, carmelita. Os padres que acompanhavam as expedições não raro pagavam com o sacrifício da vida o interesse espiritual. Mais tarde nós veremos como se deu isso. Matias Diniz, igualmente carmelita, e muitos outros que engrandeceram as páginas difíceis da história amazonense. Esse, portanto, o papel da tropa de resgates, triste papel, não há dúvida, que se por um lado representa o sacrifício de milhares de vidas, por diversos sugere o espírito de conquista do ádvena e o critério do expansionismo colonial português na Amazónia.
Estudaremos agora, rapidamente, o lado moral da tropa de resgates. Ribeiro de Sampaio declara, como contemporâneo daqueles sucessos:
Estas guerras eram nimiamente destrutivas; ficavam as Aldeias destruídas, passavam-se Nações inteiras para o Orinoco. Claras origens da diminuição dos Índios do Rio Negra52
A opinião do ilustre ouvidor é ratificada por outros cronistas, antes e depois dele sinceramente comovidos diante do espetáculo sangrento promovido pelas famosas expedições de caça ao escravo, embora não tivessem elas aquela cor infame com que nos informa o padre Las Casas, tratando das ofensivas espanholas aos índios das ilhas descobertas por Colombo. O testemunho de Ribeiro de Sampaio passa por ser provecto:
Os mesmos cabos de tropas fomentavam as Guerras para darem consumo à Fazenda que traziam, sua e de el-rei.
O cabo e oficiais cada um resgatava para si: o Missionário que era o Juiz de Legitimidade do cativeiro tinha concessão regia para resgatar cem casais. Muitas pessoas se juntavam à tropa alcançando Alvarás. Cada tropa, por estas causas, fazia para cima de 5.000 escravos, durarão as tropas 30 e tantos anos53
João Lúcio de Azevedo expõe vários documentos, em que os colonos solicitavam descimentos de casais para ajudá-los em vários misteres.54 Essa situação perdurou até o golpe dado na escravidão indígena por Dona Maria I, a 12 de maio de 1798. Isto porque toda a vastíssima cópia de diplomas referentes à liberdade dos índios, nada adiantou durante o ciclo do escravagismo. A lonjura da metrópole, a preguiça secular do colono, aliada à ambição desmedida, procrastinavam ano após ano a hora da redenção. Nem o verbo inflamado de Vieira; nem as suas audaciosas e candentes missivas ao rei; nem a visita a Portugal como delegado do índio; nem as ponderações acaso feitas pelas autoridades; nem as instituições do Diretório; nada disso intervinha definitivamente no odioso processo da escravidão. E se oficialmente o selvagem passou à condição de homem livre, de cidadão, gozando os mesmos direitos e iguais vantagens e regalias dos bem-nascidos,55 na realidade a sua escravidão continuou pelos séculos em diante, hipocritamente mascarada, rompendo os áureos portais do século XX!56
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47 Mário Ypiranga Monteiro, Fundação de Manaus, 2.ª edição, p. 15, Manaus, 1952 (Nota para esta edição).
48 Essa designação era obrigatória para delimitar a extensão do território, além da junção do Rio Negro.
49 Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil, III, 370. Berredo, op. cit., 1. refere-se miudamente sobre o assunto, bem como Melo Morais, História dos Jesuítas e suas Missões na América do Sul, 1, Rio de Janeiro, 1872.
50 Região vasta da planície controlada pelos terríveis Mundurucu, estendendo-se desde o Madeira até o Rio Tapajós.
51 Não é outra, aliás, a opinião de Joaquim Nabuco, O Direito do Brasil, 32, etc.
52 Apêndice ao Diário da Viagem que em visita, e correição das Povoações da Capitania de S. José do Rio Negro fez o Ouvidor e Intendente Geral da mesma, etc. Anais da Biblioteca e Arquivo Público do Pará, VI, 76, Belém, 1907.
53 Idem, idem, 77.
54 Vd. Revista da Sociedade de Estudos Paraenses, 116, II, Belém, 1896.
55. No regimento dado a 22 de março de 1619, ao capitão-mor do Maranhão, Antônio de Albuquerque, dizia-se: “O negócio de mais consideração e importância p.ª dita conquista do Maranhão se pode conceituar em paz. E quietação como a experiência tem mostrado he o bom tratamento, que se faz aos índios sem os agravar nem escandalizar de manr.ª que oprimidos e obrigados de nossas sem Razões se aleuantem e a partem de nossa obediência e amizade E assy devem procurar elle capitão-mor e adjunto de guarda em tudo igualdade e justiça aos dittos Índios não lhe tomando seus mantimentos, molheres, e filhos ou consentindo que se lhes tomem constrangendoos a servidão algua contra sua vontade mais q. a que como gente liure deue em Rezão de Vassalos a SMgde porque do contrário socedem gravissimos inconuinnientes, e desordens, e porquanto eu sou informado que neste particular se tem procedido có grande deuassidão na dita conquista encomendo, e encarreguo muyto a elles capitão-mor, e adjunto que em nhua ma.ra tal consinta nem ponha tributos oudacios algus aos ditos índios Resgatando somente có elles os seus mantimentos e outracuosas no modo em que se permitte com verdade e inteireza guardandolhe e fazendolha goardar entudo inuiolauem.te”- Taunay, Livro Segundo do Governo do Brasil, 93-94. Anais do Museu Paulista, III, 1927. Quanto às regalias, provenientes do posterior estado de liberdade, Dona Maria I, a 12 de maio de 1798, despachava um alvará, revogando o Diretório, tornando o selvagem capaz de participar de todos os ângulos da administração como cidadão livre. Apesar de combatido, o Diretório, publicado por Mendonça Furtado, é interessante, porque fazia anular certas disposições tendenciosas, criava a polícia econômica para a conservação das povoações, mandava que os índios construíssem casas de residência nas vilas, dispondo ainda que os brancos podiam habitar as aldeias dos índios, introduzindo-se entre eles os casamentos, etc.
56 No Amazonas infelizmente o índio continua um escravo dos egoístas exploradores, sem que as instituições protetoras possam exterminar o abuso.
Continua na próxima edição…